Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:019/17
Data do Acordão:11/30/2017
Tribunal:CONFLITOS
Relator:OLINDO GERALDES
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P22626
Nº do Documento:SAC20171130019
Data de Entrada:04/26/2017
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE LISBOA OESTE, SINTRA, INST LOCAL, SECÇÃO CRIMINAL - J1 E O TAF DE SINTRA, UNIDADE ORGÂNICA 3
RECORRENTE: A.......
RECORRIDO: MUNICÍPIO DE SINTRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:
I - RELATÓRIO

A……….., em 3 de junho de 2016, impugnou para o Juiz da Secção Criminal da Instância Local de Sintra (Juízo Local Criminal), Comarca de Lisboa-Oeste, nos termos do art. 59.º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, a aplicação da coima pela Câmara Municipal de Sintra, no valor de € 550,00, pela autoria da contraordenação, prevista e punida pelos artigos 4.º, n.º 2, alínea c), 98.º, n.º s 1, alínea a), e 2 do DL n.º 555/99, de 16 de dezembro, na redação dada pelo DL n.º 26/2010, de 30 de março.

Enviado o processo ao Ministério Público e ordenada, em 16 de setembro de 2016, a sua remessa à distribuição (6159/16.8T9SNT), que teve lugar a 20 de setembro de 2016, por despacho de 23 de janeiro de 2017, o Juízo Local Criminal de Sintra declarou-se materialmente incompetente para o julgamento da impugnação, atribuindo a competência ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, nos termos do disposto no art. 4.º, n.º 1, alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), na redação pelo D L n.º 214- G/2015, de 2 de outubro, que lhe confere competência para conhecer da impugnação contraordenacional em matéria de urbanismo.

Remetido o processo, então, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (205/17.5BESNT), por despacho de 21 de fevereiro de 2017, foi declarada a sua incompetência material, nomeadamente por a impugnação judicial ter sido deduzida anteriormente a 1 de setembro de 2016.

Verificado o conflito negativo de jurisdição, foi solicitada a sua resolução ao Tribunal dos Conflitos.

Neste, distribuído o conflito negativo de jurisdição, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da competência material "caber aos tribunais comuns", remetendo, nesse sentido, para o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 30 de março de 2017 (n.º 31/16), nos termos do parecer de fls. 115.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa resolver o conflito negativo de jurisdição, para conhecer da impugnação judicial de contraordenação relativa a matéria de urbanismo, sendo certo que, por decisão transitada em julgado, tanto a jurisdição comum como a jurisdição administrativa e fiscal a negaram e a atribuíram reciprocamente.

O Juízo Local Criminal de Sintra baseou a sua decisão no art. 4.º, nº 1, alínea l), do ETAF, na redação dada pelo DL n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, que atribuiu competência material aos Tribunais Administrativos e Fiscais para julgar as impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.

Por sua vez, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra motivou a sua decisão na circunstância da sua competência, em tal matéria, apenas se verificar a partir de 1 de setembro de 2016 e a impugnação judicial ter sido apresentada, na Repartição da Autoridade Administrativa, em data anterior.

Em face da posição de cada uma das jurisdições conflituantes, ganha particular relevância, na determinação da jurisdição competente, saber o momento em que se considera em juízo a impugnação judicial de contraordenação, nomeadamente na apresentação da impugnação na entidade administrativa ou em tribunal.

Esclarecida esta questão, fácil se torna, depois, resolver o conflito negativo de jurisdição suscitado entre a jurisdição comum e a jurisdição administrativa e fiscal.

A competência do tribunal, que constitui um pressuposto processual, corresponde à medida de jurisdição dos diversos tribunais, nomeadamente ao modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional (MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 88, e ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág. 196).

Internamente, o fracionamento ou repartição do poder de julgar deriva de vários fatores, designadamente em razão da matéria. A competência em razão da matéria para as diversas espécies de tribunais, situados entre si no mesmo plano horizontal, sem qualquer relação de hierarquia, resulta da natureza da matéria alegada na ação, tendo por justificação o princípio da especialização, com as vantagens inerentes, e cada vez mais reconhecidas.

A natureza da matéria alegada na ação afere-se pela pretensão jurisdicional deduzida e pelo fundamento invocado ou pelo pedido e causa de pedir (MANUEL DE ANDRADE, Ibidem, pág. 91), como, aliás, é entendido, pacificamente, pela jurisprudência.

De acordo com o art. 4.º, n. º 1, alínea l), do ETAF, na redação dada pelo DL n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, que começou a vigorar em 1 de setembro de 2016, "compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo ".

Perante este dispositivo legal, é indubitável que compete à jurisdição administrativa e fiscal conhecer da impugnação judicial em matéria de contraordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, a qual se fica a dever à intenção legislativa expressa de "fazer corresponder o âmbito da jurisdição administrativa aos litígios de natureza administrativa".

Reconhecendo-se, no caso, estar em causa a impugnação judicial de coima por contraordenação de norma de direito administrativo em matéria de urbanismo, aplicada pela Câmara Municipal de Sintra, o seu conhecimento cabe à jurisdição administrativa e fiscal, nomeadamente a partir de 1 de setembro de 2016.

Sendo certo que a competência do tribunal se fixa no momento em que a ação se propõe, com irrelevância, em geral, das modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente (art. 38.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, que aprovou a lei de organização do sistema judiciário (LOSJ), é aqui, então, que se questiona o momento em que deve considerar-se interposta a impugnação judicial, entendida diversamente pelos tribunais conflituantes, como se especificou.

A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é suscetível de impugnação judicial, devendo o recurso ser-lhe apresentado, no prazo de vinte dias após o conhecimento pelo arguido (art. 59.º, n.º s 1 e 3, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro).

Recebido o recurso, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este ato como acusação, podendo a autoridade administrativa, até ao envio dos autos, revogar a decisão de aplicação da coima (art. 62.º do DL n.º 433/82).

Da regulação normativa da aplicação da coima pelas autoridades administrativas resulta, com clareza, que o processo de contraordenação contempla duas fases, uma primeira administrativa e uma segunda judicial. A fase administrativa inicia-se com a participação das autoridades policiais ou fiscalizadoras ou ainda mediante denúncia particular, procedendo a autoridade administrativa à investigação e instrução, finda a qual arquiva ou aplica uma coima (art. 54.º, n.º 2 e 3, do DL n.º 433/82). Por sua vez, a fase judicial começa com a apresentação do processo ao juiz pelo Ministério Público, cujo ato vale como acusação, nos termos do n.º 2 do art. 62.º do DL n.º 433/82.

O momento da interposição da impugnação da decisão administrativa não pode ser considerado como o começo da fase judicial, não só porque o processo ainda se mantém na jurisdição da autoridade administrativa, como também esta, até ao envio do processo ao Ministério Público, pode revogar a decisão de aplicação da coima, o que reforça a sua natureza administrativa. Neste sentido, pode invocar-se, de algum modo, o acórdão de uniformização de jurisprudência (então assento) de 10 de março de 1994 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 435, pág. 49), ao decidir que não tem natureza judicial o prazo mencionado no n.º 3 do artigo 59.º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro.

Por outro lado, sendo o processo enviado ao Ministério Público, pode este, por efeito do exercício do controlo da legalidade, não apresentar o processo ao juiz e, assim, não deduzir acusação.

Deste modo, verdadeiramente, o processo apenas entra na fase judicial quando da remessa à distribuição pelo Ministério Público, em termos semelhantes ao da propositura de uma ação.

Neste sentido, decidiu recentemente, entre outros, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 9 de novembro de 2017 (processo n.º 12/17), seguido de perto.

Deve ainda afirmar-se que o entendimento sufragado não contraria, de modo algum, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 30 de março de 2017 (processo n.º 31/16), que decidiu baseado num pressuposto diverso.

Perante a definição do início da fase judicial do processo de contraordenação, nomeadamente ao momento da sua remessa pelo Ministério Público à distribuição, ocorrida em 16 de setembro de 2016, compete à jurisdição administrativa e fiscal conhecer do processo de contraordenação, porquanto, nessa ocasião, tal competência já lhe cabia, por efeito do DL n.º 214-G/2015, de 2 de outubro.

Com a competência material atribuída à jurisdição administrativa e fiscal, está excluída a dos tribunais judiciais (art. 40.º, n.º 1, da LOSJ).

Neste contexto, compete ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra conhecer do processo de contraordenação instaurado pela Câmara Municipal de Sintra contra A……….., assim se resolvendo o conflito negativo de jurisdição suscitado nos autos.

2.2. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I. A competência do tribunal, que constitui pressuposto processual, corresponde à medida de jurisdição dos diversos tribunais, nomeadamente ao modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional.

II. Compete à jurisdição administrativa e fiscal conhecer da impugnação judicial em matéria de contraordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, nos termos da alteração introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 2 de outubro.

III. O processo de contraordenação entra na fase judicial quando da remessa à distribuição pelo Ministério Público.

IV. Ocorrendo a remessa à distribuição, em 16 de setembro de 2016, na vigência do DL n.º 214-G/2015, compete à jurisdição administrativa e fiscal o seu conhecimento.

2.3. Não há lugar ao pagamento de custas, designadamente porque as partes não tiraram qualquer proveito - art. 527.º, n.º1, do Código de Processo Civil.

III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

Resolver o conflito negativo de jurisdição, atribuindo a competência material ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

Lisboa, 30 de novembro de 2017. – Olindo dos Santos Geraldes (relator) - António Pires Henriques da Graça – José Augusto Araújo Veloso – Manuel Tomé Soares Gomes – José Francisco Fonseca da Paz – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano.