Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:013019/23.4T8LRS.S1
Data do Acordão:04/17/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:NUNO GONÇALVES
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - Compete ao tribunal cível comum conhecer de ação em que vem pedida a efetivação de responsabilidade fundada em erro judiciário alegadamente cometido por tribunal da jurisdição dos tribunais judiciais - art. 4.º, n.º 4, alínea a), do ETAF;
II - Compete ao tribunal administrativo e fiscal conhecer de ação em que se pretende a efetivação da responsabilidade civil extracontratual por danos resultantes da lentidão da justiça e da “pejorativa” e “errónea” intervenção e/ou omissão dos demais serviços públicos – art. 4.º, n.º 1, alínea f), do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P32208
Nº do Documento:SAC20240417013019
Recorrente:AA
Recorrido 1:TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA NORTE
Recorrido 2:SECRETÁRIA GERAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
MINISTÉRIO DA SAÚDE
INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL – IP
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: recurso

**


**


O Tribunal de Conflitos acorda: -----


*

1. Relatório:


A autora AA intentou em 22/06/2023, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, “ação administrativa comum emergente de responsabilidade civil extracontratual do Estado”, contra: --------

- o Estado Português, “por intervenção” do Tribunal de Loures e dos Ministérios da Justiça (pela CPCJ), da Saúde (pelo IML) e da Segurança Social, -----

peticionando, a final, a condenação réu: -------

- “a indemnizá-la por todos os danos não patrimoniais que lhe foram causados pelas instituições enumeradas como RR.

- a pagar-lhe a quantia de €300.000,00 (trezentos mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros vincendos até efetivo e integral pagamento”.

Indica como causa de pedir alegadas “más decisões de instituições estatais” que “levaram a sentenças erróneas”, decisões infundadas, com factos erróneos, por incorreções praticadas por vários intervenientes” que intervieram “com deliberações pejorativas” da autora “e a sua filha menor, passadas para o” juízo de família e menores de Loures – J 3, proc. N.º 10849/15.4...”. Anexando 6 acórdãos da Relação de Lisboa, duma sentença homologatória de acordo do regime de exercício das responsabilidades parentais, 3 atas da conferência de pais e 3 sentenças, sendo duas do referido Juízo.


Ação que ali originou o processo com o n.º 630/23.2...


O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, por sentença de 30/06/2023, julgou-se materialmente incompetente para conhecer da ação, rejeitando liminarmente a petição inicial.


Para o efeito e em síntese, entendeu que estando em causa atuações que integram a função de julgar, imputadas a um tribunal judicial, a respetiva apreciação constitui matéria que se encontra excluída da esfera de competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, por força da al. a) do n.º 4 do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais/ETAF, estando a competência material residualmente atribuída aos tribunais judiciais comuns, nos termos do n.º 1 do art. 40.º da Lei de Organização do Setor Judiciário/LOSJ e do n.º 1 do art. 211.º da Constituição da República/CRP.


Notificada, a autora requereu e obteve deferimento da remessa dos autos para os Juízos centrais cíveis de Loures do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte,


Recebidos os autos nesse tribunal, foram autuados originando o processo com o n.º 13019/23.4T8LRS distribuído ao Juízo Central Cível de Loures – Juiz 4.


Tribunal cível que, por decisão de 08/01/2024, se declarou incompetente em razão da matéria para conhecer da ação, absolvendo os réus da instância.


Competência material que atribuiu ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.


Para o efeito, sustentou, em síntese, que a causa de pedir assenta em decisões alegadamente erradas proferidas por entidades públicas (tribunais e segurança social) no exercício dos seus poderes jurisdicionais e administrativos.


Notificada, a autora interpôs recurso para o Tribunal dos Conflitos.


O Juízo Central Cível de Loures – Juiz 4, por despacho de 22/01/2024, determinou a remessa do processo ao Tribunal dos Conflitos.

2. parecer do Ministério Público:


O Digno Procurador-geral Adjunto junto deste Tribunal, na vista a que alude o art.º 18.º n.º 3 da lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, entendendo que a causa de pedir na ação intentada pela autora radica em “alegados erros judiciários cometidos nos vários processos judiciais (…) identificados na (…) petição inicial, quer na primeira instância quer em sede de recurso” e que a intervenção das outras entidades foi meramente instrumental relativamente às referidas decisões judiciais, pronuncia-se no sentido de o conflito negativo de competência material em causa ser resolvido “considerando-se competente para ação o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Central Cível de Loures - Juiz 4.

3. objeto do recurso:


Consiste em definir se é aos tribunais da jurisdição comum ou se é aos tribunais da jurisdição administrativa que compete, em razão da matéria, conhecer da vertente ação intentada pela autora, na qual, alegando erros judiciários de tribunais judiciais comuns que lhe causaram danos não patrimoniais, pede que se condene o réu Estado a indemnizá-la em numerário que quantifica.


*

4. fundamentação:

a. o direito:

Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que aos tribunais judiciais comuns está a atribuída a denominada competência residual. Que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer das “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.


Resulta ainda que na ordem dos tribunais judiciais, comuns, aos juízos cíveis compete conhecer das causas que não estejam atribuídas a tribunais ou juízos “dotados de competência especializada”.


E que na ordem dos tribunais administrativos e fiscais, a competência residual para dirimir “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” recai nos tribunais administrativos


Assim, não cabendo uma causa na competência legal e especificamente atribuída a outro tribunal, será a mesma da competência residual do tribunal comum.


Estabelece a Constituição da República - art. 212.º, n.º 3 – e regulamenta a Lei de Organização do Setor Judiciário/LOSJ – art. 144.º, n.º 1 que aos tribunais administrativos e fiscais compete “dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Especificando o ETAF – artigos 1.º, n.º 1 e 4.º -, na parte que para aqui releva, que lhes cabe conhecer de ações que tenham por objeto questões relativas a “responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional”. Excetuando-se, além do mais, a “apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição" – art. 4.º, n.º 4, al. a) do ETAF.


*


Está pacificamente firmado na jurisprudência, designadamente na deste Tribunal de Conflitos – máxime: Acórdão de 08/11/2018, processo n.º 020/181 -, que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…)


A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.


*


A Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, “aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável”, estabelece no art. 13.º, n.º 1, que, “(…) o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”.


O Tribunal dos Conflitos, no acórdão de 10/03/2011, tirado no processo n.º 013/102 decidiu que “é pacífico o entendimento jurisprudencial, (…) de que estando em causa a responsabilidade emergente da função de julgar, a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa; todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a actividade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administração da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à especifica função de julgar, inscrevem-se nos conceitos de actos e actividades administrativas ou de “gestão pública administrativa”, da competência da jurisdição administrativa”


No Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 05/05/2021, prolatado no processo n.º 03461/20.8T8LRA.S13, decidiu-se “(…) que a exclusão operada pela al. a) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF apenas se aplica às acções de responsabilidade por erro judiciário atribuído a tribunais não integrados na Ordem dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ou seja, no que agora releva, a erro atribuído a decisão judicial, (…).”.


Igualmente, o acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/07/2021, processo n.º 02/204, sustentou-se que “é de concluir que as acções de responsabilidade que tenham por objecto a prática de um erro judiciário, pertencem a diferentes âmbitos de jurisdição, consoante o erro seja atribuído a um tribunal da jurisdição comum ou da jurisdição administrativa e fiscal. Como tal, só estão excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal as acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como as correspondentes acções de regresso (cfr. al. a) do nº 3 do citado artigo do ETAF), estando nos outros casos atribuída aos tribunais administrativos a apreciação das acções de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado.”


Também o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 06/04/2022, processo n.º 01/225 se decidiu que restando “(…) no que a este Tribunal dos Conflitos diz respeito saber qual é o tribunal competente para ajuizar a acção por erro judiciário, por ser quanto a este que existe um conflito negativo de jurisdição (art. 1º da Lei nº 91/2019, de 4/9) (…) não restam dúvidas que imputando o Autor esse erro a uma decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, a competência para conhecer da acção cabe aos tribunais comuns.”.


Mais recentemente, o Tribunal dos Conflitos, no acórdão de 07/02/2024, tirado no processo n.º 01161/23.6BELSB-A-CP6, pronunciou-se da forma seguinte:


(…) o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, regula nos artigos 12º a 14º o regime substantivo da responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, distinguindo entre responsabilidade pela administração da justiça e responsabilidade por erro judiciário.


Importa, portanto, determinar se a acção, tal como foi configurada pelo Autor, se deve incluir na competência da jurisdição administrativa e fiscal ou se estamos perante um erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outra ordem de jurisdição e, portanto, excluída da apreciação pelos tribunais administrativos e fiscais, (…).


Como refere Carlos Cadilha, em anotação ao art. 12º da referida Lei: “a expressão administração da justiça é aqui utilizada em sentido amplo, abrangendo quer os actos materialmente administrativos dos serviços da justiça (assim se compreendendo que aí se faça exemplificativamente referência aos danos resultantes da violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável), quer os actos jurisdicionais em sentido próprio. Por conseguinte, a remissão para o regime de responsabilidade civil da função administrativa engloba, à partida, quaisquer direitos indemnizatórios por danos derivados do exercício da função jurisdicional lato sensu (…)” (cfr. Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, pág. 196).


Assim, “A competência da jurisdição administrativa compreende todas as acções de responsabilidade por actos e omissões da função jurisdicional que se fundem na (má) administração da justiça, no seu deficiente funcionamento, «designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável», seja qual for a jurisdição a que pertença o tribunal em causa. (…) Diversamente, quando a responsabilidade por acto da função jurisdicional se fundar em erro judiciário, em erro evidente na determinação, interpretação ou aplicação dos factos ou do Direito — ou, numa outra fórmula, quando respeitar aos danos decorrentes de decisões jurisdicionais “manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto” —, a jurisdição administrativa só é competente se tal erro provier de um tribunal administrativo [alínea a) do art. 4.°/3 do ETAF, a contrario]” (cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I, pág. 60).


No caso dos autos, a autora pretende, efetivar a responsabilidade civil extracontratual do Estado, alegando para tanto “violação de direitos humanos e da criança, lentidão da justiça, e erros grosseiros, relatórios com factos falsos e erroneamente elaborados”, que “levaram a várias sentenças erróneas” que causaram danos irreparáveis à sua relação com a filha ainda criança.


Temos, pois, uma causa de pedir configurada como complexa, em que são alegados factos tendentes a consubstanciar erro judiciário, como seja a circunstância de a sentença do apenso B ser surreal, absurda, injusta, parcial e negligente, mas também erros e omissões de outras entidades, designadamente da CPCJ, a quem é imputada a elaboração de um relatório onde são reportados factos falsos e do IML a quem é atribuída a realização de uma perícia forense considerada inválida, por falta de rigor e de fundamento médico.


Assim, no que respeita à responsabilidade civil fundada em erro judiciário, uma vez que o mesmo terá sido cometido por tribunal pertencente a outra ordem de jurisdição (Tribunal de Lisboa Norte – Loures), a competência para conhecer da ação, nessa parte, encontra-se subtraída aos tribunais administrativos e fiscais, cabendo aos Tribunais da jurisdição comum, nos termos do art. 4.º, n.° 4, al. a), do ETAF.


O conhecimento da ação para a pretendida efetivação da responsabilidade civil extracontratual por danos resultantes da lentidão da justiça e da “pejorativa” e “errónea” intervenção e/ou omissão dos demais serviços públicos, competente aos tribunais da jurisdição administrativa, por decorrência do art. 4.º, n.º 1, al. f), do ETAF.

5. Dispositivo:


Pelo exposto, o Tribunal de Conflitos acorda: ------------------------

a)- na procedência do recurso, em parte, decide-se atribuir à jurisdição dos tribunais judiciais comuns, nos termos do art. 4.º, n.º 4, alínea a) do ETAF, – concretamente ao Juízo central cível de Loures -Juiz 4, do Tribunal judicial da comarca de Lisboa norte – a competência material para conhecer da ação intentada quanto ao erro judiciário alegadamente cometido pelos tribunais da ordem judicial comum;

b) – na improcedência do recurso, na parte restante, decide-se atribuir à jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do art. 4.º, n.º 1, alínea f), do ETAF – concretamente ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra -, a competência material para conhecer da ação na parte em que também pretende efetivar a responsabilidade civil extracontratual da CPCJ e seus membros, do INML e da Segurança Social.

Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro.


Lisboa, 17 de abril de 2024. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.

1. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00

2. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/BF18DE9E0C07EA31802578730038160E

3. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1663c73b6d09d40c802586d100573817

4. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/bffb481d7d85b95d80258711004d9a12

5. https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3924c26b87da46e380258829003463ae

6. https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/72ae73575680563480258abe005332e8