Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:055/17
Data do Acordão:04/12/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
CARTÓRIO NOTARIAL
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:Não configura conflito negativo de jurisdição, que compita ao Tribunal dos Conflitos resolver, a divergência entre o notário e o tribunal judicial acerca de saber a qual deles compete a tramitação do requerimento de partilha adicional a um inventário.
Nº Convencional:JSTA000P23149
Nº do Documento:SAC20180412055
Data de Entrada:10/02/2017
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O CARTÓRIO NOTARIAL DE A..., SITO EM ... SANTA MARIA DA FEIRA E O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE AVEIRO, JUÍZO LOCAL CÍVEL DE SANTA MARIA DA FEIRA, JUÍZO 1.
CABEÇA DE CASAL: B...
INVENTARIADO: C...
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:

Acordam no Tribunal de Conflitos:
RELATÓRIO
1. B……………., devidamente identificada nos autos, apresentou, no Cartório Notarial de ………., Santa Maria da Feira, do notário A……………, requerimento inicial, com vista à partilha através de inventário por morte de C…………., seu marido.

2. Tal requerimento veio, porém, a ser objeto de decisão, datada de 10.03.2016, que considerou padecerem a Lei n.º 23/2013 e as Portarias n.ºs 278/2013, e 46/2015, de inconstitucionalidade material por ofensa dos arts. 20.º, n.º 4, 47.º, n.º 1, e 202.º da CRP, recusando a sua aplicação, e ordenando a remessa/notificação ao MP junto do TJ de Santa Maria da Feira para dedução do competente recurso perante o Tribunal Constitucional [cfr. fls. 09/15 dos autos], e, ainda, o envio de comunicação à Ordem dos Notários, datada de 29.02.2016, requerendo que os “processos de inventário pendentes sejam retirados do … cartório e sejam tramitados por outros cartórios ou tribunais …”, devendo o seu “cartório ser excluído do respetivo sistema informático a fim de não receber mais deste tipo de processos …” [cfr. fls. 15 v./17 dos autos].

3. O expediente veio a ser devolvido ao Cartório pelos serviços do MP nos termos do despacho do Magistrado do MP de 21.09.2016 [cfr. fls. 20/28 dos autos], tendo por decisão daquele mesmo Notário, datada de 08.03.2017, sido determinada a remessa ao TJ da Comarca de Aveiro - Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira para prosseguimento naquele Tribunal dos respetivos termos do processo de inventário, mormente, análise da questão de constitucionalidade invocada [cfr. fls. 44/44 v. dos autos].

4. Por decisão daquele TJ, datada de 14.06.2017, foi considerado que a remessa, incidental, do processo não se incluía na previsão do art. 16.º da Lei n.º 23/2013, e de que, face ao regime legal decorrente do citado diploma legal, não se inserem no seu quadro de competências a apreciação da decisão de recusa do Sr. Notário em proceder à partilha e o proceder à tramitação do processo de inventário, termos em que se julgou incompetente em razão da matéria [cfr. fls. 50/52 dos autos].

5. Despoletado o conflito de jurisdição nos termos do despacho daquele TJ, datado de 27.09.2017 [cfr. fls. 56 dos autos], importa, com prévio envio do projeto aos Juízes Conselheiros nele intervenientes e dispensados os vistos legais, apreciar do mesmo, sendo que o Ministério Público deu o seu parecer no sentido da sua rejeição dado inexistir um conflito de jurisdição, e de que, caso assim se não entenda, então que se afirme a competência ao Cartório Notarial de …….. para apreciar o processo de inventário requerido [cfr. fls. 63/67 dos autos].


DA VERIFICAÇÃO E APRECIAÇÃO DOS PRESSUSPOSTOS DO CONFLITO

6. Cientes do quadro descrito no relatório antecedente importa, então, apreciar, desde já, de questão liminar da competência deste Tribunal, convocando previamente o pertinente quadro normativo aplicável.

7. Decorre do n.º 1 do art. 109.º do CPC [na redação da Lei n.º 41/2013 - redação essa a que se reportarão todas as demais citações de normativos daquele Código sem expressa referência em contrário], preceito sob a epígrafe de «conflito de jurisdição e conflito de competência», de que «[h]á conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas atividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo».

8. E extrai-se do normativo seguinte do mesmo Código que «[o]s conflitos de jurisdição são resolvidos, conforme os casos, pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal dos Conflitos» [n.º 1] e que «[o] processo a seguir no julgamento dos conflitos de jurisdição cuja resolução caiba ao Tribunal dos Conflitos é o estabelecido na respetiva legislação» [n.º 3], sendo que «[n]o julgamento dos conflitos de jurisdição ou de competência cuja resolução caiba aos tribunais comuns segue-se o disposto nos artigos seguintes» [n.º 4].

9. No conflito sub specie está em causa, por um lado, uma decisão proferida pelo Notário do Cartório Notarial de ……., Santa Maria da Feira, na qual, fundando-se na inconstitucionalidade do regime jurídico do processo de inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013 e de que este processo deveria ser tramitado e decidido nos tribunais judiciais, declinou ou recusou proceder ao inventário que lhe havia sido atribuído suspendendo os seus termos até que fosse apreciada a questão de constitucionalidade por si suscitada; e, por outro lado, a decisão do TJ da Comarca de Aveiro - Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira, datada de 14.06.2017, que, considerando que a remessa do processo não se incluía na previsão do art. 16.º daquela Lei e de que, face ao regime legal decorrente do mesmo diploma legal, não se inserem no seu quadro de competências a apreciação da decisão de recusa do Sr. Notário em proceder à partilha e o proceder à tramitação do processo de inventário, declinou a sua competência em razão a matéria para conhecer e proceder à partilha requerida.

10. São, pois, estas duas decisões que o referido TJ considerou terem sido proferidas por duas autoridades pertencentes a diversas atividades do Estado e, como tal, integrariam um conflito de jurisdição cuja resolução caberia a este Tribunal dos Conflitos.

11. Ora in casu, ainda que se entenda existir conflito, sempre este Tribunal carece de competência para o resolver [cfr. o recente Ac. deste Tribunal de Conflitos de 21.04.2016 (Conflito n.º 032/15), e no qual se reiterou, nomeadamente, o entendimento expresso no anterior Ac. deste mesmo Tribunal de 24.02.2005 (Conflito n.º 013/04) - ambos consultáveis in: «www.dgsi.pt/jcon» - sítio a que se reportarão também todas as demais citações de acórdãos deste Tribunal sem expressa referência em contrário].

12. Reiterando e secundando aqui o entendimento ali então firmado extrai-se da sua linha fundamentadora que «[n]os termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, os conflitos de jurisdição são resolvidos, conforme os casos, pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal dos Conflitos, esclarecendo o n.º 3 do mesmo preceito legal que o processo a seguir no julgamento dos conflitos de jurisdição cuja resolução caiba ao Tribunal dos Conflitos é o estabelecido na respetiva legislação, competindo ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça conhecer dos conflitos de jurisdição cuja apreciação não pertença ao Tribunal dos Conflitos - artigo 62.º, n.º 3, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (aprovada pela Lei n.º 62/2013 …)», e que «[o] Tribunal dos Conflitos foi criado pelo Decreto n.º 19243, de 16 de janeiro de 1931, competindo-lhe, então, de acordo com o preceituado no artigo 59.º, conhecer dos conflitos positivos ou negativos de jurisdição e competência entre as autoridades administrativas e judiciais», sendo que «[p]osteriormente, com o Decreto-Lei n.º 23185, de 30 de outubro de 1933, foi extinto o Supremo Conselho de Administração Pública e criado, em sua substituição, o Supremo Tribunal Administrativo, tendo o Tribunal dos Conflitos passado a ser integrado por seis juízes conselheiros - três do Supremo Tribunal de Justiça (sorteados para cada processo) e três do Supremo Tribunal Administrativo - e presidido pelo presidente deste último - artigos 1.º e 17.º do referido diploma legal».

13. Para, de seguida, em decorrência do quadro normativo convocado, afirmar que «[e]sta composição revela, pois, que os conflitos que estão em causa são os que ocorrem entre tribunais pertencentes, por um lado, à jurisdição judicial e, por outro, à jurisdição administrativa ou fiscal, relativamente a matérias passíveis de resolução por esses tribunais, justificando-se, consequentemente, que seja o Tribunal dos Conflitos - órgão paritariamente composto por Juízes do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Administrativo - a decidi-los», já que a «(…) expressão “autoridades administrativas” ínsita no citado artigo 59.º do Decreto n.º 19243 (…) tem, hoje, de ser entendida, à luz de uma interpretação atualista, como englobante das autoridades jurisdicionais da ordem administrativa e fiscal, sentido este que, de resto, já era perfilhado pelo artigo 107.º do Código de Processo Civil de 1939 ao aludir ao conflito “entre as autoridades judiciais e administrativas” (cf. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 3ª edição, Coimbra, Setembro de 2014, p. 221 e segs.)».

14. Nessa medida, continua-se «(…) a competência do Tribunal dos Conflitos pressupõe que o objeto do conflito tenha conexão com a competência material dos tribunais da ordem administrativa ou das autoridades administrativas no âmbito da sua competência administrativa propriamente dita - o que, manifestamente, não sucede no caso vertente. É que, quando exercem competências no âmbito do processo de inventário nos termos consagrados pela Lei n.º 23/2013, os Cartórios Notariais não estão a agir no âmbito da sua competência administrativa propriamente dita, mas antes no quadro de uma atividade jurisdicional (…)», tanto mais que «(…) das decisões proferidas pelo notário cabe recurso para o tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado, o que evidencia uma continuidade de competências ratione materiae e uma conexão com os tribunais judiciais, a par da falta dela com a ordem administrativa (cf. Acórdão deste Tribunal de 20/01/2010, proc. 026/09, disponível em www.dgsi.pt)».

15. E concluiu-se, então, que «(…) ainda que existisse o suscitado conflito de jurisdição (…), não tendo o mesmo qualquer conexão com o objeto da competência material dos tribunais da ordem administrativa ou da autoridade administrativa no âmbito da sua competência administrativa propriamente dita, não seria a este Tribunal dos Conflitos que o caberia dirimir, mas antes ao Supremo Tribunal de Justiça no âmbito da sua competência residual», conclusão essa em linha com o que «(…) este Tribunal tem decidido em situações em tudo similares à que está em causa nos autos, de que são exemplo os Acórdãos de 02/07/2002 (proc. 1/02) e de 24/02/2005 (proc. 13/04), bem como os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/11/2004 (proc. 04B3409), de 18/12/2007 (proc. 07A2167) e de 10/09/2009 (proc. 361/09.6YFLSB) (…)».

16. Valendo plenamente para o conflito sub specie o entendimento acabado de convocar, importa também aqui concluir, sem necessidade de outros considerandos e demais desenvolvimentos, pela incompetência deste Tribunal para o seu conhecimento dado tal assistir ao Presidente do Supremo Tribunal Justiça [cfr., nomeadamente, os arts. 109.º, 110.º, 111.º, 113.º e 114.º, todos do CPC, 19.º do Decreto n.º 19243, e 62.º da «LOSJ»].




DECISÃO
Nestes termos e de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa acordam em julgar-se incompetente para conhecer do presente conflito.
Transitado o presente acórdão, remetam-se os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.
Sem custas [cfr. art. 96.º do Decreto n.º 19243, de 16.01.1931].
D.N..



Lisboa, 12 de Abril de 2018. – Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator) – António Joaquim Piçarra – José Augusto Araújo Veloso – António Leones Dantas – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Manuel Tomé Soares Gomes.