Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:07/16
Data do Acordão:05/12/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
CONCESSIONÁRIA
SEGURADORA
INDEMNIZAÇÃO
Sumário:Os tribunais da jurisdição comum são os competentes para apreciar o litígio em que uma sociedade concessionária de auto-estrada demanda uma seguradora, com base no contrato de seguro e na culpa do seu segurado, pretendendo ser indemnizada de danos provocados em meios instrumentais usados na prestação do serviço concessionado.
Nº Convencional:JSTA000P20522
Nº do Documento:SAC2016051207
Data de Entrada:01/27/2016
Recorrente:A............., S.A., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DO PORTO, VILA NOVA DE GAIA, INSTÂNCIA LOCAL, SECÇÃO CÍVEL - J5 E O TAF DO PORTO, UNIDADE ORGÂNICA 1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. A……………….., S.A. - com sede na Zona Industrial de ………., freguesia de …………., Aveiro - demandou junto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Instância Local de Vila Nova de Gaia, Secção Cível - a COMPANHIA DE SEGUROS B……………., S.A. - com sede em Lisboa e Filial na rua …………., no Porto - mediante acção declarativa de condenação, e sob a forma de processo comum, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia total 1.816,71€ acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação até integral pagamento.

Invoca, como causa de pedir, a culpa do condutor do ligeiro de passageiros de matrícula ......... -……..-………. [..........] - propriedade da C……………., LDA. - na produção do acidente de viação de que resultaram os danos cuja indemnização reclama, ocorrido na ……….., auto-estrada de que é concessionária, e o contrato de seguro celebrado entre a proprietária do veículo e a seguradora ora ré.

O dito acidente de viação ocorreu no dia 11.11.2011, e consistiu no despiste do ………. que, desgovernado, foi embater, primeiro, no separador central, e, depois, nas guardas de segurança do lado direito da auto-estrada, causando parte dos danos agora em causa ao danificar e inutilizar materiais que são propriedade da autora e estavam ao serviço da concessão celebrada com o Estado Português.

2. Por decisão datada de 30.05.2015, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Instância Local de Vila Nova de Gaia, Secção Cível, J5 - julgou-se incompetente «em razão da matéria» para conhecimento da lide por entender que a mesma pertencia antes à jurisdição administrativa [folhas 25 a 28 dos autos].

3. Remetido o processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto [TAF/P], este também se declarou incompetente «em razão da matéria» por entender que tal competência cabia à jurisdição comum [folhas 36 a 39 dos autos].

4. O Ministério Público pronunciou-se no sentido deste conflito de jurisdição ser resolvido com a atribuição da competência material para o litígio «aos tribunais da jurisdição administrativa» [folhas 111 a 114 dos autos].

5. Colhidos que foram os «vistos» legais, importa apreciar, e decidir, o conflito negativo de jurisdição.

II. Apreciação

1. A questão colocada a este Tribunal de Conflitos reconduz-se apenas a definir se a «competência em razão da matéria» para a apreciação do litígio vertido na acção declarativa de condenação aqui em causa cabe aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.

O tribunal da jurisdição comum, que sobre essa questão se pronunciou, arredou de si tal competência com esta fundamentação: «…para determinar a competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade extracontratual de pessoa colectiva de direito privado, há que verificar se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, instituído pela Lei nº67/2007, de 31 de Dezembro. A norma que, no plano de direito substantivo, dá concretização prática ao disposto no […] artigo 4º, nº1 alínea i), do ETAF, é a do artigo 1º, nº5, da referida Lei nº67/2007, a qual dispõe que As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo. Ora, através do DL 87-A/2000, de 13 de Maio [diploma que aprova as Bases de Concessão da «concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação de lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados designada por ………..»] foi atribuída à autora A………… […] a concessão da concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação de lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados designada por …………, nomeadamente a auto-estrada onde ocorreu o sinistro a que os presentes autos se reportam. Parece-nos, assim, que uma tal actividade da autora está regulada por disposições e princípios de direito administrativo. Ora, encontrando-nos perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual deduzida pela autora A………… […] com vista a obter o pagamento de indemnização por danos sofridos em elementos de segurança integrantes da sua concessão em consequência de acidente ocorrido na auto-estrada, é competente para conhecer da mesma o tribunal administrativo».

O tribunal da jurisdição administrativa entendeu, por sua vez, que importará, sobretudo, «ter em atenção contra quem é que a impetrante intentou a presente acção, ou seja, contra quem é que pretende efectivar aquele tipo de responsabilidade civil. A resposta surge-nos de forma bem evidente quando se repara que a demanda foi dirigida contra a companhia de seguros que segurou o veículo automóvel ………., de cujo despiste na ………….. resultou o embate nos […] elementos físicos da via e, consequentemente, os prejuízos […]. Ora bem, não se vê qual a ambiência de direito público que possa justificar a competência dos tribunais administrativos para apreciar esta lide. É que o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas só é aplicável às pessoas colectivas de direito privado por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, conforme preceitua o nº5 do artigo 1º da Lei nº67/2007, de 31.12. Como se vê, a ré é uma sociedade anónima, uma pessoa colectiva de direito privado, sujeita na sua actividade ao direito comercial e actuante no ramo segurador. E é por causa de existir contrato de seguro entre a impetrada e a proprietária do veículo automóvel interveniente no sinistro que se justifica a sua presença na lide pelo lado passivo, posto que, será em função do contrato de seguro e das suas cláusulas que emergirá a sua responsabilidade quanto ao eventual ressarcimento dos danos. Em suma, a acção ou a omissão da ré no domínio dos contratos de seguro, assumindo, ou não, a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos provocados pelos veículos seguros, não traduz qualquer prerrogativa de poder público, nem tal actividade é regulada por normas de direito administrativo, mas sim pelo direito privado [comercial ou segurador]. Em rigor, nada permite avocar para o presente caso o regime da responsabilidade civil aprovado pela Lei nº67/2007, de 31.12. Assim sendo, inexiste qualquer vínculo factual ou jurídico que justifique a competência dos tribunais administrativos para julgar a presente acção, que deve ser atribuída aos tribunais comuns».

2. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo [artigo 202º da CRP], sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e actual 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e aos tribunais administrativos a competência para julgar as causas «emergentes de relações jurídicas administrativas» [artigos 212, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF 2004, aqui aplicável].

Assim, na sequência das normas constitucionais e legais, e tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais, ou da chamada jurisdição comum assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Os tribunais administrativos, por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92, e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95].

A cada uma destas duas jurisdições, comum e administrativa, caberá, portanto, um determinado «quinhão» do poder jurisdicional que, em bloco, pertence aos «tribunais», sendo que o mesmo é determinado essencialmente em função das matérias versadas nos diferentes litígios carentes de tutela jurisdicional.

E tais matérias são aferidas através de determinados «índices de competência», entre os quais sobressaem «os termos em que a acção se mostra proposta pelo autor», isto é, o pedido formulado e a causa de pedir que o fundamenta.

Doutro modo, e como tem sido dito, «a competência dos tribunais em razão da matéria, ou jurisdição, afere-se em função da configuração da relação material controvertida, ou seja, em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os seus fundamentos» [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 30.05.2013, 017/13; na doutrina, por todos, ver Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, página 94].

3. Na determinação do conteúdo do conceito de «relação jurídico administrativa» deverá ter-se presente que «esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1) As acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público [especialmente da administração]; 2) As relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo […]. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico civil. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas […] será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo […]» [Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, volume II, Coimbra Editora, 2010, páginas 566 e 567].

O Professor Freitas do Amaral definiu a relação jurídica administrativa como «aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração» [Lições de Direito Administrativo, 1989, volume III, páginas 439 e 440].

E o Professor Aroso de Almeida diz que as relações jurídico-administrativas «não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis» [Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, página 2007].

Assim, a aparente diversidade de critérios de atribuição de competência à jurisdição administrativa, que emerge dos números e alíneas do artigo 4º do ETAF, deve resolver-se na base do princípio de que «pertence à jurisdição administrativa […] a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídico administrativa […] e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídico administrativa […] são expressamente atribuídos, por norma especial, à competência desta jurisdição – sendo que encontramos no artigo 4º do ETAF algumas disposições especiais com este alcance» [Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013, página 157].

Efectivamente, no artigo 4º do ETAF aqui aplicável [em vigor «desde 01.01.2004», e antes da alteração que lhe foi efectuada em 2015] é feita uma enumeração exemplificativa de matérias litigadas cujo conhecimento pertence [alíneas do nº1] ou não pertence [alíneas do nºs 2 e 3] aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Entre elas se destaca, por pertinente para o presente caso, a alínea i), do nº1, na qual se reserva à jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto a «Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime especial da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público».

Deste modo, o regime introduzido em 2004, atribuiu competência aos tribunais administrativos para a apreciação dos litígios emergentes da «responsabilidade civil extracontratual» das pessoas colectivas de direito público [alíneas g) e h) do nº1 do artigo 4º do ETAF], independentemente de se saber se os mesmos eram regidos por normas de direito público ou normas de direito privado, e, ainda, dos próprios privados, mas, desde que lhes seja «aplicável o regime próprio da responsabilidade do Estado ou demais pessoas colectivas de direito público».

A competência da «jurisdição administrativa» relativamente à «responsabilidade civil extracontratual dos privados» está, pois, dependente de dever ser aplicado a estes o regime público de responsabilização consagrado na Lei nº67/2007, de 31.12 [que aprovou o «regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas»].

Estipula o artigo 1º, nº5, desta lei, que «As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.»

Esta norma concretiza, na prática, a regra de competência material consagrada na alínea i) do nº1 do artigo 4º do ETAF aplicável, e, segundo ela, são dois os factores determinativos do conceito de actividade administrativa para tal efeito. O primeiro refere-se ao exercício de prerrogativas de poder público, ou seja, ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade. O segundo respeita a actividades reguladas por princípios ou por disposições de direito administrativo.

Como escreve o Conselheiro Carlos Cadilha, «…tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços da Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades [privadas] tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas privadas» [Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, página 49].

4. Como decorre do que já ficou dito, a autora A…………, concessionária da …………., onde ocorreu o despiste do ……….., pretende ver-se indemnizada dos danos que lhe foram provocados por esse acidente em elementos físicos de sua propriedade e que estavam ao serviço da concessão, ou seja, blocos do «separador central» e «guardas de segurança» laterais.

E fundamenta a responsabilização da seguradora demandada quer na culpa do condutor do …………, que circularia ao serviço da proprietária deste, quer no contrato de seguro vigente na altura dos factos.

Assim, ao contrário do ocorrido em todos os acórdãos invocados no parecer do Ministério Público, não se visa, com este litígio, responsabilizar a concessionária do troço de auto-estrada em causa, pelo contrário, é esta última, como autora, que vem responsabilizar o condutor do …………. e a sociedade seguradora nos termos referidos.

Ora, a responsabilidade destes, «particular» e «sociedade comercial», é regida pelo direito privado, e não lhes é aplicável «o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público».

Não se discute na acção, como resulta da petição inicial, e claramente se colhe do teor da contestação meramente impugnatória apresentada pela demandada, qualquer responsabilidade da autora A…………. na eclosão do acidente.

Sem mais, por desnecessário, e na linha do que decidiu o TAF do PORTO, deverá ser atribuída a competência material para apreciar e julgar o presente litígio aos tribunais da jurisdição comum, concretamente ao «Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Instância Local de Vila Nova de Gaia, Secção Cível».

III. Decisão

Nestes termos, decidimos o presente «conflito de jurisdição» atribuindo aos tribunais da jurisdição comum a competência, em razão da matéria, para conhecer do objecto da presente acção declarativa de condenação.

Sem custas.

Lisboa, 12 de Maio de 2016. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos – José Francisco Fonseca da Paz – Manuel Augusto Pereira de Matos – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira.