Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02/18
Data do Acordão:05/17/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ RAINHO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I – A competência dos tribunais afere-se em função dos termos da ação, tendo em consideração a pretensão formulada pelo autor e os respetivos fundamentos.
II - Incumbe aos tribunais judiciais o julgamento de ação em que um particular, invocando a realização de obras abusivas no seu prédio, pede contra outro particular o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre esse prédio e a restituição deste ao seu primitivo estado (demolição da obra).

III – Tal pretensão funda-se nos artigos 1311º e 1341º do Código Civil, tendo por base uma relação jurídica de natureza exclusivamente privatística.

IV – A circunstância do município ter sido chamado a intervir no processo, por ter adjudicado e concessionado ao réu a obra pretensamente ofensiva do direito de propriedade, não implica a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Nº Convencional:JSTA000P23290
Nº do Documento:SAC2018051702
Data de Entrada:01/12/2018
Recorrente:A........ E OUTROS, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE SANTA CRUZ - INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO COMP. GEN.-J2 E O TAF DO FUNCHAL
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n°. 2/18

Conflito negativo de jurisdição

Acordam em conferência no Tribunal dos Conflitos:

I - RELATÓRIO

A……… e mulher B………, e C………… e mulher D…………., demandaram, pelo Tribunal Judicial de Santa Cruz e em autos de ação declarativa, E……….., LDA e F……….., LDA, peticionando da seguinte forma:

" ... deve a presente acção ser julgada por procedente e por provada e, em consequência:

1 - Condenar solidariamente ambas as RR. a reconhecer que, os A.A. são únicos donos e possuidores plenos, em comum e sem determinação de parte ou de direito, da totalidade do prédio rústico, localizado na …………., freguesia e concelho de Santa Cruz, com a área de 1845 m2, que confronta pelo Norte e Oeste com ………….., Sul com ………….. e Herdeiros de ………… e Outros e pelo Leste com a Ribeira, …………., …………… e Outros, inscrito na matriz cadastral sob os artigos 21/17 (parte) e 21/18 da Secção "AQ", da referida freguesia e concelho e descrito na Conservatória de Registo Predial de Santa Cruz sob o nº 5417/20100624.

2 - Condenar-se solidariamente os RR. a demolir e a desfazerem às suas próprias expensas a totalidade da obra que integra o empreendimento do Centro Comercial de …………. e os Silos de Parqueamento Automóvel em vários pisos especificada e misturada na totalidade do prédio identificado no artigo 1º desta p. i. e, em decorrência, restituírem a totalidade do terreno em questão ao seu primitivo estado ou, em alternativa, caso não desfaçam às suas expensas toda a obra ilegal, devem ser condenados a reconhecer que os AA. têm direito em fazê-lo, sendo-lhes devolvido tal direito de demolição e de restituírem o seu prédio ao seu estado primitivo, devendo a totalidade das suas custas ser liquidada em execução de sentença, tudo acrescido de custas e condigna procuradoria."

Alegaram para o efeito, em concIusão, que são os únicos donos e possuidores plenos, em comum e sem determinação de parte ou de direito, da totalidade do prédio rústico, localizado na ………………, freguesia e concelho de Santa Cruz inscrito na matriz cadastral sob os artigos 21/17 (parte) e 21/18 da Secção "AQ" da referida freguesia e concelho e descrito na Conservatória de Registo Predial de Santa Cruz sob o n.º 5417/20100624. Sucede que as Rés, sem o consentimento ou autorização dos Autores e com prejuízo destes, procederam a obras de construção de um centro comercial e de um silo de parqueamento automóvel no aludido prédio.

Contestaram as Rés.

Para além da segunda Ré ter suscitado a sua ilegitimidade, concluíram pela improcedência da ação.

Disse a primeira Ré, em conclusão, que desconhecia que o prédio rústico em causa pertencesse aos Autores, sendo que a construção da obra em causa resultou de uma adjudicação que lhe foi feita pela Câmara Municipal de Santa Cruz.

Mais, deduziu reconvenção, peticionando que fosse declarado "o direito da Reconvinte a adquirir a título de acessão imobiliária industrial, de boa fé, o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, mediante o pagamento aos Autores/Reconvindos da quantia de Eur:67.250,00, ou outra que vier a ser fixada pelo tribunal nas perícias de avaliação a requerer para os devidos efeitos", bem como fossem os Autores condenados "a reconhecer o direito de propriedade a favor da Ré/Reconvinte E………… Lda. e abrirem mão do referido prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, a favor da mesma" e "a receber uma compensação/preço pela perda do seu direito de propriedade não superior a Eur:67.250,00, ou naquela que o tribunal vier a arbitrar após perícias de avaliação, condenando ambas as partes no valor apurado a final".

Por requerimento datado de 6 de fevereiro de 2013, os Autores deduziram o incidente de intervenção principal do Município de Santa Cruz, do Presidente da Câmara e dos Vereadores, mas que não chegou a ser apreciado. Aduziram, a propósito, que os chamados tinham interesse em tomar posição sobre a questão controvertida nos autos.

Por decisão de 3 de abril de 2014 o tribunal julgou-se incompetente em razão da matéria e absolveu as Rés da instância. Foi considerado, citando-se a propósito o art. 4º, nº 1, alínea a) do ETAF, que a competência cabia aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Transitada em julgada a decisão foi, a requerimento dos Autores e ao abrigo do nº 2 do art. 99º do CPCivil, remetido o processo ao tribunal administrativo e fiscal do Funchal.

Nesse tribunal foi admitida a intervenção principal do Município de Santa Cruz.

O chamado a intervir contestou.

Entre o mais que aduziu, suscitou a incompetência material do tribunal.

Os Autores pronunciaram-se sobre essa questão, defendendo, como aliás já haviam feito anteriormente, que a competência cabia ao tribunal judicial.

Foi depois proferida decisão que julgou materialmente incompetente o tribunal, absolvendo da instância as Rés e o Interveniente. Entendeu-se que o tribunal competente era o da jurisdição comum.

Transitada em julgado a decisão, foi suscitada junto do Tribunal dos Conflitos a resolução do conflito negativo de jurisdição assim formado.


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O Ministério Público junto deste Tribunal dos Conflitos emitiu parecer no sentido da jurisdição pertencer ao tribunal judicial.

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Cumpre apreciar e decidir.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

Plano factual

Dão-se aqui por reproduzidas as incidências Fáctico-Processuais acima descritas.

Plano jurídico-conclusivo

Não suscita dúvidas que estamos perante um conflito negativo de jurisdição, cuja resolução cabe a este Tribunal dos Conflitos (art.s 109º, nº 1 e 110º, n° 1 do CPCivil).

Isto posto:

Como tem sido reiteradamente reafirmado na jurisprudência (nomeadamente na jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos), a competência (lato sensu) dos tribunais afere-se em função dos termos da ação, tendo em consideração a pretensão formulada pelo autor e os respetivos fundamentos (assim, por exemplo, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 7 de Julho de 2016, processo nº 48/15; de 25 de Março de 2015, processo nº. 02/14; de 25 de Julho de 2015, processo nº 8/15; de 9 de Julho de 2015, processo nº 07/15; de 18 de Fevereiro de 2016, processo nº 28/15, todos disponíveis em www.dgsi.pt). Concordantemente, dizem-nos Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª ed., p. 125) que " ... a competência do tribunal deve ser aferida pelos termos da relação jurídico-processual, tal como é apresentada em juízo pelo autor, independentemente da idoneidade do meio processual utilizado". Na realidade, como indica Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, p. 91), a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, por contraposição com aquilo que será mais tarde o quid decisum), que traduz precisamente a ideia de que a competência se determina em função do objeto (pedido e seus fundamentos) da causa.

Parafraseando o acórdão deste Tribunal de 1 de Junho de 2017 (proferido no processo de conflito nº 2/16, disponível em www.dgsi.pt), podemos dizer que «Conforme resulta dos art.ºs 211, n.º 1, da CRP e 64.º do CPC, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência residual), enquanto os restantes tribunais têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.

Especificamente, no que toca à competência dos tribunais administrativos, estabelece o art.º 212.º, n.º 3, da CRP, que "Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais".

Por sua vez e em sentido coincidente, estabelece o art.º 1.º, n.º 1, do ETAF, que "Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania e competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais ".

Esta disposição remete para o artº. 4.º do ETAF a delimitação das matérias que são competência dos tribunais administrativos, procurando "tornar mais abrangente, clara e, por isso, eficaz a delimitação pelo legislador ordinário da esfera de competências dos tribunais administrativos, por referência ao critério constitucional da "relação jurídica administrativa ". (Ana Fernanda Neves, "Âmbito de jurisdição e outras alterações ao ETAF", in E-pública revista electrónica de Direito Público, n.º 2, Junho 2014, disponível em http://e-publica.pt/ambitodejurisdicao.html.)

O critério material que enforma a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa reporta-se ao conceito de relação jurídica administrativa enunciado no mencionado art.º 212.°, n.º 3, da CRP, isto é, ao conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público. (O conceito de relação jurídica administrativa consta, também, da aI. o) do n.º 1 do art.º 4.°, que se assume como uma norma residual, que abrange os litígios jurídico-administrativos não enunciados no mesmo n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.)

Vieira de Andrade, in "A Justiça Administrativa, Lições", Almedina, 3.ª ed., pág. 79, define a relação jurídica administrativa como sendo "aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido".

Por sua vez, Fernandes Cadilha, in "Dicionário de Contencioso Administrativo", Almedina, 2007, pág. 117/118, refere que "por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, interadministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica. ".

Mário Aroso de Almeida, in "O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos", Almedina, 4ª ed, pág. 57, refere que "as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis ". Ou seja, serão relações jurídicas administrativas as derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados.

É, pois, com referência ao conceito de relação jurídica administrativa que devem ser lidas e interpretadas as várias alíneas do art.º 4.º do ETAF.»

No caso vertente vemos que os Autores, dizendo-se donos do prédio em causa e prejudicados com a atuação supostamente ilícita das Rés, pretendem a condenação destas no reconhecimento de que “(...) são únicos donos e possuidores plenos, em comum e sem determinação de parte ou de direito, da totalidade do prédio rústico, localizado na ……………, freguesia e concelho de Santa Cruz, (…) inscrito na matriz cadastral sob os artigos 21/17 (parte) e 21/18 da Secção "AQ", da referida freguesia e concelho e descrito na Conservatória de Registo Predial de Santa Cruz sob o n° 5417/20100624", do mesmo passo que pretendem a condenação das Rés "(...) a demolir e a desfazerem às suas próprias expensas a totalidade da obra que integra o empreendimento do Centro Comercial de ………. e os Silos de Parqueamento Automóvel em vários pisos especificada e misturada na totalidade do prédio (...) e, em decorrência, restituírem a totalidade do terreno em questão ao seu primitivo estado ou, em alternativa, caso não desfaçam às suas expensas toda a obra ilegal, devem ser condenados a reconhecer que os AA. têm direito em fazê-lo, sendo-lhes devolvido tal direito de demolição e de restituírem o seu prédio ao seu estado primitivo, devendo a totalidade das suas custas ser liquidada em execução de sentença (...)".

Daqui decorre que o pedido dos Autores se objetiva exclusivamente no reconhecimento do seu direito de propriedade e na restituição do prédio ao seu primitivo estado. Estas pretensões visam a defesa da propriedade privada, colhendo o seu fundamento substantivo nos art.s 1311º, nº 1 e 1341º, nº 1 do CCivil.

Estamos, deste modo, perante um pedido que versa sobre contingências de uma relação jurídico-privada, regulada exclusivamente pelo direito privado (com enfoque no direito real de propriedade). Subjacente a tal pedido nada se encontra que se identifique com o conceito de relação jurídica administrativa, tal como definida nos termos acima transcritos.

Donde, a jurisdição competente para decidir sobre o presente pleito é necessariamente a comum (judicial), e não a administrativa e fiscal.

De resto, é jurisprudência pacífica deste Tribunal dos Conflitos que as ações em que se visa a defesa da propriedade devem ser conhecidas pelos tribunais comuns (assim, e para citar apenas alguns dos mais recentes, os acórdãos de 26 de Janeiro de 2017, processo nº 52/14; de 27 de Maio de 2017, processo nº 1/17; de 1 de Junho de 2017, processo nº 2/16; de 7 de Julho de 2016, processo n° 48/15, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Resta dizer que, contra o pressuposto no Tribunal Judicial de Santa Cruz, a circunstância de ter sido suscitada a intervenção do Município de Santa Cruz (sob a alegação de que este se imiscuiu no prédio e adjudicou e concessionou a obra) não altera o bem fundado do que vem de ser dito. Não apenas essa intervenção não se alicerçou em qualquer facto que se insira ao conceito de relação jurídico-administrativa, como não foi formulado qualquer pedido contra a chamada que tivesse de alguma forma alterado o objeto privatístico da causa tal como definido pelos Autores na sua petição inicial. Como adequadamente observa o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, a alusão à interferência do Município nos factos é meramente incidental, de enquadramento factual, não se fundamentando nela os pedidos formulados na ação. Acrescente-se, a propósito, que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem (art. 91º, nº 1 do CPCivil).

III - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Tribunal dos Conflitos em resolver o presente conflito de jurisdição atribuindo a competência ao tribunal judicial.

Regime de custas:

Não há lugar a custas.


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Sumário:

I – A competência dos tribunais afere-se em função dos termos da ação, tendo em consideração a pretensão formulada pelo autor e os respetivos fundamentos.

II - Incumbe aos tribunais judiciais o julgamento de ação em que um particular, invocando a realização de obras abusivas no seu prédio, pede contra outro particular o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre esse prédio e a restituição deste ao seu primitivo estado (demolição da obra).

III – Tal pretensão funda-se nos artigos 1311º e 1341º do Código Civil, tendo por base uma relação jurídica de natureza exclusivamente privatística.

IV – A circunstância do município ter sido chamado a intervir no processo, por ter adjudicado e concessionado ao réu a obra pretensamente ofensiva do direito de propriedade, não implica a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.


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Lisboa, 17 de maio de 2018. – José Inácio Manso Rainho (relator) – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – José Adriano Machado Souto de Moura – Ana Paula Soares Leite Martins Portela.