Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:04/16
Data do Acordão:06/07/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:ACIDENTE DE TRABALHO
Sumário:A competência para dirimir litígios respeitantes à reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais dos trabalhadores em funções públicas pertence aos tribunais administrativos.
Nº Convencional:JSTA000P20657
Nº do Documento:SAC2016060704
Data de Entrada:01/18/2016
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL DA COMARCA DE BEJA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DO TRABALHO E TAF DE BEJA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 04/16.
Acordam no Tribunal de Conflitos

1. A……………, devidamente identificado nos autos, intentou a presente acção administrativa comum urgente de reconhecimento de direito ou interesse legalmente protegido contra a Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo e a Caixa Geral de Aposentações.

Alega para o efeito e em síntese:

a) O autor foi trabalhador do 1º réu, com a categoria de coordenador técnico da área de recursos humanos, com relação jurídica de emprego público e em regime de contrato de trabalho em funções públicas desde 04/10/1994 até 30/09/2014, data em que se aposentou;

b) Em 08/11/2012, o autor, na sequência de um acidente, sofreu fractura de diáfise umeral direita;

c) Feita a participação do acidente dentro do prazo legal, foi o mesmo qualificado pelo 1º réu como acidente de trabalho e autorizadas as despesas nele resultantes;

d) O autor esteve incapacitado para o trabalho até ao dia 20/01/2014 data em que lhe foi dada alta clínica pela Junta Médica da ADSE com incapacidade permanente parcial;

e) No dia 20/01/2014, o 1º réu pediu junta médica ao 2º réu para efeitos de atribuição do respectivo grau de desvalorização, o que este recusou, por considerar que o autor não se encontra abrangido pelo DL nº 503/99 de 20/11;

f) Reiteradamente, o autor pediu ao 1º réu que diligenciasse no sentido de proceder à reparação do acidente de trabalho, tendo este indeferido esta pretensão em 20/01/2015;

g) O autor intentou uma acção no Tribunal do Trabalho de Beja, o qual se julgou incompetente em razão da matéria para conhecer do litígio;

h) Os réus ao não submeterem o autor à Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações para efeitos de fixação de fixação de incapacidade para o trabalho e pagamento da compensação/pensão a que tem direito, violam o disposto nos artºs 34º e 38º do DL nº 503/99 de 20/11.

Termina pedindo a condenação dos RR a submeter o autor a Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho nos termos do artº 38º do DL nº 503/99 de 20/11 e, em função da incapacidade fixada, reparar os danos sofridos, pagando-lhe a respectiva compensação, à qual devem acrescer os juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal em vigor desde a citação.


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A presente acção deu entrada e correu os seus termos com o nº 96/15.0T8BJA, no Tribunal de Comarca de Beja, Inst. Central, Secção de Trabalho, com vista ao pagamento pela Ré, Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, E.P.E., do montante que o autor entende ser-lhe devido a título de capital remição decorrente de incapacidade permanente parcial, originada pelo acidente.

Por sentença proferida em 21.04.2015, o Tribunal julgou procedente a excepção de incompetência material, declarando-se incompetente em razão da matéria para o conhecimento do pedido dirigido contra a entidade empregadora pública, considerando competente, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja.

No dia 02.06.2015, a ré Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, E.P.E., foi citada para os termos do processo urgente nos termos do disposto no artigo 48º do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, intentado pelo sinistrado no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, que correu termos com o nº 191/15.6BEBJA.

Por sentença proferida em 15.08.2015, também este Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja se julgou incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolveu os réus da instância.


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A ré, Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, E.P.E. solicitou a resolução do conflito negativo de jurisdição, formulando para o efeito as seguintes conclusões:

« – A entidade pública empresarial, ora recorrente, foi criada pelo Decreto-Lei nº 183/2008, de 4 de Setembro, presentemente, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 12/2015, de 26 de Janeiro;

2ª - É uma pessoa colectiva de direito público de natureza empresarial, nos termos do regime jurídico do sector público empresarial e da Lei nº 27/2002, de 8 de Novembro, integrada na administração indirecta do Estado e na rede de prestação de cuidados, do Serviço Nacional de Saúde, com a função de prosseguir a tarefa atribuída ao Estado de promoção e protecção da saúde (artigo 64º da Constituição da República Portuguesa) e que no cumprimento dessa missão está sujeita à superintendência do Estado, que detém unicamente o seu capital, encontra-se sujeita à superintendência do Ministro da Saúde, a quem compete aprovar os seus objectivos e estratégias, dar orientações, recomendações e directivas, que detém o seu capital e nomear as administrações;

3ª - Desde a sua integração no sector público empresarial do Estado em 2002, que o regime jurídico relativo ao pessoal é o do contrato individual de trabalho, regulado pelo Código do Trabalho e legislação conexa (cfr. artigos 14º dos DL nºs 275/2002, de 09.12, 207/2004, de 19.08 e 233/2005, de 29.12 e artigo 12º do DL nº 183/2008) mas, é também um traço comum aos referidos regimes jurídicos que, aos trabalhadores em funções públicas (à data, designados de «funcionários públicos») é garantida a manutenção integral do seu estatuto jurídico - Estatuto da Função Pública -. (vide nºs 1 dos artigos 15º dos DL nºs 275/2002, de 09.12, 207/2004, de 19.08 e 233/2005, de 29.12 e nº 1 do artigo 13º do DL nº 183/2008, de 04.09).

4ª – Pode ler-se na exposição de motivos contida no Decreto-Lei preambular aos Estatutos do Hospital B……………. – Beja, S.A. (DL nº 275/2002, de 09.12): “Com o presente diploma pretende-se consagrar a autonomia de gestão das unidades hospitalares em moldes empresariais, estabelecendo ao mesmo tempo a separação funcional entre o financiador /comprador de prestações de saúde e o prestador de cuidados de saúde, assegurando sempre o caráter unitário e universal do Serviço Nacional de Saúde, de acordo com a matriz constitucional.”

Mas, O que se pretende alterar é apenas e tão-só o modelo de gestão, mantendo-se intacta a responsabilidade do Estado pela prestação dos cuidados de saúde. (…) Por isso, não deve confundir-se a empresarialização da gestão dos serviços públicos, que é o escopo deste diploma no âmbito do Serviço público de saúde, com a privatização dos mesmos serviços. Sintoma disso é, desde logo, o facto de o diploma garantir que o capital social dos hospitais agora empresarializados seja exclusivamente assumido por entidades de capitais públicos.”

Esta filosofia e enquadramento normativo mantêm-se até à atualidade, não restando pois dúvidas da natureza exclusivamente pública das Instituições que a esta sucederam.

4ª – O sinistrado/autor nos autos, é trabalhador em funções públicas [presentemente encontra-se aposentado] sendo-lhe aplicável, à data do acidente (08.11.2012), o disposto na LVCR (Lei de Vínculos, Carreiras e Remunerações, aprovada pela Lei nº 12-A/2008, de 27 de fevereiro) e RCTFP (Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei nº 59/2008, de 11 de setembro), por força da disposição relativa ao âmbito de aplicação subjetivo e, posteriormente, a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, (aprovada pela Lei nº 35/2014, de 20 de junho, cuja vigência iniciou em 01.08.2014). Estes são factos consolidados e não contestados nos autos.

5ª - Desde a integração da Instituição, no setor público empresarial do Estado em 2002/2003, o regime jurídico relativo ao pessoal é o do contrato individual de trabalho, regulado pelo Código do Trabalho e legislação complementar (cfr. art.º 14º dos DL nºs 275/2002, de 09.12, 207/2004, de 19.08 e 233/2005, de 29.12 e art.º 12º do DL n.º 183/2008);

6ª – Mas, é também um traço comum aos referidos regimes jurídicos que, aos trabalhadores em funções públicas (à data, «funcionários públicos») é garantida a manutenção integral do seu estatuto jurídico - Estatuto da Função Pública -. (vide nºs 1 dos artigos 15º dos DL nºs 275/2002, de 09.12, 207/2004, de 19.08 e 233/2005, de 29.12 e nº 1 do artigo 13º do DL n.º 183/2008, de 04.09).

7ª - A propósito, e para o que nesta sede releva, dispõe o nº 1 do artigo 13º do DL 183/2008, sem prejuízo da opção, a todo o tempo pelo regime do contrato individual de trabalho, que “(o) pessoal com relação jurídica de emprego público que, à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, esteja provido em lugares dos quadros do (…) Centro Hospitalar do Baixo Alentejo, E.P.E., (…) bem como o respetivo pessoal com contrato administrativo de provimento, transita para a (…) Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, E.P.E. (…) sendo garantida a manutenção INTEGRAL do respetivo estatuto jurídico.”

8ª – Por conseguinte, à data do acidente era-lhe pois aplicável o regime contido no Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de novembro, [integrante, aliás, do seu estatuto jurídico] por ser o regime “(…) aplicável a TODOS os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração direta e INDIRETA do Estado” – artigo 2º, nº 1.

9ª – Aos outros trabalhadores que exerciam funções nas entidades públicas empresariais – titulares de contrato individual de trabalho -, era, nos termos do nº 4 do mesmo artigo 2º, aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho;

10ª – Com a revogação expressa da LVCR e do RCTFP, pelas alíneas c) e e) do artigo 42º da lei preambular à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei nº 35/2014, de 20 de junho), passou a ser aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nas entidades públicas empresariais, “(o) regime do Código do Trabalho e legislação complementar, em matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais (…)” nº 4 do artigo 4º, com referência à previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 2º da LTFP.

11ª – No entanto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 12º da LTFP, atente-se que, “(s)ão da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de emprego público”;

12ª – É o caso do litígio dos presentes autos que, conforme deles se alcança, emerge de vínculo de emprego público;

13ª – Efetivamente, a atribuição legal da competência aos tribunais administrativos encontra-se ademais, prevista também, quer no nº 3 do artigo 212º da Constituição da República Portuguesa, quer no artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2012, de 19 de fevereiro.

14ª – Com efeito, os tribunais integrados na jurisdição administrativa e fiscal exercem a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais (nº 1 do artigo 1º do ETAF);

15ª - “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto: a) a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;” (artigo 4º); É o caso dos autos.

16ª – E, os tribunais da jurisdição administrativa, são ainda competentes para a apreciação de “(q)uestões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, (…) ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública (…);” (alínea f) do artigo 4º do ETAF)

17ª - Excluída da competência dos tribunais administrativos fica a “(…) apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas.”

18ª - O acidente de trabalho que motivou a propositura da presente ação foi um acidente ocorrido em execução de um contrato de trabalho em funções públicas, firmado com uma pessoa coletiva de direito público, que integra a administração indireta do Estado.

Por conseguinte, as funções que o sinistrado exercia qualificavam-se como funções públicas;

19ª – Os presentes autos devem pois ser julgados e decididos pelo Tribunal Administrativo territorialmente competente, no uso do “regime do Código do Trabalho e legislação complementar, em matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais (…)”, nos termos conjugados dos artigos 4º, n.º 4 e 12º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em concretização da norma constitucional prevista no n.º 3 do artigo 212º da Lei Fundamental;

20ª – Os normativos referidos foram ignorados na douta sentença do TAF de Beja. Se tivessem sido considerados e aplicados, a decisão teria sido, certamente diferente e legal, julgando o Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, competente em razão da matéria».


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Os autos foram remetidos ao Tribunal de Conflitos.

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Cumpre apreciar e decidir.

2. A factualidade com relevo para a resolução do conflito a decidir e que resulta dos autos, é a supra referida em sede de relatório.


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Estamos perante um conflito negativo de jurisdição motivado pela pronúncia de duas decisões judiciais, de sentido inverso, emitidas, primeiro, por um tribunal da jurisdição comum e, subsequentemente, por um tribunal da jurisdição administrativa e fiscal, decisões que, mutuamente, declinaram a competência material para dirimir o litígio submetido a juízo e já transitadas.

O poder jurisdicional, é sabido, encontra-se repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas que perante eles se suscitam - cfr. arts. 209º e segs da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Nos termos do disposto no art. 211º, nº 1 da CRP, os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas.

Estabelecendo o art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26/8 – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (também o art. 64º do CPC).

Por sua vez, art. 212º, nº 3 da CRP estabelece que, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Também o artº 1º, nº 1 do ETAF estatui que, “os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

A existência de várias categorias de tribunais supõe, naturalmente, um critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objectiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, dar origem a conflitos de jurisdição.

A determinação do tribunal competente em razão de matéria, é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respectivos fundamentos, ou seja, afere-se por referência à relação jurídica controvertida, tal como exposta na petição inicial, atendendo-se ainda à identidade das partes, pretensão formulada e respectivos fundamentos, sendo, no entanto, nesta fase, indiferente o juízo de prognose acerca da viabilidade ou não da acção, face à sua configuração - cfr. entre muitos outros, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 28-09-2010, processo nº 2/10 de 29-03-2011, processo nº 2510, de 02-03-2011, processo 9/10 e de 09-09-2010, proc. 011/10.

É, pois, inequívoco que a competência é apreciada em função da causa de pedir e pedido, aferidos à data da propositura da acção, em que está em causa o reconhecimento de um direito, acção esta proposta por um trabalhador, com vista a ser submetido a junta médica da CGA para efeitos de incapacidade para o trabalho nos termos do DL nº 503/99 de 20/11 e em função dessa incapacidade fixada, serem reparados os danos por si sofridos, atribuindo-lhe uma compensação, acrescida de juros.

Estamos, assim, perante um trabalhador em funções públicas, vinculado à entidade empregadora por um contrato de trabalho em funções públicas, detendo com esta, uma relação jurídica de emprego público.

De acordo com a posição avançada pelo TAF de Beja, é aplicável o nº 4 do artº 2º do DL nº 503/99 de 20/11, na redacção dada pela Lei nº 59/2008 de 11/09, nos termos do qual «aos trabalhadores que exerçam funções em entidades publicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 99/2003 de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade dos danos emergentes de acidentes de trabalho, nos termos previstos naquele Código».

Assim, considerou a decisão do TAF de Beja que, aplicando-se ao trabalhador o regime do Código de Trabalho, o Tribunal competente para apreciar questões emergentes de acidentes de trabalho, seria o Tribunal de Trabalho.

Por seu turno, o Tribunal de Trabalho de Beja, tendo em conta o alegado pelo trabalhador, considerou que o tribunal competente para apreciar as questões emergentes do acidente em serviço ocorrido é o Tribunal Administrativo nos termos dos nºs 1, 2 e 3, al. d) do ETAF.

Cumpre decidir, cientes dos considerandos supra enunciados quanto à causa de pedir e pedido formulados pelo autor na presente acção, sendo este, repete-se, à data do acidente, titular de uma relação jurídica de emprego público no regime de contrato de trabalho em funções públicas com a Unidade Local de Saúde, na qualidade de pessoa colectiva de direito público de natureza empresarial.

Ou seja, ao autor é-lhe aplicável o disposto na LVCR [Lei de Vínculos, Carreiras e Remunerações, aprovada pela Lei nº 12-A/2008, de 27 de Fevereiro] e RCTFP (Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro), por força da disposição relativa ao âmbito de aplicação subjectivo e, posteriormente, a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas [aprovada pela Lei nº 35/2014, de 20 de Junho, cuja vigência iniciou em 01.08.2014].

Por seu turno, a Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo é uma pessoa colectiva de direito público de natureza empresarial nos termos do regime jurídico do sector público empresarial do Estado e da Lei nº 27/2002, de 8 de Novembro – artigo 1º dos Estatutos das ULS, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei nº 15/2015, de 26 de Janeiro – integrada na administração indireta do Estado e na rede de prestação de cuidados do Serviço Nacional de Saúde, para os efeitos do disposto no Regime Jurídico da Gestão Hospitalar, nos termos do qual, se regem “pelo respectivo diploma de criação, pelos seus regulamentos internos e pelas normas em vigor para os hospitais do SNS que não sejam incompatíveis com a sua natureza jurídica e subsidiariamente, pelo regime jurídico geral aplicável às entidades públicas empresariais” – nº 1 do artigo 18º da Lei nº 27/2002, de 8 de Novembro.

Assim, desde a sua integração no sector público empresarial em 2002/2003, o regime jurídico relativo ao pessoal é o do contrato individual de trabalho, regulado pelo Código do Trabalho e legislação complementar (cfr. artº 12º do DL nº 183/2008).

Temos, pois, que à data do acidente de trabalho dos autos (08.11.2012) era aplicável a previsão do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, cujo nº 1 do artigo 2º dispunha “(o) disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado”.

Acautelando-se no nº 4 do mesmo artigo 2º que “(a)os trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código.”

A lei de Vínculos, Carreiras e Remunerações (Lei nº 12-A/2008, de 27 de Fevereiro) e o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro), foram revogados pelas alíneas c) e e) do artigo 42º da Lei preambular à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei nº 35/2014, de 20 de Junho), que iniciou vigência no dia 01.08.2014, doravante designada por LTFP.

Ora, nos termos do disposto na alínea b) do artigo 5º da LTFP, “(c)onstam de diploma próprio (…) o regime de acidentes de trabalho e doenças profissionais dos trabalhadores que exercem funções públicas; (…)”, sendo que o nº 4 do artigo anterior – artigo 4º -, dispõe que “(o) regime do Código do Trabalho e legislação complementar, em matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais, é aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nas entidades referidas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 2º.”

Acresce que, por força do disposto no nº 6 artigo 1º, a LTFP é aplicável a outros trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas que não exerçam funções nas entidades referidas nos números 1 a 5 do mesmo artigo 1º.

E pese embora a redacção, a previsão do nº 6 do artigo 1º da LTFP, corresponde ao que já se previa no artigo 2º da LVCR, nos termos do qual, a referida Lei de Vínculos, Carreiras e Remunerações já era aplicável aos trabalhadores em funções públicas (independentemente da modalidade de vinculação e de constituição da relação jurídica de emprego público), que exercessem funções públicas em entidades excluídas do seu âmbito de aplicação objetivo, como era o caso das entidades públicas empresariais (cfr. nº 5 do artigo 3º da LVCR).

Resulta do exposto que a LTFP é aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nas entidades públicas empresariais, e que, nos termos do disposto nos respectivos Estatutos, hajam mantido o estatuto jurídico da função pública (cfr. nº 1 do artigo 13º do Decreto-Lei nº 183/2008, de 4 de Setembro, que aprovou os Estatutos da ULSBA, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 12/2015, de 26 de Janeiro) e que não tenham optado pelo regime do contrato de trabalho (cfr. nº 5 do artigo 13º do mesmo decreto-lei), como é o caso do trabalhador [em funções públicas] sinistrado/autor nos presentes autos.

Cremos, pois, que nesta nova redacção, o legislador pretendeu submeter as matérias de acidentes de trabalho e doenças profissionais dos trabalhadores em funções públicas, das entidades públicas empresariais, ao regime abrangido na Lei dos Acidentes de Trabalho – Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro -, regulamentado por força do disposto no artigo 284º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro com as alterações subsequentes).

Concomitantemente, nos termos do disposto no artigo 12º da LTFP, sob a epígrafe «Jurisdição competente», “(s)ão da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de emprego público”, como é o caso.

Resulta desta forma, expressamente, que a competência para dirimir litígios respeitantes à reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais dos trabalhadores em funções públicas pertence aos Tribunais Administrativos.

Com efeito, o facto de ao acidente de trabalho configurado e sofrido pelo autor ser aplicável não o DL nº 503/99 de 20/11, mas sim o regime de acidentes de trabalho estabelecido no Código do Trabalho, por força do disposto no nº 4 do artº 2º do DL nº 503/99 e do artº 5º da Lei nº 35/2014 de 20/06 que aprovou a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, não significa que por esse motivo seja o Tribunal de Trabalho o competente para decidir a acção sub judice, pois a questão da aplicabilidade do DL nº 503/99 defendida pelo autor, é aqui irrelevante para aferir da competência do tribunal em razão da matéria – cfr. neste sentido o Acórdão do Tribunal de Conflitos proferido em 06/02/2014, in proc. nº 024/12, que se pronúncia sobre questão idêntica.

Por último, há que atender no disposto na alínea f), do nº 1 do artigo 4º do ETAF [na redacção à data em vigor] que expressamente prevê que compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo (…) ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública (…).

3. Pelo exposto, julga-se que a competência para a acção cabe aos tribunais administrativos.

Sem custas.

Lisboa, 7 de Junho de 2016. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – António Manuel Ribeiro Cardoso – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – António Pires Henriques da Graça.