Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03880/21.2T8VFR.S1
Data do Acordão:04/19/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Cabe à jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a apreciação de um litígio relativo à “validade de actos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos”, ainda que o concurso se destine à celebração de contratos de trabalho com uma entidade pública.
Nº Convencional:JSTA000P29331
Nº do Documento:SAC2022041903880
Recorrente:........
Recorrido 1:CENTRO HOSPITALAR DE ENTRE O DOURO E VOUGA, EPE
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Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 28 de Setembro de 2021, AA, residente no ..., requereu no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, contra o Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, EPE (sendo contrainteressado BB), uma providência cautelar, pedindo que fosse decretada:
«A. suspensão da deliberação do conselho de administração datada de 14/07/2021 relativa à nomeação do aqui contrainteressado.
B. impossibilidade em celebrar o contrato de comissão de serviços com o aqui contrainteressado.»
Alegou, em suma, que o contrainteressado foi nomeado para o cargo de diretor de serviço, em regime de comissão de serviço, pela deliberação do Conselho de Administração do requerido de 14 de Julho de 2021; mas que essa deliberação padece de “diversos vícios conducentes a ilegalidades, conducentes à respectiva nulidade ou anulação”, designadamente falta de fundamentação, violação do direito de audiência de interessados, prevista no art. 121.º do CPA, violação de lei, por “falta de pressupostos legais para o provimento do cargo” e “violação de princípios constitucionais de igualdade e imparcialidade da administração”, legalidade, boa-fé e transparência.
O Centro Hospitalar Entre o Douro e Vouga, EPE, deduziu oposição, sustentando a falta de pressupostos da providência requerida
Por decisão de 2 de Dezembro de 2021, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro julgou-se incompetente em razão da matéria, por estarem em causa “relações jurídicas laborais estabelecidas mediante instrumentos que expressamente se designaram de ‘contratos de trabalho’ (… ou ‘contrato individual de trabalho’ “, regulados pelo Código do Trabalho, privadas, “as quais, por sua vez, subjazem ao concurso de recrutamento aqui submetido a litígio”; “o próprio concurso de recrutamento dirige-se à formação de uma relação contratual disciplinada pelo Código do Trabalho (…)”.

Concluiu, portanto, que a competência para o seu conhecimento cabe aos tribunais judiciais, nos termos do art. 4.º, n.º 4, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Em 16 de Dezembro de 2021, a autora requereu a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira, o que veio a ser determinado por despacho de 17 de Dezembro de 2021.
Por despacho de 17 de Janeiro de 2022, o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juiz do Trabalho de Santa Maria da Feira – Juiz 1, referindo que a requerente “se conformou com a decisão proferida pelo TAF de Aveiro, em virtude da urgência da situação, não obstante considere ser a jurisdição administrativa a competente “, julgou-se materialmente incompetente para conhecer do litígio e absolveu o requerido da instância.
Para tanto considerou, em suma, que o objeto da lide “não são os vínculos contratuais que unem a requerente e o contrainteressado ao requerido, mas antes o procedimento (concurso) de recrutamento levado a cabo pelo requerido para a contratação de um diretor de serviço de gastrenterologia”, ou seja, “um momento prévio à constituição do vínculo laboral”.
Acrescentou que o acto administrativo impugnado é a deliberação de 14 de Julho de 2021 do Conselho de Administração do requerido, não estando em causa qualquer litígio que decorra de um contrato de trabalho, e que “a acção administrativa principal a que os presentes autos de procedimento cautelar respeita, encontra-se pendente no TAF de Aveiro (…)”.
O requerido pronunciou-se no sentido de a competência pertencer à “jurisdição administrativa”.
Por despacho de 15 de Fevereiro de 2022 do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juiz do Trabalho de Santa Maria da Feira – Juiz 1, foi determinada a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos.
Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça para resolução do conflito negativo de jurisdição, foi determinado pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).
Nos termos do n.º 4 do respectivo artigo 11.º, o Ministério Público proferiu parecer, no sentido de a competência caber ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, por estar em causa a impugnação do “procedimento concursal”.

2. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.
Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar a providência cautelar requerida, se os tribunais judiciais – nos quais se integram os tribunais do trabalho e que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) –, se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente providência tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Tem especial relevo o n.º 4 deste artigo 4.º, cuja al. b) exclui da competência dos tribunais administrativos “a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público”, “com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”, excepção introduzida como al. d) do n.º 3 do artigo 4.º pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, e que está em consonância com a atribuição aos tribunais administrativos e fiscais da competência para apreciar “os litígios emergentes do vínculo de emprego público”, resultante do artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.
Trata-se de uma providência cautelar proposta antes da acção definitiva; a relação de dependência relativamente à acção determina que a providência lhe seja apensada (n.ºs 1 e 3 do artigo 113.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), o que significa que a competência para apreciar a providência acompanha a competência para julgar a acção.
Uma vez que o presente conflito de jurisdição respeita à providência, vai resolver-se tomando como referência a deliberação do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, EPE, cuja suspensão é requerida.

3. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, que se reitera, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).
Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.
A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.

4. Como se viu, o artigo 4.º, n.º 4, alínea b), do ETAF, vigente já à data da propositura da ação, excluiu do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro considerou que deste preceito resulta expressamente a “subtracção de competência” da jurisdição administrativa e fiscal para “o caso dos autos”, “uma relação jurídica que o direito administrativo não é chamado a reger ou a disciplinar”, pois se trata “de matéria regulada por direito privado” – decisão de 2 de Dezembro de 2021; o Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira, todavia, discordou deste entendimento, baseando a competência da jurisdição administrativa no “preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF" (decisão de 17 de Janeiro de 2022), segundo a qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”. Conforme explica José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 109), esta alínea e), que veio alargar o “âmbito da jurisdição administrativa relativamente à cláusula geral de definição substancial” desse âmbito – apreciação de litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (op. cit., pág. 106 e segs.) –, relativamente a contratos.

5. No caso dos autos, a autora insurge-se contra a deliberação do Conselho de Administração do requerido, de 14 de Julho de 2021, relativa à nomeação de contrainteressado no âmbito de procedimento de recrutamento para diretor de serviço de gastrenterologista, cargo para o qual também apresentou candidatura.
Alegou, para o efeito, que a deliberação, que pretende ver suspensa, enferma de vários vícios conducentes à respetiva nulidade ou anulação. Assim:
- afirma ter sido violado o direito de audiência prévia, previsto no art. 121.º do CPA, por não lhe ter sido dada a possibilidade de participar no procedimento tendente à tomada de decisão;
- refere que a candidatura do contrainteressado deveria ter sido indeferida liminarmente porquanto o mesmo não reúne os requisitos legais previstos para o preenchimento do cargo;
- alega que ao estabelecer um conjunto de critérios vagos para a apreciação das candidaturas, a comissão violou os princípios da igualdade, da imparcialidade, da boa-fé e da não discriminação e que, ao impedir os candidatos de conhecer em tempo útil as regras aplicáveis, desrespeitou o princípio da divulgação atempada dos critérios de avaliação e do sistema de classificação final dos candidatos, em violação dos princípios da imparcialidade e da transparência.
O Decreto-Lei nº 27/2009, de 27 de Janeiro, criou o Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, E. P. E., por integração do Hospital de S. Sebastião, E.P.E., do Hospital Distrital de São João da Madeira e do Hospital de São Miguel – Oliveira de Azeméis.
Decorre do artigo 1.º e do Anexo I do Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de Fevereiro, que o Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, EPE, tem a natureza de entidade pública empresarial.
Em 14 de Junho de 2021, foi publicado o Aviso n.º 10971-B/2021 (Publicado no DR 2.ª Série, de 14/06/2021, Parte G, n.º 113, pág. 390 – (4), cfr. https://www.chedv.min-saude.pt/wp-content/uploads/sites/26/2021/06/gastro.pdf), para “Recrutamento de Diretor/a do Serviço de Gastrenterologia do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, E. P. E.”, ali constando, além do mais, o seguinte:
1 — Enquadramento — Nos termos do n.º 3 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de fevereiro, faz-se público que, por Deliberação do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, E. P. E., de 09 de junho de 2021, se encontra aberto, pelo prazo de 10 (dez) dias úteis, um processo de acolhimento de manifestação de interesse individual conducente ao recrutamento de Diretor/a do Serviço de Gastrenterologia.
2 — Âmbito — Podem materializar a manifestação de interesse individual os/as médicos/as Especialistas em Gastrenterologia inscritos/as no respetivo Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos, vinculados/as a qualquer instituição do Serviço Nacional de Saúde, detentores/as deum currículo profissional robusto (assistencial, organizativo, formativo, científico e/ou académico) e de um programa de desenvolvimento e gestão clínica para o Serviço de Gastrenterologia desta instituição.
3 — Conteúdo funcional e a remuneração — O conteúdo funcional e a remuneração são os estabelecidos na carreira médica em vigor, bem como nos princípios e regras aplicáveis às unidades de saúde que integram o Serviço Nacional de Saúde com a natureza de entidade pública empresarial, conforme o Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de fevereiro.
4 — Regime de trabalho — O período normal de trabalho é de 40 horas semanais, sem prejuízo da aplicação das regras previstas no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 266-D/2012, de 31 de dezembro”.
Trata-se pois de um procedimento para Recrutamento de Diretor/a do Serviço de Gastrenterologia do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, E. P. E., aberto nos termos do n.º 3 do art. 28.º do Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de Fevereiro.
O Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de Fevereiro, regula o Regime Jurídico e os Estatutos aplicáveis às unidades de saúde do Serviço Nacional de Saúde com a natureza de Entidades Públicas Empresariais, bem como as integradas no Setor Público Administrativo.
Nos termos do art. 27.º daquele diploma,
1 - Os trabalhadores das E. P. E., integradas no SNS estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, nos termos do Código do Trabalho, bem como ao regime constante dos diplomas que definem o regime legal de carreira de profissões da saúde, demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e regulamentos internos.
2 - As E. P. E., integradas no SNS devem prever anualmente uma dotação global de pessoal, através dos respetivos orçamentos, considerando os planos de atividade.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 31.º, as E. P. E., integradas no SNS não podem celebrar contratos de trabalho para além da dotação referida no número anterior.
Dispõe, por outro lado, o art. 28.º do mesmo diploma:
1 - Os processos de recrutamento devem assentar na adequação dos profissionais às funções a desenvolver e assegurar os princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade, da boa-fé e da não discriminação, bem como da publicidade, exceto em casos de manifesta urgência devidamente fundamentada.
2 - Os diretores de departamento e de serviço de natureza assistencial são nomeados de entre médicos, inscritos no colégio da especialidade da Ordem dos Médicos correspondente à área clínica onde vão desempenhar funções e, preferencialmente, com evidência curricular de gestão e com maior graduação na carreira médica.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 1, os procedimentos com vista à nomeação de diretor de serviço devem ser objeto de aviso público, de modo a permitir a manifestação de interesse individual.
A propósito de questão similar à dos autos, consta da fundamentação do acórdão do Tribunal dos Conflitos de 11 de Janeiro de 2017, proferido no processo n.º 020/14, disponível em www.dgsi.pt:
“Seguramente que não estamos perante um litígio emergente de uma relação contratual existente, hipótese para a qual a al. d) do n.º 3 do art.º 4.º do ETAF forneceria resposta imediata, mas perante um litígio respeitante ao seu procedimento de formação.(…)
É na natureza deste procedimento que reside a divergência.
Adianta-se que se afiguram evidentes as notas de administratividade neste procedimento pré-contratual. Na verdade, a exigência de um procedimento formalizado previamente à contratação, ainda que mediante contrato de direito privado, e os princípios que o legislador manda observar nesse procedimento concursal (lato sensu) são impostos pela natureza pública do empregador. Na verdade, a Administração Pública, ainda quando autorizada a agir na obtenção dos ditos “recursos humanos” por meios jurídicos de direito privado, não tem o grau de autonomia dos restantes empregadores na selecção e recrutamento. Mesmo para estabelecer relações regidas pelo direito laboral comum, a lei estabelece com frequência um procedimento destinado a tornar efectivo o conjunto de regras de direito público a que deve obedecer. Com efeito, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, aplicam-se ao estabelecimento de relações de trabalho na Administração Pública, independentemente da natureza pública ou privada da vinculação, as regras do art.º 47.º, n.º 2, da Constituição, que impõe a igualdade de condições no acesso ao emprego, a publicitação da oferta de emprego e a garantia de imparcialidade na apreciação dos candidatos, assegurada pela fundamentação da decisão de contratar (cfr. ac. do TC n.º 61/2004 e jurisprudência nele citada). É para garantia do respeito por esta vinculação fundamental da Administração no acesso ao emprego público e não como instrumento de mera salvaguarda do direito geral dos trabalhadores à igualdade no acesso ao mercado do trabalho (cfr. Art.º 24.º do Cod. do Trabalho) que o legislador torna obrigatório o procedimento de recrutamento e selecção em causa.
Assim, o litígio a que a acção respeita insere-se na relação jurídica de direito administrativo que no âmbito deste procedimento concursal (lato sensu) se estabelece entre o ente público obrigado à abertura do procedimento em razão dessa qualidade e os candidatos que se apresentem (uma relação potencialmente poligonal) e não na relação contratual de direito privado entre cada trabalhador médico e o estabelecimento público em que serve.
Tanto basta para concluir que as resoluções dos litígios respeitantes aos procedimentos de seleção para contratação de pessoal médico em regime de contrato individual de trabalho cabem no âmbito da jurisdição administrativa ao abrigo das als. a) e e) do n.º 1, não sendo dela excluídos pela al. d) do n.º 3, do art.º 4.º do ETAF (red. então vigente, actualmente al. d) do n.º 4 do art.º 4).
E não convence a objecção de que também os contratos privados podem ser precedidos de concurso ou de um procedimento mais ou menos formalizado de escolha do contraente. Isso é exacto, mas nesses casos a opção pelo procedimento concursal resulta juridicamente de uma manifestação da autonomia privada do contraente, segundo a avaliação que faça do que lhe é mais vantajoso, e não de uma imposição legal cuja observância é imposta ao ente público nessa qualidade de empregador público e para salvaguarda de um interesse diferenciado do interesse imediato de provisão com “recursos humanos” (os princípios fundamentais do emprego público).
Veja-se, ainda, mais recentemente o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 13/10/2021, processo n.º 02140/21.3T8PRT.S1, www.dgsi.pt, que igualmente seguiu a doutrina definida neste acórdão de 11 de Janeiro de 2017: “(…) O pedido de anulação formulado nesta acção tem como causas de pedir vícios que o autor atribui ao procedimento de concurso e à decisão do respectivo júri; o pedido de condenação à prática de acto administrativo devido assenta nessa anulação. Não se trata, portanto, de um litígio entre o autor e a ré que decorra de um contrato de trabalho, não valendo assim a exclusão da jurisdição administrativa e fiscal constante da al. b) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. (…) Como se recordou já, também aqui está em causa a impugnação do procedimento de concurso e da deliberação do júri e não um conflito emergente de contrato de trabalho”.

6. Ora, no caso dos autos, está em causa uma providência cautelar referida à impugnação do procedimento concursal e a um conflito emergente do contrato de trabalho a estabelecer entre o Centro Hospitalar de Entre o Vouga e o candidato que vier a ficar colocado em primeiro lugar no mencionado procedimento.
Note-se, aliás, que um dos vícios que a requerente aponta à deliberação é o da preterição do direito de audiência prévia previsto no artigo 121.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo.
Por fim, atente-se no facto de a requerente pretender não só o decretamento da suspensão da deliberação do conselho de administração de 14 de Julho de 2021, mas também da impossibilidade de celebração do contrato de comissão de serviços com o aqui contrainteressado.

7. Assim, e porque está fundamentalmente em causa um litígio relativo à “validade de actos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos” (José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., pág. 109), a sua apreciação cabe à jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; concretamente, ao Tribunal Administrativo territorialmente competente para julgar a acção de que a providência depende (n.º 6 do artigo 20.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 19 de Abril de 2022. – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.