Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:017/13
Data do Acordão:05/30/2013
Tribunal:CONFLITOS
Relator:SANTOS CARVALHO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ENTIDADES PRIVADAS
TRIBUNAL COMPETENTE
EMPRESA CONCESSIONÁRIA
Sumário:I — A jurisdição administrativa é competente para conhecer de uma ação sumaríssima onde se pede a condenação de uma sociedade de capitais privados, concessionária de uma autoestrada, em determinada quantia indemnizatória, por danos materiais decorrentes de um acidente de viação ocorrido nessa via, alegadamente provocado por ter havido omissão de alguns deveres que lhe incumbiam, decorrentes do contrato de concessão.
II - A al. i) do art.° 4º do ETAF indica que são da competência dos tribunais administrativos os litígios sobre a “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público” e o art.° 1.º, n.° 5, da Lei 67/2007 de 31/12 (diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas) dispõe que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, (...), por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, (...), por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.
III - As entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), têm a sua atividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo.
IV - Na verdade, a construção de uma autoestrada, a sua exploração, manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, são tarefas próprias da administração do Estado. A outorga dessas tarefas, por determinado período, a terceiro da esfera privada, a quem se permite obter lucros económicos (através, nomeadamente, das portagens, regulamentadas também pelo Estado), é regulada e fiscalizada ao abrigo de normas jurídicas de natureza administrativa que ficam inscritas no contrato de concessão.
Nº Convencional:JSTA00068285
Nº do Documento:SAC20130530017
Data de Entrada:02/07/2013
Recorrente:A............, LDA, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 2º JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE VILA DO CONDE E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITOS
Objecto:SENT TCIV VILA DO CONDE.
SENT TAF PORTO.
Decisão:DECL COMPETENTE TAF PORTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO
Legislação Nacional:L 67/2007 DE 2007/12/31 ART1 N5.
ETAF02 ART4 I
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC025/09 DE 2010/01/20
Referência a Doutrina:CARLOS ALBERTO CADILHA - REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E DEMAIS ENTIDADES PUBLICAS PAG49.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.° 17/13

Acordam no Tribunal de Conflitos
1. “A…………, Lda.”, sociedade com sede na Av. da ………, ………, ………, ………, 4710-……… Braga, intentou no Tribunal da comarca de Vila do Conde uma ação sumaríssima contra “B…………, S.A.”, sociedade com sede na Rua …………, ………… – …………, 4455-………… ………… — Matosinhos, pedindo que fosse condenada a lhe pagar a quantia de € 875,00, acrescida de juros vincendos, contados desde a citação, a título de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, pois no dia 24 de setembro de 2011, pelas 01.10, na autoestrada n.° 7 (A7) ao Km 1,1 no sentido V. Conde - V. N. Famalicão, em Touguinha, no Concelho de Vila do Conde, o veículo ………… propriedade da A. e conduzido por C…………, foi embater num animal de raça canina que se encontrava em plena faixa de rodagem, o que provocou danos no veículo e prejuízos pela sua não utilização durante o tempo que durou a reparação, danos e prejuízos que calculou pelo mencionado valor.
Alegou que a Ré é a concessionária da autoestrada n.° 7, na zona onde se deu o acidente e que o contrato de concessão define as obrigações exigidas à B…………, durante a vigência do dito contrato de concessão, obrigações essas que existem também em benefício dos utentes das autoestradas, os quais estabelecem uma relação jurídica com a B…………, cada vez que pagam portagem e nelas circulam. O Decreto-Lei relativo a essa concessão estipula o dever de a concessionária manter a autoestrada em perfeitas condições de utilização, dever que incide sobre a autoestrada entendida como um todo, como um conjunto formado pela pista de asfalto, e por todas as infraestruturas e obras acessórias que a integram nomeadamente, sinais, equipamentos de segurança, iluminação, vedação etc. Ora se a pista de asfalto faz parte do referido conjunto, recai sobre a R. a obrigação de zelar para que a mesma se encontre desimpedida constantemente, o que, por negligência da R, não sucedeu, permitindo que o dito animal circulasse na faixa de rodagem durante bastante tempo e provocasse o acidente.

2. Distribuída a petição ao 2.° Juízo de Vila do Conde, logo o Mm.° Juiz lavrou despacho a considerar esse tribunal incompetente em razão da matéria para o conhecimento da ação, tal como foi proposta pela Autora, sendo competentes os tribunais administrativos, pelo que absolveu a Ré da instância.
Considerou-se nesse despacho que «Estabelece a alínea i) do artigo 4.° do ETAF (aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de fevereiro) que cabe aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação dos litígios que tenham por objeto “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”, tendo-se aqui deixado cair a distinção que antes a lei impunha entre atos de gestão pública ou atos de gestão privada.
No caso dos autos, e perante o que supra já se deixou dito, sem dúvida que está em causa a eventual responsabilidade civil extracontratual da ré B…………, S.A. a qual tem a seu cargo a fiscalização e manutenção, em condições de segurança, da via objeto do contrato de concessão celebrado entre ela e o Estado (Decreto-Lei n.° 248-A/99, de 6/7, alterado pelo Decreto-Lei n.º 44-E/2010, de 5/5); e a causa de pedir radica precisamente nestas obrigações da ré, que alegadamente terão sido violadas.
De acordo com o art.° 1.º, n.º 5, da Lei n.° 67/2007 de 31 de dezembro (que estabelece o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas) “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.
Resulta assim do exposto que apesar de a ré ter a qualidade de pessoa coletiva de direito privado, é aplicável ao caso o regime previsto para a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas de direito público, em face de estar em causa ato ou omissão àquela imputável no âmbito de atividade (concessão) regulada por disposições ou princípios de direito administrativo.
(...)
Deste modo, e por força da já citada alínea i) do art.° 4.° do ETAF cabe aos Tribunais Administrativos a competência para o litígio dos autos.»

3. A “A…………, Lda.” intentou, por isso, nova ação contra a mesma Ré, pelos mesmos factos e com os mesmos fundamentos, agora no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.

Porém, o Juiz a quem nesse Tribunal foi distribuído o processo também declarou a incompetência em razão da matéria dos tribunais administrativos para conhecer da ação e absolveu a Ré da instância.

Disse, no respetivo despacho, essencialmente, o seguinte:

«Seja qual for o tipo de responsabilidade que ao caso cumpra chamar [seja a responsabilidade contratual, seja a responsabilidade extracontratual], a verdade é que do que se fala quando se fala da ação tal como vem desenhada pela autora é de uma controvérsia entre uma entidade privada, a autora, e outra entidade privada, a Ré, que não é nem mais nem menos do que uma sociedade anónima, constituída em termos de direito privado.

Uma sociedade anónima, a quem o artigo segundo do Decreto-Lei n.° 248-A/99, de 6 de julho, outorga a concessão da conceção, projeto, construção, financiamento, exploração e conservação de lanços de autoestrada e conjuntos viários associados na zona norte de Portugal nos termos das bases anexas a este decreto e que dele fazem parte integrante; uma sociedade anónima que aliás, de acordo comum a Base X, deste inicial diploma, terá por objeto exclusivo o exercício das atividades que, nos termos do Contrato de Concessão, se consideram integradas na Concessão, devendo manter ao longo do mesmo período a sua sede em Portugal e a forma de sociedade anónima.

De qualquer modo, uma pessoa coletiva de direito privado.

De qualquer modo, também diga-se, uma concessionária.

E é por esta via, por este alinhamento, que devemos procurar no E.T.A.F. [Lei n.° 13/2002 de 19 de fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 4-A/2003, de 19 de fevereiro e 107- D/2003, de 31 de Dezembro], em vigor desde 1 de janeiro de 2004, a solução para o nosso conflito.

Chama-se, por isso, a norma do artigo 4.º, n.° 1, do citado ETAF que prevê que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto [cfr. al. i)] a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas públicas.

No caso dos autos, dúvidas não subsistem que a Ré assume, em função da sua natureza jurídica [SA], a qualidade de sujeito privado, pelo que lhes é aplicável o regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados plasmado na alínea i) do n. 1 do artigo 4.° do E.T.A.F.

Tal convicção surge particularmente reforçada pelo facto de, nos termos da base LXXIII da concessão, serem da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer atividade decorrente da concessão.

O Estado concedente afasta de si, e da sua natureza pública, as relações da Ré com terceiros, reconduzindo a concessionária à sua natureza de pessoa coletiva de direito privado.

Destarte, considerando que a aplicação deste último [regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados] está dependente de existência de norma expressa que submeta o apontado sujeito privado ao referido regime de responsabilidade, que não se mostra existir no caso dos autos, resulta forçoso concluir que, com referência ao pedido formulado pela Ré, este Tribunal é materialmente incompetente para dele conhecer».

4. A Autora dirigiu então ao Presidente do Tribunal da Relação do Porto um requerimento tendo em vista a resolução do conflito negativo de competência que se gerara, mas esse Tribunal remeteu os autos ao Tribunal de Conflitos.

5. O Sr. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal de Conflitos pronunciou-se pela atribuição de competência material ao TAC do Porto, dizendo, nomeadamente, o seguinte:

«A Ré na ação é uma pessoa coletiva de direito privado. Mas isso não afasta a aplicação ao caso do disposto no art.° 4.º, n.º 1 - i) do atual ETAF (Lei n.° 13/002) e antes referido acima. Tanto mais que do Contrato de Concessão celebrado entre o Estado Português e aquela resulta à evidência que as ações desta são reguladas “por disposições ou princípios de direito administrativo” (bases da concessão aprovadas pelo D. L. n.° 248-A/991 de 6 de julho; definição e natureza do contrato administrativo em causa e demais acertos definidores do procedimento, todos de natureza jurídico-pública).

E se, antes, alguma dúvida pudesse existir a questão agora está devidamente esclarecida com o disposto no n.° 5 do art.º 1.º da Lei n.° 67/07 de 31 de dezembro - “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade de pessoas colectivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Esta norma, no fundo, veio estender o regime de responsabilidade administrativa, previsto nesta Lei, às pessoas coletivas de direito privado dando seguimento ao disposto no art.º 4.° n.° 1 - i) do ETAF».

6. A Autora e a Ré do pedido indemnizatório foram convidadas a pronunciar-se, mas nada disseram.

7. Colhidos os vistos, vieram os autos à conferência no Tribunal de Conflitos, a qual se processou de acordo com o formalismo legal.

Cumpre decidir.

A questão em análise respeita a um conflito negativo sobre competência material, suscitado entre um tribunal cível e um tribunal administrativo, relativamente a uma ação sumaríssima onde se pede a condenação de uma sociedade privada, concessionária de autoestrada, numa determinada quantia indemnizatória, por danos materiais decorrentes de um acidente de viação ocorrido nessa via, alegadamente provocado por ter havido omissão de alguns deveres que lhe incumbiam, decorrentes do contrato de concessão.

Para dirimir tal conflito, importa atender à ação tal como foi proposta pela Autora, quer no seu pedido, quer na causa de pedir. Tem de se considerar, por isso, a relação jurídica material em debate e o pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pela demandante.

A competência em razão da matéria, «deriva da competência das diversas espécies de tribunais dispostos horizontalmente, isto é, não mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supraordenação e subordinação”, sendo que "na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objeto encarado sob o ponto de vista qualitativo — o da natureza da relação substancial pleiteada. Trata-se pois de uma competência “ratione materiae”. A instituição de diversas espécies de tribunais e da demarcação da respetiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes» [ Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 94.].

No caso em apreço, a Autora pede a condenação de uma sociedade privada (uma sociedade anónima de capitais privados), concessionária de uma autoestrada, a pagar-lhe uma indemnização por responsabilidade civil extracontratual, decorrente de alegada violação das obrigações próprias dessa concessão (não ter tomado providências na área da sua concessão para impedir que circulasse na faixa de rodagem um animal, pondo em risco a segurança dos utentes da autoestrada).

Como é sabido, a competência material dos tribunais comuns é residual, pois cabe-lhes apreciar as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. Nesse sentido dispõe o art.° 211.° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. Do mesmo modo, o art.° 18.° da LOFTJ (Lei n.° 3/99, de 13 de janeiro, atualizada até à Lei n.° 105/2003, de 10.12) e também o art.° 66.° do C. P. Civil, dispõem que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Já quanto à competência material dos tribunais administrativos, o art.° 212.° n.° 3 da Constituição estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. No mesmo sentido, o art.° 1.º n.° 1 do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Lei 13/2002 de 19/2 — com as alterações pela Lei 4-A/2003 de 19/, 107-D/2003 de 31/12 e Lei n.° 20/2012, de 14 de maio) afirma que “os tribunais administrativos e fiscais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

O art.° 4.º do ETAF define com mais precisão qual o âmbito da competência material dos tribunais administrativos, pois discrimina em diversas alíneas qual o objeto dos litígios que compete apreciar aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Interessa-nos agora a al. i) desse art.° 4.° do ETAF, onde se indica que são da competência dos tribunais administrativos os litígios sobre a “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”.

Na verdade, a divergência que está na base do conflito de competência que surgiu entre os referidos tribunais, tem origem no facto do tribunal cível comum entender que a matéria da referida ação sumaríssima cabe no âmbito dessa alínea i), enquanto o tribunal administrativo afirma que tal matéria tem a ver apenas com relações jurídicas privadas, num litígio que envolve duas pessoas coletivas privadas.

Ora, a pergunta a fazer, perante o referido art.° 4.°, al. i), do ETAF, é a de saber em que circunstâncias um sujeito privado tem de assumir a responsabilidade civil extracontratual própria do regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.

A resposta tem de se encontrar nos art.° 212.°, n.° 3, do CRP e no art.° 1º do ETAF, pois serão casos em que o sujeito privado é responsável civilmente num litígio emergente de relações administrativas (ou fiscais) extracontratuais.

Mas, em que consiste a relação jurídica administrativa?

Mário Aroso de Almeida (in Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, pág. 57) indica que “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”.

Também para os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição Anotada, 3ª edição, 815) indicam que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1- as ações e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente) da administração; 2 - as relações controvertidas são reguladas sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico civil. Em termos positivos, um litígio emergente da relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.

No acórdão do STA de 3-11-04 (in www.dgsi.pt.jsta.nsf), invocando-se o Prof. Freitas do Amaral (Lições de Direito Administrativo, edição 1989, Vol. III, págs. 439, 440) definiu-se a relação jurídica administrativa como “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”.

Diz-se no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20-01-2010 (conflito n.° 25/09), que decidiu caso idêntico ao dos autos e que, por isso, temos vindo a acompanhar quase textualmente, o seguinte: «Significa isto que a competência dos tribunais administrativos e fiscais abrangerá as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados desde que a eles deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público. Considerou-se aqui, implicitamente, ser adequado entender as relações firmadas, como relações jurídicas administrativas.

Existiu, segundo cremos, por banda do legislador, o propósito de estender a competência dos tribunais administrativos e fiscais a áreas de jurisdição que antes não eram. O regime introduzido atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais a todas as questões de responsabilidade civil envolvendo pessoas coletivas de direito público (vide alíneas g) e h) do referido art.° 4.º n.º 1), independentemente de se saber se as mesmas eram regidas por normas de direito público ou por normas de direito privado, indo ainda mais além ao aplicar essa competência à responsabilidade civil extracontratual dos próprios privados desde que lhes deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público».

O art.° 1.°, n.° 5, da Lei 67/2007 de 31/12 (diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas) dispõe que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Como diz Carlos Alberto Cadilha “...tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às ações ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os atos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas coletivas privadas” (“Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”, pág. 49).

Como se viu, nos termos do art.° 1,º n.° 5 da Lei 67/2007, são dois os fatores determinativos do conceito de atividade administrativa. O primeiro refere-se ao exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade. O segundo respeita a atividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Ora, as entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), têm a sua atividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo.

Na verdade, a construção de uma autoestrada, a sua exploração, manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, são tarefas próprias da administração do Estado. A concessão dessa obras e serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respetivas atividades percam a sua natureza pública administrativa, pois o Estado não pode abrir mão dessa responsabilidade. Antes a outorga, por determinado período, a terceiro da esfera privada, a quem permite obter lucros económicos (através, nomeadamente, das portagens, estas também regulamentadas pelo Estado), mas regulando-a e fiscalizando-a, ao abrigo de normas jurídicas de natureza administrativa que ficam inscritas no contrato de concessão.

Na verdade, nos termos do contrato de concessão celebrado entre a Ré (da referida ação sumaríssima) e o Estado, o que se concretizou através do Dec.-Lei n.° 248-A/99, de 6/7, alterado pelo Dec.-Lei n.° 44-E/2010, de 5/5, estabelece-se, na Base II que «A Concessão tem por objeto a conceção, projeto, construção, financiamento, exploração e conservação, em regime de portagem, dos Lanços...» e na Base III que «A Concessão é de obra pública e é estabelecida em regime de exclusivo relativamente às Autoestradas que integram o seu objeto». Na Base VII, o Estado reafirma que se trata de concessão de domínio público, pois «As zonas das Autoestradas e os conjuntos viários a elas associados que constituem o estabelecimento físico da Concessão integram o domínio público do concedente». Na Base XLIV afirma-se que «A Concessionária deverá manter as Autoestradas em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam». Na Base LVII diz-se que «A Concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas Autoestradas».

Como se diz no referido Ac. do Tribunal de Conflitos: «Destas normas é possível inferir-se que a atividade a desenvolver pela R. no âmbito da concessão em causa, desenvolve-se num quadro de índole pública. A entidade privada concessionária da autoestrada, é notoriamente chamada a colaborar com a Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão, através de um contrato administrativo, pelo que as ações e omissões da R. concessionária se devem integrar e ser reguladas por disposições e princípios de direito administrativo».

É certo que a Base LXXIII, acerca da responsabilidade extracontratual perante terceiros, indica que «A Concessionária responderá, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das atividades que constituem o objeto da Concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo Concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito». Mas, no contexto do diploma que estabeleceu a concessão, a referência que é feita à “lei geral” significa apenas que a responsabilidade pelos prejuízos resultantes de responsabilidade civil extracontratual não está regulada por normas inscritas no contrato de concessão, mas pelas normas gerais que regulam tal matéria, sem tomar partido sobre a sua natureza, administrativa ou comum.

Assim sendo, como a Autora pretende ser ressarcida com vista a receber uma indemnização, em razão de uma invocada responsabilidade extracontratual da Ré, em consequência de uma omissão de dever a que estava obrigada na qualidade de concessionária da autoestrada em questão, lícito é concluir que a sua eventual responsabilização se insere no âmbito de aplicação do art.° 1.°, n.° 5, da Lei 67/2007 e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes para conhecer da causa (art.° 4.° n.° 1 al. i) do ETAF).

9. Pelo exposto, acordam no Tribunal de Conflitos em julgar competente o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto para julgar o pleito instaurado pela Autora “A…………, Lda.” contra “B…………, S.A.”.

Lisboa, 30 de Maio de 2013. – José Vaz dos Santos Carvalho (relator) – Rosendo Dias José – Maria Clara Pereira de Sousa Santiago Sottomayor – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho – João Moreira Camilo - Alberto Augusto Andrade de Oliveira.