Sentença de Julgado de Paz
Processo: 64/2010-JP
Relator: DIONÍSIO CAMPOS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL - RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
Data da sentença: 07/20/2010
Julgado de Paz de : COIMBRA
Decisão Texto Integral:
SENTENÇA

1. – IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
Demandante: A
Demandado: B
2. – OBJECTO DO LITÍGIO
A presente acção foi intentada com base em “responsabilidade civil”, tendo o Demandante pedido a condenação do Demandado a mudar o seu cão do logradouro da parte da frente da casa para o de trás da mesma e ainda a pagar ao Demandante a quantia de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, bem como em custas e procuradoria.
Para tanto e em síntese, o Demandante alegou que é vizinho do Demandado, cujas residências são geminadas, e que este coloca o seu cão no logradouro da parte da frente da sua residência, onde ladra e gane incessantemente de dia e de noite, não permitindo que o Demandante descanse e durma, nem mesmo ocupe os seus tempos livres e de estudo, uma vez que o quarto, a sala e o escritório do Demandante situam-se na parte da frente do seu prédio; o Demandado recusa-se a mudar o cão do logradouro da frente para o da parte de trás da sua casa; devido a esta situação, o Demandante não dorme o tempo considerado normal, sofre de dores de cabeça, ansiedade e nervosismo, e é prejudicado no estudo necessário para o regular andamento e desenvolvimento da sua actividade de homeopata, abandonou o passatempo de montagem de aviões e barcos em miniatura, e apresenta sintomas de quadro depressivo e problemas de natureza cardíaca; foi internado no Serviço de Cardiologia B dos HUC onde lhe foi aplicado um pacemaker por agravamento da insuficiência cardíaca; estes factos constituem violação da sua integridade física e psíquica, e ofensa ilícita e ameaça de ofensa à sua personalidade física e moral, pelo que pretende uma compensação de € 5.000,00 por danos não patrimoniais.
O Demandado, regularmente citado, contestou por impugnação, concluindo pela improcedência do pedido, contra-argumentando em síntese, que nunca esteve ameaçada a saúde pública ainda que tenuemente, e que é totalmente falso que o cão permaneça dia e noite no logradouro da parte da frente do prédio, uma vez dorme sempre no logradouro de trás, no jardim da casa, protegido pelo vão das escadas do jardim, dentro de uma casota apropriada para o animal; mas é natural que o cão esteja por vezes no logradouro da frente, sem que tal implique a violação de qualquer direito do Demandante; em 11/12/2008, foi interpelado à porta da sua casa, com uma série de insultos verbais por parte do Demandante, factos que foram relatados à PSP; é falso que o cão gana incessantemente: ladra ocasionalmente como qualquer cão, não perturbando a paz, direito ao silêncio ou o direito ao sono de qualquer pessoa; o Demandante é o único vizinho que se queixa do ladrar do cão, animal com um carácter pacífico e dócil; desde há pelo menos 6 anos que o Demandante sempre demonstrou comportamentos típicos do quadro de depressão, e sempre se mostrou uma pessoa introvertida, anti-social, nunca cumprimentando os vizinhos, com os quais está envolvido em litígios.
Valor da acção: € 5.000,00.
3. – FUNDAMENTAÇÃO
3.1 – Os Factos
3.1.1 – Os Factos Provados
Consideram-se provados e relevantes para o exame e decisão da causa os seguintes factos:
1) Demandante e Demandado são vizinhos, residindo em moradias geminadas contíguas.
2) Em Novembro de 2008, um cão abandonado começou a permanecer nas imediações das moradias em causa.
3) O Demandado e o seu filho, bem como os vizinhos do lote 00, alimentaram o cão em recipientes para o efeito.
4) A equipa de captura/recolha de animais do Canil Municipal tentou por diversas vezes capturar o cão, mas sem êxito porque este fugia sempre para o logradouro da residência do Demandado.
5) O Serviço Médico Veterinário da Câmara Municipal recolheu o cão para o Canil Municipal.
6) Em 15/01/2009, o referido cão foi adoptado pelo Demandado.
7) O cão permanece na casa de habitação do Demandado como qualquer animal de companhia, por aí circulando normalmente, quer pelo interior quer pelos logradouros da frente e da traseira.
8) Principalmente na primavera e verão, durante o dia, o Demandado costuma colocar o cão no logradouro da parte da frente da sua casa.
9) Durante a noite, o Demandado costuma colocar o cão a dormir no jardim das traseiras da sua casa, em local protegido pelo vão das escadas do jardim, dentro de uma casota apropriada.
10) O Demandado costuma fornecer a alimentação ao cão no logradouro das traseiras, e facultar-lhe um recipiente com água no logradouro da frente da casa.
11) O cão ladra ocasionalmente como qualquer cão do seu porte e espécie.
12) Quando se encontra na parte da frente da casa, o cão ladra com maior frequência quando o Demandado e/ou sua família chegam a casa ou quando se apercebe de algum transeunte ou veículo que passa na rua ou se aproxima da casa.
13) O quarto, a sala e o escritório do Demandante situam-se na parte da frente da sua casa.
14) Nessas divisões situadas na parte da frente da casa do Demandante ouve-se mais o ladrar do cão quando este está também no logradouro do lado da frente da casa do Demandado.
15) Quando o cão permanece no logradouro da parte da frente da casa do Demandado o ruído do cão a ladrar perturba o descanso, o sono e o sossego do Demandante.
16) Quando o cão permanece no logradouro da parte de trás da casa do Demandado o ladrar do cão não incomoda o Demandante.
17) As partes, assim como o Demandante em relação a outros vizinhos, têm estado envolvidos em diversos diferendos de relacionamento interpessoal.
18) O Demandante também é dono de um cão que mantém na sua casa de habitação.
3.1.2 – Os Factos Não Provados
Não se provaram os factos não consignados, designadamente:
19) O cão gane e ladra incessantemente de dia e de noite “por tudo e por nada.
20) O ladrar e ganir do cão perturbam o Demandante na montagem de miniaturas de aviões e barcos, e no seu estudo de aperfeiçoamento profissional para o exercício da homeopatia.
21) O Demandante deixou de montar os aviões e barcos em miniaturas, passatempo a que habitualmente se dedicava, em virtude do ruído provocado pelo cão.
22) O Demandante não tem estudado o suficiente para o regular andamento e desenvolvimento da sua actividade profissional de homeopata, em virtude do ruído provocado pelo cão.
23) O Demandante não tem iniciado e terminado a sua actividade profissional às horas que o fazia antes, em virtude do ruído provocado pelo cão.
24) A perturbação nos tempos livres e no estudo causada ao Demandante pelo ruído do cão leva a que o Demandante se irrite e se veja forçado a sair de casa e a vaguear pelas ruas.
25) O ruído provocado pelo cão não permite ao Demandante dormir o tempo considerado normal e causa-lhe dores de cabeça, ansiedade e nervosismo.
26) A situação decorrente do ruído provocado pelo cão tem causado ao Demandante transtornos e incómodos de natureza geral, designadamente nas relações com clientes, amigos e familiares, tendo começado com tendência para o isolamento e a introversão, e passado a irritar-se com facilidade e a comportar-se com sintomas de um quadro depressivo.
27) Os ruídos provocados pelo cão têm agravado os problemas cardíacos do Demandante.
28) O Demandante esteve internado no Serviço de Cardiologia B dos Hospitais da Universidade de Coimbra em consequência das perturbações causadas pelos ruídos do cão.
29) O agravamento da insuficiência cardíaca causado pelo ruído do cão levou a que fosse aplicado um pacemaker ao Demandante, que foi internado para isso nos HUC.
3.1.3 - Motivação
A convicção do tribunal fundou-se nos autos, nos documentos apresentados, nas declarações das partes e nos depoimentos das sete testemunhas apresentadas: (…).
Quanto às testemunhas apresentadas pelo Demandante, verificou-se que todas elas se encontram a ele ligadas por próximos vínculos familiares, sendo a 1.ª sua filha (vive nas Caldas da Rainha visita o pai uma ou duas vezes por mês), a 2.ª seu irmão (vive em Amarante e vem a casa do irmão de dois em dois meses) e a 3.ª sua mulher (que com ele convive), o que determinou que os respectivos depoimentos tivessem merecido credibilidade na medida do adequado. Quanto às testemunhas apresentadas pelo Demandado, verificou-se que todas elas, vizinhos das partes e amigos do Demandado, tiveram conhecimento prévio da matéria dos autos por este, conforme confessou, lhes ter antecipadamente fornecido cópia dos mesmos; em resultado, os respectivos depoimentos não mereceram credibilidade probatória.
3.2 – O Direito
Na presente acção, o Demandante pede que o Demandado seja condenado a mudar o seu cão do logradouro da parte da frente da casa para o de trás da mesma e ainda a pagar ao Demandante a quantia de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, bem como em custas e procuradoria.
Estamos aqui perante uma situação e interesses conflituantes que as partes poderiam ter solucionado por si, recorrendo a regras de bom senso e paz vicinal, mas verificou-se que tal se tornou impossível face ao ponto de rotura a que chegou o seu relacionamento interpessoal.
Provou-se, em resumo e no mais relevante, que Demandante e Demandado vivem em moradias geminadas contíguas; o Demandado adoptou um cão de companhia colocando-o, pelo menos na primavera e verão e durante o dia, no logradouro da parte da frente de sua casa e, durante a noite, no logradouro da parte de trás; o cão ladra ocasionalmente como qualquer cão do seu porte e espécie, mas com maior frequência quando, estando na parte da frente da casa do Demandado, se aproximam pessoas ou veículos; quando o cão está na parte da frente da casa do Demandado o ladrar do canídeo perturba o descanso, o sono e o sossego do Demandante, porquanto o seu quarto, sala e escritório estão situados nas divisões de sua casa voltadas também para o lado da frente; quando o cão está no logradouro da parte de trás da casa do Demandado, o seu ladrar não incomoda/perturba o Demandante.
A emissão de ruído pelo ladrar de um cão, enquanto potencial acto danoso, os seus efeitos lesivos e a tutela dos direitos e interesses envolvidos, podem ser encarados, no caso, por duas ópticas principais: a dos direitos da personalidade, enquanto ofensa do direito fundamental à integridade física ou moral da pessoa humana (art. 25.º, n.º 1 da CRP e art. 70.º do CC), e a do direito de propriedade, no âmbito das restrições e limites legalmente impostos a esse direito, designadamente de vizinhança (art. 62.º, n.º 1 da CRP e arts. 1305.º e 1346.º do CC).
Com efeito, os direitos ao descanso, ao sono e ao sossego são direitos da personalidade, reconduzíveis ao direito fundamental à integridade física e moral da pessoa humana e ao direito à protecção da saúde, senão mesmo também ao direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, que se encontram constitucional e civilmente consagrados e tutelados (arts. 25.º, n.º 1, 64.º, n.º 1 e 66.º, n.º 1 da CRP, art. 70.º do CC e arts. 2.º, n.º 1 e 22.º, n.º 1 al. f) da LBA).
Porém, em caso de perturbações causadas pelo ruído de um canídeo, não estaremos somente perante um mero conflito de vizinhança nas relações entre donos e possuidores de prédios vizinhos, por motivo da respectiva fruição, mas perante um conflito entre o direito a possuir animais domésticos, ou a livre utilização do seu prédio, e outros direitos, como o direito ao descanso, ao sono e ao sossego, que constituem direitos fundamentais da personalidade.
Donde decorre uma relação tendencialmente conflituante entre direitos constitucionalmente garantidos – o direito ao descanso, ao sono e ao sossego, enquanto direitos da personalidade – e o direito de propriedade – levando à necessidade de dirimir a colisão de direitos (art. 335.º do CC) daí resultante no contexto do caso.
Ora, atendendo à hierarquia decorrente das normas constitucionais, não pode deixar-se de ter em conta a real prevalência dos direitos da personalidade enquanto direitos fundamentais, relativamente ao direito de propriedade; contudo, na medida do possível, haverá que tentar respeitar este direito, ponderando a sua limitação em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, ou seja, na proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal dos interesses agredidos.
Na verdade, a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça à sua personalidade física ou moral e, independentemente da responsabilidade civil a que eventualmente haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas à circunstância do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida (art. 70.º do CC).
Nesse contexto, e para além do âmbito do DL 314/2003, de 17-12 e do DL 276/2001, de 17-10 (republicado pelo DL 315/2003, de 17-12), não havendo na lei disposição que, directamente e em termos gerais, impeça ou condicione a detenção de um animal de companhia, em caso de violação de outros direitos que se sobrepõem ao direito de propriedade e de posse do animais, o tribunal pode e deve impor determinados requisitos para que a posse se mantenha ou seja possível.
Por outro lado, a ilicitude de um comportamento ruidoso que prejudique o descanso, o sono e o sossego de terceiro, radica no facto de, injustificadamente e para além dos limites do socialmente tolerável, lesar tais baluartes da integridade pessoal, dispensando a ilicitude, nesta perspectiva, a aferição do nível do ruído por padrões legais estabelecidos (neste sentido, Ac. STJ de 17-01-2002: www.dgsi.pt). Por isso, a lesão dos direitos da personalidade do Demandante, direitos fundamentais que são, não pode ceder perante o comportamento ilícito causador do dano que, por isso, não merece tutela legal.
Ora, na fixação de uma indemnização deve o tribunal atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496.º do CC). No caso, os factos provados que consubstanciam a ofensa aos direitos da personalidade do Demandante derivam do ladrar do cão.
Não obstante no caso de detenção de animal de companhia impender sobre o respectivo detentor um especial dever de vigilância de forma a evitar que do comportamento desse animal advenha risco de lesão dos direitos de outras pessoas (neste sentido, Ac. RP de 09-04-2008: www.dgsi.pt), no caso não estamos perante uma situação de responsabilidade objectiva ou de culpa presumida, e da prova produzida não resultou a culpa do Demandado.
Conclui-se, assim, que não se encontram reunidos os indispensáveis pressupostos da obrigação de indemnizar (arts. 483.º, 487.º, 562.º e 563.º do CC), pelo que a peticionada indemnização de € 5.000,00 por danos não patrimoniais não pode ser deferida.
Consequentemente, improcede também o pedido formulado relativo a juros de mora.
Porém, no sentido de evitar a consumação repetida da ameaça de novas lesões aos direitos de personalidade do Demandante (art. 70.º, n.º 2 do CC), deve o Demandado assegurar-se que o seu cão permanece normalmente no logradouro das traseiras da sua casa, o que obviamente não quer dizer que o mesmo não possa transitar pelo logradouro da parte da frente ou permanecer também dento da habitação (o que, em audiência de julgamento, o Demandado declarou já fazer, apesar de não o ter provado), dando-se assim satisfação a esta parte do pedido.
Pede ainda o Demandante a condenação do Demandado em custas e procuradoria condigna.
Ora, a condenação em custas resulta legalmente do decaimento na acção e não do pedido das partes, e a procuradoria, que se encontrava prevista no CCJ (art. 40.º e ss.) como um direito da parte vencedora a receber do vencido uma quantia a título de reembolso com o dispêndio que teve com o mandato judicial, desapareceu com a revogação do CCJ pelo RCP, passando tal despesa a ser judicialmente contada nas custas de parte. Porém, o que é aqui decisivo é que a já não existente procuradoria nunca foi aplicável nos julgados de paz, que têm uma lei própria quanto a custas, a Portaria n.º 1456/2001, de 28-12, onde estas correspondem a uma taxa única plana por cada processo tramitado, o que não permite que nelas seja contada a despesa de procuradoria, pelo que esta é inaplicável neste tribunal.
4. – Decisão
Face ao que antecede, e de acordo com as disposições legais aplicáveis, julgo a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência, condeno o Demandado a fazer permanecer normalmente o seu cão no logradouro da parte de trás da sua casa, por contrapartida ao logradouro da parte da frente, sem prejuízo de por aqui o fazer passar em trânsito, e da sua permanência dentro de casa; e absolvo-o do pagamento ao Demandante da peticionada indemnização por danos não patrimoniais.
Custas: pelo Demandante, por ter decaído no valor que atribuiu à acção (correspondente ao valor da peticionada indemnização), pelo que o declaro parte vencida nos termos do n.º 8 da Port. n.º 1456/2001, de 28-12.
As custas devem ser pagas no Julgado de Paz no prazo de 3 (três) dias úteis a contar da notificação desta sentença, sob pena do pagamento de uma sobretaxa diária de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no efectivo cumprimento dessa obrigação (n.º 10 da Port. n.º 1456/2001, de 28-12, alterado pela Port. n.º 209/2005, de 24-02).
O sentido da decisão e dos seus fundamentos foi explicado às partes em audiência de julgamento, na qual estas declararam não poder comparecer para a leitura da sentença por razões de carácter profissional, pelo que vão ser notificadas por correio.
Cumpra o art. 9.º da Port. n.º 1456/2001 relativamente ao Demandado, e notifique o Demandante para o pagamento das custas devidas.
Registe e notifique.
Coimbra, 20 de Julho de 2010
O Juiz de Paz,
(Dionísio Campos)
Revisto pelo signatário. Verso em branco.