Sentença de Julgado de Paz
Processo: 31/2017-JPBBR
Relator: CARLA ALVES TEIXEIRA
Descritores: COMPRA E VENDA PARA CONSUMO
DESCONFORMIDADE DO BEM
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Data da sentença: 04/20/2018
Julgado de Paz de : BOMBARRAL-OESTE
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

Relatório:

A intentou a presente acção declarativa contra B, pedindo a condenação desta na restituição da quantia de € 381,65, correspondente ao preço de um computador que lhe adquiriu.
Alega, para tanto, que o referido computador avariou 4 vezes, sendo que 3 delas ocorreram no espaço de 3 meses, quando ainda se encontrava dentro do período de garantia legal, pelo que aquando da última avaria, devolveu o computador à Demandada e pretende a devolução do valor que despendeu na aquisição do mesmo.
Juntou 10 documentos.
A Demandada foi regular e pessoalmente citada e apresentou Contestação, onde confirmou as avarias ocorridas, alegando que as mesmas poderão ter ocorrido pela forma de utilização do equipamento ou programas instalados pelo Demandante, pois advêm do software e não do hardware, sendo que, de qualquer modo, as garantias são prestadas pelas marcas, sendo ela uma mera intermediária.
Juntou 2 documentos.
Uma vez que as Partes não lograram chegar a acordo na fase da mediação, procedeu-se à marcação da audiência de discussão e julgamento, que se realizou com observância do formalismo legal. No início da audiência de julgamento foi o Demandante convidado a aperfeiçoar o seu Requerimento Inicial, tendo, em resposta a tal convite, declarado que utilizava o computador para fins pessoais, no âmbito dos seus estudos, e esclarecido em que datas detectou os defeitos que reclamou à Demandada, factos que não foram impugnados por esta, conforme consta da respectiva acta.

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Estão reunidos os pressupostos de regularidade da instância e não há excepções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.

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Fixa-se à causa o valor de € 381,65 (trezentos e oitenta e um euros e sessenta e cinco cêntimos) - cfr. artigos 306º n.º 1, 299º n.º 1, 297º n.º 1 e 2 do CPC, ex vi do artigo 63.º da Lei 78/2001, de 13 de Julho, na redacção que lhe foi dada pela Lei 54/2013, de 31 de Julho (de ora em diante abreviadamente designada LJP).

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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

A) FACTOS PROVADOS:
A) Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1 – A Demandada é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de artigos eléctricos e electrodomésticos, importações e exportações.
2 – Em 06.12.2015, o Demandante adquiriu à Demandada um computador portátil, da marca XXXXX, pelo preço de € 381,65, titulado pela factura n.º XXXX.
3 – O Demandante era, à data, estudante, e utilizava o computador para os trabalhos que realizava no âmbito do mestrado.
4 – Em 22.06.2016 o Demandante detectou que o teclado apresentava uma folga na zona central, sendo necessário fazer pressão para conseguir escrever.
5 – O Demandante reclamou o referido defeito à Demandada, de imediato, tendo entregue o computador na loja desta para reparação.
6 – A Demandada enviou o computador para a XXXXX que procedeu à substituição do teclado, tendo o computador sido devolvido ao Demandante, em data não apurada.
7 – Em 24.11.2016 o computador começou a bloquear, sendo necessário desligá-lo “à força” no botão.
8 - O Demandante reclamou o referido defeito à Demandada, de imediato, tendo entregue o computador na loja desta para reparação.
9 - A Demandada enviou o computador para a XXXX que procedeu à reinstalação do sistema operativo, tendo o computador sido devolvido ao Demandante em 14.12.2016.
10 – Dois dias depois, em 16.12.2016 o Demandante detectou o mesmo problema no computador: bloqueava inesperadamente e era necessário desligá-lo no botão.
11 – Uma vez que o Demandante estava a concluir um trabalho e precisava do computador, manteve-o nestas condições, tendo reclamado o defeito, novamente, à Demandada em 17.01.2017.
12 – A Demandada enviou o computador para a XXXX que procedeu à substituição do disco rígido e do sistema operativo, tendo o computador sido devolvido ao Demandante em 25.01.2017.
13 – Em 31.01.2017, o Demandante tentou utilizar o computador e o écran começou a piscar, não sendo possível realizar qualquer operação.
14 – O Demandante reclamou este defeito à Demandada em 03.02.2017.
15 – Nessa mesma data, o Demandante entregou o computador na loja da Demandada, e exigiu a devolução do preço que havia pago pelo mesmo.
16 – A Demandada recusou a devolução do valor, pelo que o Demandante apresentou uma reclamação no livro de reclamações.
17 – Em Fevereiro de 2017, a Demandada interpelou o Demandante para que procedesse ao levantamento do computador na sua loja, o que este recusou.
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B) FACTO NÃO PROVADO:
1 – As anomalias detectadas no computador devem-se ao mau uso do equipamento e/ou aos programas nele instalados pelo Demandante.
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C) MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal relativamente à factualidade supra descrita, resulta da análise crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência de vida, dos factos admitidos por acordo, dos documentos juntos, das declarações do Demandante e dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento.
Concretizando:
- facto provado n.º 1: resulta da certidão permanente da Demandada a fls. 84 a 97.
- factos provados n.º 2 a 17: resultam todos de admissão por acordo entre as partes. Com efeito, o facto n.º 3 e as datas em que as avarias foram detectadas pelo Demandante foram alegados no início da audiência de julgamento, após convite ao aperfeiçoamento, não tendo sido impugnados pela Demandada, e tendo sido comprovados, também, pela testemunha C. Os factos relativos à aquisição do computador, às avarias manifestadas, às reclamações apresentadas pelo Demandante e respectivas datas, às reparações efectuadas pela X, à recusa do Demandante em levantar o computador após a última reparação, foram todos admitidos, por acordo, nos articulados.
De todo o modo, e ainda que assim não tivesse sido, tais factos resultariam sempre provados pela conjugação dos documentos juntos aos autos a fls. 5 a 17, 42, 43 e 75 a 81, com as declarações do Demandante, e os depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de audiência de julgamento.

- facto não provado n.º 1: resulta da ausência de prova nesse sentido. Com efeito, apenas a testemunha D se referiu a esse facto como sendo uma possibilidade, mas apenas no plano das meras hipóteses, tendo declarado desconhecer, em absoluto a causa das avarias neste caso concreto. Nenhuma outra prova foi produzida pela Demandada quanto a este facto, sendo certo que das declarações do Demandante e da testemunha que apresentou resultou que este fazia um uso cuidado do computador, apenas o usando para os trabalhos do mestrado, sem ter instalado quaisquer programas que o pudessem danificar, o que, se fosse o caso, teria sido detectado aquando das reparações efectuadas.

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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO:

Está em causa nos presentes autos a resolução do contrato celebrado entre as Partes, com a consequente devolução do preço pago, ao Demandante.
Há que começar por qualificar o referido contrato e o regime jurídico que lhe é aplicável. Provou-se que o Demandante adquiriu à Demandada o computador portátil identificado no facto provado n.º 2, pelo preço de € 381,65.
Dispõe o artigo 874º do CC que: “Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.”
O contrato celebrado entre as Partes foi, assim, uma compra e venda, que teve como obrigações para a Demandada a entrega do computador, com a transmissão da sua propriedade ao Demandante e, por parte deste, o pagamento do respectivo preço.
Provou-se, também, que a Demandada se dedica ao comércio de artigos eléctricos e electrodomésticos, e que o Demandante era estudante e utilizava o computador para a elaboração de trabalhos, no âmbito dos seus estudos.
Dispõe o artigo 1ºB do DL 67/2003 de 8 de abril com as alterações introduzidas pelo DL 84/2008 de 21 de maio que: “Consumidor é aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios (…)”, sendo que o regime estabelecido por tal diploma legal é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores – cfr. artigo 1º-A n.º 1 do mesmo DL.
Estamos, assim, perante um contrato de compra e venda para consumo, ao qual são aplicáveis as disposições previstas no referido diploma legal, que regula a venda de bens de consumo e as garantias a ela relativas, e bem assim, na Lei da Defesa do Consumidor (doravante LDC, aprovada pela Lei 24/96 de 31/07, alterada pelo DL 67/2003 de 08.04) e outros diplomas avulsos que visam a tutela dos direitos do consumidor.
Nos termos do regime jurídico aplicável, o consumidor tem direito, entre outros, à qualidade dos bens e serviços, que deverão ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor – cfr. artigos 3º n.º 1 a) e 4º da LDC.
Por seu lado, o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda, presumindo-se essa desconformidade, nomeadamente, quando os bens não sejam adequados às utilizações habitualmente dadas a bens do mesmo tipo ou quando não apresentem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem – cfr. artigo 2º n.º 1 e 2 c) e d) do DL 67/2003 de 8 de abril.
As faltas de conformidade que se manifestem no prazo de 2 anos a contar da data da entrega de um bem móvel presumem-se existentes já nessa data, respondendo o vendedor pelas mesmas – cfr. artigo 3º n.º 1 e 2 do mesmo DL.
No caso em análise, o computador adquirido pelo Demandante avariou, por quatro vezes, sendo que numa das vezes o teclado deixou de funcionar, em duas outras vezes o computador bloqueava e na última vez o écran apenas piscava sem permitir realizar qualquer outra operação. Dúvidas não restam de que as avarias detectadas pelo Demandante consubstanciam uma desconformidade do computador ao abrigo das citadas disposições legais, uma vez que o mesmo não apresentou a qualidade e desempenho habituais em bens do mesmo tipo, e que se podem razoavelmente esperar, nem se mostrou adequado às utilizações habitualmente dadas a este tipo de bens.
Verifica-se, também, que todas as desconformidades referidas se manifestaram no prazo de 2 anos desde a aquisição (06.12.2015) e que o Demandante as reclamou, todas, no prazo de 2 meses a contar da data em que as detectou – cfr. factos provados n.º 2, 4, 5, 7, 8, 10,11, 13 e 14 – pelo que a Demandada, enquanto vendedora do bem, responde por essa falta de conformidade – cfr. artigos 5º e 5º-A n.º 1 e 2 do mesmo DL.
E, neste caso, o consumidor tem direito a que a conformidade seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato – cfr. artigo 4º do citado DL 67/2003 de 8 de abril.
Continua a verificar-se alguma divergência, na doutrina e na jurisprudência, sobre se estes direitos do consumidor obedecem a uma hierarquia.
Porém, atento o disposto no n.º 5 do mesmo artigo, não nos restam dúvidas de que o consumidor pode exercer qualquer um dos direitos que a Lei tem ao seu dispor, optando por aquele que mais lhe convier, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso do direito. Ou seja, não existe uma hierarquia de direitos, sendo que o único limite à escolha do consumidor será o abuso do direito (uma vez que no caso a resolução não se mostra impossível).
Dispõe o artigo 334 º do Código Civil que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Resulta da factualidade provada que o computador em causa apresentou quatro avarias consecutivas, entre Junho de 2016 e Fevereiro de 2017, sendo que as três últimas ocorreram no espaço de cerca de 2 meses, e sendo uma delas reincidente. Nas três primeiras vezes em que tal sucedeu, o Demandante solicitou a reparação e viu-se privado do computador durante o tempo da mesma. Na quarta vez em que avariou, o Demandante recusou a reparação e pediu a resolução do contrato. Parece-nos resultar óbvio que o exercício do seu direito de resolução, neste caso em que se verificaram 4 avarias consecutivas num curto espaço de tempo, não se mostra ilegítimo, pois não excede, de forma alguma, os limites da boa-fé. Na verdade, atendendo a que após a reparação da segunda avaria (computador bloqueado), o computador voltou a manifestar a mesma avaria, e logo a seguir a essa, uma nova avaria que não permitia sequer desempenhar qualquer função, forçoso se torna concluir que o mesmo não deixou dúvidas quanto a não ser adequado aos fins a que se destinava, e a não apresentar as qualidades e o desempenho que se esperam para um bem deste tipo, não sendo razoável exigir que o consumir continuasse a optar pela reparação, com todos os incómodos que tal acarretava e o tempo em que se via privado do bem, de cada vez que uma nova avaria se manifestava.
É, assim, lícita, no presente caso, a opção pela resolução do contrato, não consubstanciando esta qualquer abuso do direito.
Há, pois, que decretar a resolução do contrato de compra e venda do computador identificado no facto provado n.º 2 e retirar, dessa resolução, as consequências legais.
A resolução do contrato tem eficácia retroactiva, sendo equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio – cfr. artigos 433º e 434º n.º 1 do CC.
Há, assim, que proceder à restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente – cfr. 289º n.º 1 do CC.
Cabe, assim, ao Demandante restituir o computador, o que já cumpriu, e à Demandada restituir o preço do mesmo.
Porém, verifica-se dos factos provados que o Demandante utilizou o computador durante um período de 6 meses sem que o mesmo manifestasse qualquer avaria, não sendo possível devolver à Demandada esse “uso” que fez do bem e que, necessariamente, o desvalorizou. Há, assim, que apurar o valor correspondente a esse uso, e consequente desvalorização do bem, sob pena de enriquecimento sem causa do Demandante à custa da Demandada e com vista a fazer operar os efeitos da resolução, tal como resultam das normas citadas.
Atendendo ao preço do computador (€ 381,65) e ao tempo médio estimado de vida dos aparelhos electrónicos (5 anos), decide-se, com recurso à equidade, fixar o valor correspondente a 6 meses de uso na quantia de € 40,00.
É, pois, de € 341,65 (€ 381,65 - € 40,00) o valor a restituir pela Demandante ao Demandado, em virtude da resolução do contrato de compra e venda do computador melhor identificado no facto provado n.º 2, ao abrigo do disposto nos supra citados artigos 289º n.º 1, 433º e 434º n.º 1 do CC.

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Responsabilidade tributária:

Atento o disposto no artigo 527º n.º 1 e 2 do CPC aplicável ex vi do artigo 63º da LJP, e porque ambas as Partes se declaram vencidas, são as custas suportadas por ambas na proporção do respectivo decaimento que é de 10% para o Demandante e de 90% para a Demandada.
Assim, nos termos conjugados dos artigos 1º, 2º, 8º, 9º e 10º da Portaria n.º 1456/2001 de 28 de Dezembro, alterada pela Portaria n.º 209/2005 de 24.02, deverá a Demandada efectuar o pagamento da quantia de € 28,00, no prazo de 3 dias úteis a contar do conhecimento da presente decisão, sob pena de a tal quantia acrescer uma sobretaxa de € 10,00 por cada dia de atraso, com o limite de € 140,00, devendo ser devolvido igual montante (€ 28,00) ao Demandante.
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Dispositivo:

Julgo a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência disso:
a) Declaro a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre as Partes em 06.12.2015, tendo por objecto o computador portátil marca XXXXXXXXXX; e
em consequência de tal resolução,
b) Condeno a Demandada a restituir ao Demandante a quantia de € 341,61 (trezentos e quarenta e um euros e sessenta e um cêntimos).

Custas na proporção de 10% para o Demandante e 90% para a Demandada.
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Registe e notifique.
Bombarral, 20.04.2018

A Juíza de Paz

Carla Alves Teixeira
(que redigiu e reviu em computador – artigo 131º n.º 5 do CPC)