Sentença de Julgado de Paz
Processo: 113/2017-JPFNC
Relator: LUÍSA ALMEIDA SOARES
Descritores: ARRENDAMENTO; TRANSMISSÃO POR MORTE
Data da sentença: 05/02/2018
Julgado de Paz de : FUNCHAL
Decisão Texto Integral:
SENTENÇA
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I. RELATÓRIO
A) IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
Demandante: A, viúvo, residente no X Funchal.

Demandada: B, divorciado, residente no Caminho X Funchal.
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B) PEDIDO
O Demandante propôs contra o Demandado a presente ação declarativa enquadrada no n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 78/2001 de 13 de julho, peticionando a condenação deste a) a reconhecer o Demandante, como dono e legítimo possuidor do prédio urbano, localizado ao caminho da X, freguesia de São Martinho, concelho do funchal, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo X, que faz parte do prédio misto descrito na conservatória do Registo Predial do Funchal sob o nº X-freguesia de São Martinho; b) condenar o Demandado a cessar a sua utilização e a restituir à Demandante o sobredito prédio urbano, no prazo máximo de 15 dias a contar da citação, que vale como interpelação para a sua entrega, entregando-o livre de pessoas e bens; c) condenar-se ainda o Demandado no pagamento de custas e procuradoria condigna.
Alegou para tanto os factos constantes do requerimento inicial, de fls. 1 a 5 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
Juntou 4 (cinco) documentos.

O Demandado foi declarado ausente, tendo-lhe sido nomeada defensora oficiosa que regularmente citada, não apresentou contestação escrita.

A questão em análise não foi submetida a mediação, por ter sido declarada a ausência do Demandado.

No início da audiência de julgamento o Demandante foi, nos termos do artigo 43.º n.º 5 da Lei 78/2001 de 13 de julho, convidado a aperfeiçoar o requerimento inicial, tendo-o feito nos seguintes termos: “1.º O Demandado B é filho de C e D. 2.º Entre os referidos C e D e os sogros do Demandante foi celebrado o contrato de arrendamento do prédio misto melhor identificado no artigo 1.º do requerimento inicial. 3.º O contrato de arrendamento referido foi celebrado de modo verbal há mais de 40 anos. 4.º Acontece que esse contrato cessou os seus efeitos em 17.07.2016, aquando do falecimento da mãe do Demandado, C, falecida que foi no estado de viúva de D já pré-falecido (conforme documento que junta). 5.º Esse mesmo contrato não se transmitiu ao Demandado B, conforme previsto no artigo 57.º do NRAU. 6.º Assim o Demandado não possui título que justifica a sua ocupação relativamente ao referido prédio. 7.º Acresce referir que o Demandante é atualmente viúvo de E. Quanto ao pedido, o Demandante para além do já peticionado e face à alteração da causa de pedir requer que seja reconhecido que o contrato celebrado verbalmente entre os pais do Demandado e os sogros do Demandante, sendo agora a propriedade do imóvel sua, não se transmitiu tendo cessado com a morte da mãe do mesmo em 17 de julho de 2016. Nestes termos e nos melhores de direito se requer a V. Exa. alteração do pedido e da causa de pedir nos termos enunciados”. A alteração do pedido e da causa de pedir, foi aceite pela Ilustre Defensora Oficiosa do ausente, e foi admitida nos termos do artigo 264.º do Código do Processo Civil (aplicável ex vi artigo 63.º da lei 73/2001 de 13 de julho com a redação da lei 54/2013 de 31 de julho) e do artigo 43.º, n.º 5 da Lei 78/2001 de 13 de julho.
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II- SANEAMENTO
Estão reunidos os pressupostos da estabilidade da instância: o Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do objeto, do território e do valor. O processo não enferma de nulidades que o invalidem na totalidade. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas. Não há exceções, nulidades ou quaisquer questões prévias que cumpra conhecer.
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III- VALOR DA AÇÃO
Fixa-se em €11.430,00 (onze mil quatrocentos e trinta euros) o valor da presente causa (artigos 296.º, 297.º n.ºs 1 e 2, 299.º e 306.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 63.º da Lei 78/2001 de 13 de julho, com a redação da Lei 54/2013 de 31 de julho).
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IV – OBJETO DO LITÍGIO
O objeto litígio entre as partes circunscreve-se à questão da transmissão por morte do primitivo locatário no arrendamento.
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V – QUESTÕES A DECIDIR
Nos presentes autos importa apreciar da transmissão por morte da posição de locatário e, na negativa, as consequências resultantes da não transmissão da mesma.
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VI - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com relevância para a decisão da causa, de acordo com a prova documental e testemunhal carreada para os autos, resultaram os seguintes factos:

FACTOS PROVADOS
1. O Demandante é proprietário do prédio misto, localizado ao X, sítio da Lombada, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, inscrito na matriz respetiva a parte rústica sob o artigo X da secção Y e a parte urbana sob os artigos X e X, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º X – freguesia de São Martinho.
2. O prédio urbano referido em 1. veio à propriedade do Demandante por morte da sua mulher e por partilha efetuada por óbito dos seus sogros, C e F.
3. O Demandado B é filho de C e D.
4. Por acordo verbal realizado há mais de 45 anos, G e H acordaram com C e D ceder o gozo do prédio referido em 1, sob o pagamento mensal de quantia não apurada, durante período temporal não apurado.
5. A partir de data não apurada, os pais do Demandado procediam ao pagamento mensal da renda a I, procurador do Demandante, que lhes emitia recibo.
6. A titular do direito de arrendamento, mãe do Demandado, C faleceu no dia 17.07.2016, no estado de viúva de D.
7. Desde a morte de sua mãe que o Demandado tem permanecido no prédio referido em 1., nele dormindo, comendo, fazendo a sua vida própria, possuindo as suas chaves, sem autorização e contra a vontade do Demandante e sem pagar qualquer valor a título de renda, o que se mantém até à presente data.
8. O Demandante não aceitou a transmissão do arrendamento e interpelou o Demandado, através de carta registada com AR, datada de 29.07.2016 e enviada em 01.08.2016, para o mesmo proceder à entrega das chaves do prédio urbano referido em 1., dando-lhe o prazo máximo de 90 dias para o efeito.

NÃO PROVADOS
9. O Demandante já contactou, pelo menos 6 vezes, o Demandado pessoalmente e através da sua mandatária, no sentido de chegar a um acordo.
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MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Para a convicção formada, conducente aos factos julgados provados em 1 a 8 concorreu o teor dos documentos juntos aos autos, as declarações do Demandante que foi ouvido nos termos do artigo 26.º da Lei 78/2001 de 13 de julho que confirmou o que consta do seu requerimento inicial (com exceção do número de vezes em que interpelou o Demandado) e acrescentou que pelo menos há 45 anos que havia sido celebrado o arrendamento com os pais do Demandado e que logrou convencer o Tribunal.
O Tribunal valorou ainda o depoimento da testemunha indicada pelo Demandante, I, comerciante, que confirmou conhecer o prédio, o Demandado e a questão em discussão nos autos por ser procurador daquele. Confirmou que o Demandado está no prédio do Demandante desde há muitos anos uma vez que já ali vivia com os pais que entretanto faleceram, sendo que estes tiveram um arrendamento durante mais de 45 anos com os sogros do Demandante. Afirmou que por ser procurador do Demandante, uma vez que este vive na Venezuela, enquanto os pais do Demandado eram vivos era a si que pagavam a renda e lhes passava o recibo, sendo que após a morte da mãe deste, em julho de 2016, o Demandante não aceitou que aquele ali vivesse e lhe escreveu uma carta a fixar um prazo para sair do imóvel. Esclareceu que o Demandado nunca pagou qualquer renda e apesar de por diversas vezes interpelado quer através de advogado, quer por carta, quer pessoalmente, insiste em manter-se no imóvel contra a vontade do Demandante, ali fazendo a sua vida até ao dia de hoje.
O facto dado como não provado em 9 assim foi considerado atendendo à total ausência de prova quanto ao mesmo e ao ónus que cabia ao Demandante nos termos do artigo 342.º do Código Civil. Apurou-se que por diversas vezes o Demandante interpelou o Demandado, mas não o número concreto de vezes em que o fez.
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VII – ENQUADRAMENTO JURÍDICO-LEGAL
A qualificação jurídica do contrato celebrado é linear e não suscita dificuldades.
O arrendamento urbano é uma modalidade do contrato de locação e este define-se como “o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição” (cfr. artigos 1022.º e 1023.º do Código Civil).
Resulta dos factos provados que o contrato de arrendamento celebrado pelos sogros do agora Demandante com os pais do Demandado o foi de forma verbal há mais de 45 anos. Resulta também que o procurador do Demandante entregava os recibos aos primitivos arrendatários.
Não subsistindo dúvidas de que está em causa um contrato de arrendamento, importa, antes de mais apreciar da sua validade formal.
Conforme resulta da jurisprudência, entre outros do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.09.2010 (www.dgsi.pt) os contratos de arrendamento celebrados até 12 de março de 1976 não estão sujeitos a forma e, se não tiverem sido reduzidos a forma escrita, tanto o locador como o locatário podem fazer prova do contrato por qualquer meio, mesmo por testemunhas, do contrato de arrendamento. Foi este o sistema que esteve em vigor até ao Decreto Lei n.º 188/76, que entrou em vigor a 12 de março desse ano, que no artigo 1.º do artigo 2.º aplicou o n.º 2 do artigo 1.º aos “arrendamentos existentes”.
Como ensina o Professor Pereira Coelho (Sumários das Lições ao Ciclo Complementar de Ciências Jurídicas em 1977-1978/edição datilografada em 1977 ,pag. 112) (…) a aplicação do nº3 do artº 1º do Dl nº 188/76 aos arrendamentos anteriores a 17 de Setembro de 1974 tem de ser só, porém, uma aplicação da 1ª parte da disposição, que permite ao locatário “provar a existência de um contrato por meio de qualquer meio de prova admitido em direito “…” os arrendamentos anteriores a 17 de Setembro de 1974 eram e continuam a ser válidos mesmo que não reduzidos a escrito (….).
Estes arrendamentos não estão, pois, sujeitos a forma e, se não tiverem sido reduzidos a forma escrita, tanto o locador como o locatário podem fazer prova do contrato por qualquer meio. É nesta possibilidade que está consagrada a proteção concedida pelo DL nº 188/76.
Ora, tendo resultado provado o contrato celebrado entre os sogros do agora Demandante e os pais do agora Demandado, há mais de 45 anos, a forma oral do contrato está em conformidade com as normas legais que o regiam à data, razão pela qual não se encontra ferido de qualquer nulidade.
Apurada que se mostra a validade do contrato celebrado entre os pais do Demandado e os sogros do Demandante, cumpre apreciar se o referido contrato se transmitiu pela morte daqueles ao Demandado, na qualidade de filho.
Resulta da matéria dada como provada que a mãe do Demandado faleceu em 17 de julho de 2016.
Em 28 de junho de 2006, ou seja, antes da morte da mãe do Demandado, entrou em vigor o Novo Regime do Arrendamento Urbano – NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro), que introduziu modificações em outros diplomas, nomeadamente o Código Civil.
Nos termos do artigo 59.º do NRAU e 12.º do Código Civil, aquela lei aplica-se imediatamente a todos os contratos, nomeadamente às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, abstraindo dos factos que lhes deram origem.
Como ensinam Laurinda Gemas e outros (in Arrendamento Urbano – Novo regime anotado e legislação complementar, Quid Juris, 2007, p. 102) nas “acções intentadas após o início de vigência do NRAU, em princípio, é aplicável o novo regime do arrendamento urbano, ainda que os factos em discussão tenham ocorrido no domínio da lei antiga. O que importa é que esses factos subsistam e que possam produzir o efeito pretendido na vigência da nova lei. Se os factos ocorreram no domínio da lei antiga e aí produziram já plenos efeitos, é-lhes aplicável a lei então vigente”.
Por o primitivo contrato de arrendamento do prédio urbano para habitação haver sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Dec. Lei n.º 321-B/90 de 15 de outubro, e por a primitiva arrendatária – mãe do Demandado - haver falecido (17.07.2016) na vigência do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006 de 27 de Maio, a transmissão do contrato de arrendamento em litígio, por morte do inquilino, rege-se pelas disposições transitórias conjugadas dos artigos 26.º, n.º 2, 27.º, 28.º e 57.º, n.ºs 1 a 4, do NRAU.
Atento o disposto no artigo 57.º, n.º 1, alínea e), do NRAU, para que o contrato de arrendamento em litígio se transmitisse para o Demandado, por óbito da primitiva inquilina, sua mãe, era necessário que o Demandado, além dos comprovados factos de ser filho da falecida primitiva inquilina e da convivência com ela no locado há mais de um ano, alegasse e provasse ainda que era portador de deficiência com um grau de incapacidade superior a 60%, o que não resultou dos autos.
Não se tendo transmitido o contrato de arrendamento por morte da primitiva inquilina, e não havendo convenção escrita das partes em contrário – pelo menos não resulta dos autos -, por força do disposto na alínea d) do artigo 1051.º do Código Civil, o litigado contrato de arrendamento para habitação caducou, em 17.07.2007, data do falecimento da inquilina C, por a caducidade constituir causa legal de extinção imediata do contrato de arrendamento e operar ipso jure ou ope legis e, por conseguinte, extinguir o contrato de arrendamento sem necessidade de qualquer declaração das partes ou do Tribunal nesse sentido.
Conforme prevê o artigo 1053.º (na redação da Lei n.º 6/2006 de 27/02), em qualquer dos casos de caducidade previstos nas alíneas b) e seguintes do artigo 1051.º, a restituição do prédio, tratando-se de arrendamento, só pode ser exigida passados seis meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade (ou seja, 6 meses após a morte da primitiva arrendatária em 17.07.2016).
Atento o exposto, e sem necessidade de maiores considerações doutrinárias ou jurisprudenciais, declaro que o contrato celebrado verbalmente entre os pais do Demandado e os sogros do Demandante há mais de 45 anos, não se transmitiu por morte da primitiva arrendatária ao Demandado, tendo cessado com a morte desta em 17.07.2016 e em consequência decido condenar o Demandado B: a) a reconhecer que o Demandante é o proprietário do prédio urbano, localizado no X, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo X, que faz parte do prédio misto descrito na conservatória do registo predial do funchal sob o n.º X – freguesia de são Martinho; b) a entregar o imóvel referido em a) livre de pessoas e bens ao Demandante.
Assim, procedem totalmente os pedidos de condenação do Demandado.
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VIII – RESPONSABILIDADE POR CUSTAS:
As custas serão suportadas pelo Demandado, que se declara parte vencida, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 8.º e 10.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28-12 (o n.º 10 com a redação dada pelo artigo único da Portaria n.º 209/2005, de 24-02), com custas totais €70,00 (setenta euros) a seu cargo, sem prejuízo da isenção de que beneficia por ter sido declarado ausente (alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento das Custas Judiciais e Deliberação n.º 5/2011, do Conselho dos Julgados de Paz, de 8 de fevereiro de 2011).
Proceda-se à devolução ao Demandante de 35,00€ (trinta e cinco euros) nos termos do artigo 9.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28-12.
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IX- DISPOSITIVO
Nos termos e com os fundamentos invocados, julgo a presente ação totalmente procedente, declarando que o contrato celebrado verbalmente entre os pais do Demandado e os sogros do Demandante, não se transmitiu por morte da primitiva arrendatária ao Demandado, tendo cessado com a morte desta em 17.07.2016 e em consequência decido condenar o Demandado B:
a) a reconhecer que o Demandante A é o proprietário do prédio urbano, localizado no X, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo X, que faz parte do prédio misto descrito na conservatória do registo predial do Funchal sob o n.º X – freguesia de São Martinho.
b) a entregar o imóvel referido em a) livre de pessoas e bens ao Demandante A.
c) nas custas do processo, sem prejuízo da isenção de que beneficia por ter sido declarado ausente.
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Registe e notifique.
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Funchal, 02 de maio de 2018

A Juíza de Paz


Luísa Almeida Soares
(Art.º 31 n.º 5 CPC/Art.º 18 LJP)