Sentença de Julgado de Paz
Processo: 159/2014-JPBBR
Relator: CRISTINA EUSÉBIO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
INUTILIDADE POR CIRCUNSTÂNCIA SUPERVENIENTE
INSPECÇÃO JUDICIAL
Data da sentença: 01/05/2018
Julgado de Paz de : BOMBARRAL-OESTE
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
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RELATÓRIO:
HERANÇA ABERTA DE ÓBITO DE A E B, identificada a fls. 1 e representada por C, propôs, em 3 de Novembro de 2014, a presente acção declarativa de condenação, contra D, melhor identificada a fls.1 e 63, pedindo que esta seja condenada pagar-lhe a quantia de 980,00€ e demais prestações que venham a vencer-se do contrato de cessão de exploração e qualquer indemnização que venha a ser pedida àquela herança por falta de cumprimento do referido contrato, bem como a proceder à ligação de energia eléctrica do locado, porquanto alega que ser arrendatária de um espaço comercial da propriedade da demandada e que esta com a sua actuação tem vindo a impedir a laboração do estabelecimento de barbearia, cuja exploração se encontra cedida a terceiros, quer pelo corte de energia quer por impedir o acesso ao arrendado.
Para tanto, alegou os factos constantes do Requerimento Inicial de fls. 1 a 10, que se dá por reproduzido e juntou 18 documentos.
Regularmente citada a Demandada para contestar, no prazo, querendo, apresentou a sua douta contestação alegando que não reconhece a existência de qualquer contrato de arrendamento com a demandante, para além de não ser proprietária, nem nunca o ter sido, do prédio onde o arrendado se situa. Mais alega que não pode proceder ao restabelecimento de luz eléctrica porquanto não é comercializadora de electricidade.
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Cabe a este tribunal decidir se a demandada é responsável pelo restabelecimento de luz eléctrica ao estabelecimento e se é devida indemnização por esta pelas rendas não pagas pela cessionária do mesmo, por incumprimento do contrato de arrendamento.
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Tendo a Demandante aceite o recurso à Mediação para resolução do litígio, foi agendado o dia 17 de Novembro de 2014 para a realização da sessão de Pré-Mediação, a qual não se realizou por falta, injustificada, da Demandada, pelo que foi designado o dia 30 de Março de 2017 para a realização da Audiência de Julgamento, tendo sido dada sem efeito por justo impedimento do mandatário da demandada, por doença súbita nesse mesmo dia.
Agendou-se nova data para a audiência de julgamento logo que houve notícia da cessação do justo impedimento, com cumprimento do n.º 1 do art. 151º do CPC, para o dia 17 de Outubro de 2017.
Aberta a Audiência e estando apenas presentes as partes e seus Ilustres Mandatários Dr. E e Dr. F, foi produzida prova testemunhal, foi a mesma suspensa para continuar no dia 6 de Novembro de 2017 para audição de uma testemunha no local e inspeção judicial, conforme das actas da audiência resulta.
Dada a complexidade na apreciação da prova e matéria de direito em causa nos presentes autos, foi designado o dia 4 de Dezembro de 2017 para leitura da sentença, tendo a mesma sido adiada por força da inúmeras solicitações da coordenação do Julgado de Paz do Oeste e sobrecarga de serviço da Juíza de Paz titular do presente processo e por se entender que deveriam as partes ser notificadas de projecto de decisão por força da proibição das “decisões surpresa”- art. 3º n.º 3 do CPC. Notificadas as partes, veio a demandante pugnar por decisão diferente, pese embora reconheça a impossibilidade da procedência do pedido de religação da energia eléctrica. A demandada, no prazo nada disse.
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Estando reunidos os pressupostos da estabilidade da instância, cumpre apreciar e decidir:
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO
Resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1 – Por escritura de arrendamento celebrada no dia 21 de Dezembro de 1961, a sociedade G deu de arrendamento ao falecido A, a partir do dia 1 de Janeiro de 1962, uma loja destinada a estabelecimento de barbearia, referenciada com o numero 1 da inscrição matricial, referente ao prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia das Caldas da Rainha, sob o n.º 0000.
2 – As partes contrataram também que, no locado, para além da actividade de barbearia, também poderia exercer-se a venda de perfumes e produtos de toucador e que a entrada para a loja arrendada era feita pela Estação de Camionagem pertencente à senhoria e instalada no mesmo prédio.
3 - A renda mensal era de 400$00.
4 – Por força da nacionalização, todo o património que fora da G passou para a esfera patrimonial da H.
5 – A H. foi transformada em sociedade anónima em 1990 com a firma I e mais tarde , através de cisão deu origem à D.
6 – A I, por contrato de compra e venda celebrado no Cartório Notarial de Óbidos, no dia 30 de Agosto de 1995, vendeu à sociedade “J”, um prédio urbano sito na Rua X , nas Caldas da Rainha, que se encontrava inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Caldas da Rainha – Nossa Senhora do Pópulo, sob o artigo n.º 000 e descrito na Conservatória do Registo Predial das Caldas da Rainha sob o n.º 000 da mesma freguesia.
7 – B, esposa do arrendatário comunicou o falecimento do arrendatário A à demandada por carta datada de 29 de Fevereiro de 2000.
8 – Em 20 de Setembro de 2006, a demandante comunicou o falecimento de B, à demandada, solicitando que os recibos fossem emitidos em nome dos herdeiros.
9 – Por carta datada de 4 de Agosto de 2010, a demandante comunicou aos herdeiros de A, que em 1995, a I procedeu à venda à sociedade J o prédio onde se situava a barbearia, pelo que deveriam passar a proceder à entrega das rendas devidas àquela sociedade.
10 – A demandante procedeu ao depósito de renda na K a favor da demandada nos meses de Fevereiro de 2011, no valor de 42,00€, Março de 2012 no valor de 43,50€, Março de 2013 no valor de 45,00€ e Novembro de 2014 no valor de 45,00€
11- A demandante, através do seu cabeça de casal apresentou reclamação escrita protestando pelo facto de desde Dezembro de 2010 não ser aceite o pagamento da electricidade.
12 – No dia 30 de Julho de 2014 a energia eléctrica do estabelecimento foi desligada.
13- No dia 22 de Julho de 2014 foi celebrado pela demandante, representada por L um contrato de cessão de exploração do estabelecimento a M e N, pelo prazo de 6 meses com inicio em 1 de Agosto de 2014, pelo preço de 1.470,00€a ser pago em tranches no valor mensal de 245,00€.
14- O estabelecimento comercial não tem, actualmente existência física, tendo as suas paredes sido demolidas.
15 – Não se encontram no local quaisquer móveis, equipamentos ou materiais da actividade de barbearia.

Não provados:
1 – O inquilino e sua clientela utilizava as instalações sanitárias da O.
2 - O inquilino sempre pagou atempadamente às senhorias quaisquer que fossem, as rendas mensais e suas actualizações, e também os consumos de energia eléctrica por estas fornecida;
4 – O imóvel onde se encontra a barbearia, situava-se e situa-se na Rua X.
5 – A demandada, sem qualquer aviso prévio interrompeu o fornecimento de energia eléctrica à barbearia.
6 - Em 7 de Agosto de 2014 a demandada encerrou o edifico para obras durante vários dias, sem conhecimento prévio à demandante, impedindo o acesso ao estabelecimento.

Motivação
A convicção probatória resulta da conjugação da prova documental apresentada com os depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, bem assim como da inspecção judicial, da qual resultaram os factos provados sob os n.º14 e 15.
De facto, foi apurado que o corte de energia eléctrica terá ocorrido no dia 30 de Julho de 2014, data na qual não estava em vigor o contrato de cessão de exploração. O referido contrato datado de 22 de Julho teria o seu inicio no dia 1 de Agosto do referido ano. A testemunha N relatou que se encontrava a trabalhar no estabelecimento quando a luz foi cortada, sendo o seu depoimento contraditado pela testemunha oficiosamente ouvida P, que referiu que as cessionárias não chegaram a trabalhar no estabelecimento, bem como pelos documentos juntos aos autos.
Mais referiu a referida testemunha, cuja credibilidade se afigurou frágil, que até hoje está á espera que a situação se resolva e que “o estabelecimento até hoje está fechado” e que pagaria uma renda de 350,00€ mensais, quando do contrato resulta que a renda tem o valor de 245,00€.
Na deslocação ao local verificou-se que o estabelecimento comercial deixou de ter existência física, ou seja, o tribunal apurou que as suas paredes haviam sido demolidas – não se sabe por quem - e não se encontravam no local quaisquer indícios da sua existência, nem do seu mobiliário nem dos equipamentos ou utensílios.
Não se conseguiu apurar, em que data tal teria ocorrido ou quem procedeu a tais obras. Aliás, não veio a demandante alegar tal facto superveniente, com interesse para a decisão da causa.

Do Direito
O estabelecimento comercial é um conjunto de coisas, corpóreas e incorpóreas, devidamente organizado para a prática do comércio.
No que toca a coisas corpóreas ficam abarcados os direitos relativos, por exemplo, a móveis – mercadorias, matéria primas, maquinaria, mobília, instrumentos de trabalho – portanto, todas as coisas que, estando no comércio, sejam pelo comerciante afectas a esse exercício. No tocante a coisas incorpóreas pode-se distinguir, por exemplo, o direito ao uso exclusivo da insígnia, do nome do estabelecimento, das marcas, patentes de invenção e os direitos a prestações provenientes de posições contratuais – contratos de trabalho, contratos com fornecedores, contratos de distribuição, de publicidade, de concessão comercial, de agência, de franquia e mesmo contratos relativos a bens vitais (v.g. água, electricidade, gás, telefone) e, bem assim, os direitos provenientes de licenças concedidas pela administração.
Para que haja estabelecimento comercial ele deve ter um conteúdo mínimo necessário, para levar a cabo a sua actividade, - o que no presente caso, na data de celebração do contrato de cessão de exploração ele não detinha, porquanto não era dotado de energia elétrica, (essencial á sua laboração) e nesta data não tem existência física.
Assim, ocorreram duas circunstâncias com relevantes consequências quer para o cumprimento quer para a validade do contrato de cessão de exploração, a saber:
Em primeiro lugar, se o estabelecimento estava ligado á rede eléctrica, por cortesia da demandada– pois não decorre de qualquer obrigação legal ou contratual -, a partir do momento em que esta procedeu ao corte da ligação, sempre seria da responsabilidade da cedente diligenciar no sentido de obter a sua própria ligação junto dos serviços comercializadores de energia, o que não fez. Assim, a própria demandante colocou-se na situação de impossibilidade no cumprimento, ab initio, do contrato de cessão de exploração.
Em segundo lugar, verificou-se na pendência da acção, o encerramento e demolição do espaço da barbearia, tonando o objeto do contrato de cessão de exploração inexistente.
A expressão “objecto do negócio jurídico”, inserta no art. 280.º do CC, que comina de nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável, pode ter dois sentidos: um, correspondente ao objecto imediato, ou conteúdo, sendo preenchido pelos efeitos jurídicos que o negócio tende a produzir; o outro, correspondente ao objecto mediato, ou objecto stricto sens, consistente naquilo sobre que incidem os efeitos do negócio.
Pelo exposto, o contrato de cessão de exploração está ferido de nulidade, o que nos termos do disposto no art. 286º do CC pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
Nesta conformidade, não teria a demandada qualquer direito, que se arroga, ao recebimento de rendas pelo referido contrato, que na realidade nunca esteve em execução, pelos motivos expostos.
Tal nulidade, ora declarada, determina que os pedidos da demandante – quer de religação de energia eléctrica quer do pagamento de lucros cessantes -não se podem manter, porquanto qualquer decisão que viesse a ser proferida seria absolutamente inútil.
Verifica-se, portanto uma inutilidade superveniente da lide, sendo que esta causa de extinção da instância contém dois requisitos que necessitam estar verificados para a sua aplicação. São eles, a inutilidade da lide, e que essa inutilidade decorra de facto posterior ao início da instância.
Nos termos do disposto no art. 608ºCPC, não pode este tribunal ir para além do pedido e apenas este baliza a decisão, encontrando-se, assim, prejudicadas todas as restantes questões suscitadas, que permita-se-nos o comentário poderão e deverão ser dirimidas em acção própria.
DECISÃO
Assim e nos termos e com os fundamentos invocados declaro extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, - art. 277º al. e) do C.P.C ex vi art.º 63.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, alterada pela Lei 54/2013 de 31 de Julho.

Custas
A cargo da Demandante, por ter dado causa à ação ( art. 536º n. 3 do CPC aplicável ex vi art. 63º da LJP e Art.º 8.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro), devendo ser pagas, no Julgado de Paz, no prazo de 3 (três) dias úteis a contar da notificação desta sentença, sob pena do pagamento de uma sobretaxa diária de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no efectivo cumprimento dessa obrigação (n.os 8 e 10 da Port. n.º 1456/2001, de 28-12; o n.º 10 com a redação dada pelo art. único da Port. n.º 209/2005, de 24-02).

Registe e notifique e no que respeita à demandante também para pagamento das custas.

Bombarral, 5 de Janeiro de 2018
A Juíza de Paz

(Cristina Eusébio)