Sentença de Julgado de Paz
Processo: 47/2014-JP
Relator: SOFIA CAMPOS COELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
Data da sentença: 03/31/2014
Julgado de Paz de : SINTRA
Decisão Texto Integral:
SENTENÇA

Processo n.º x
Objecto: Responsabilidade civil contratual
(alínea h) do n.º 1, do artigo 9.º, da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho – LJP, com a redação que lhe foi atribuída pela Lei n.º 54/2013, de 31 de julho).
Demandante: A
Demandada: B
Mandatária: C
RELATÓRIO:
O demandante, devidamente identificado nos autos, intentou contra a demandada, também devidamente identificada nos autos, a presente ação declarativa de condenação, pedindo a resolução do contrato entre ambas celebrado e a demandada condenada a devolver-lhe a quantia de € 980 (novecentos e oitenta euros) contra a entrega do respetivo móvel. Para tanto, alegaram os factos constantes do requerimento inicial, a folhas 1 e 2 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, alegando, em síntese, que em 4 de agosto de 2014 comprou à demandada uma escrivaninha Britannia, pelo preço de € 980 (novecentos e oitenta euros), a qual foi levantar no dia 6 de agosto de 2014; ao chegar a casa, após o desempacotar, verificou que a prateleira principal estava descolada. Após várias diligências procedeu à respetiva reclamação, por escrito, no dia seguinte, dia 7. Após várias diligências, e perante o silencia da demandada, propôs a resolução do contrato, o que a demandada não aceita.
Juntou 5 documentos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
Regularmente citada, a demandada contestou (de fls.16 a 22 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas), na qual aceitou a celebração do negócio, nos termos e condições alegadas no requerimento inicial, e que uma prateleira se encontrava escolada, alegando, contudo, que de imediato propôs ao demandante um desconto de 20% no preço ou a substituição do móvel (cumprindo o artigo 6.4 das condições gerais de venda que se encontram no verso da encomenda), o que o demandante não aceitou, já que só estava interessado na devolução do móvel e da quantia paga, o que constitui abuso de direito.
Juntou procuração forense e 1 documento, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
As partes aderiram à mediação, tendo esta sido realizada em 24 de fevereiro de 2014, durante a qual as partes não lograram obter um acordo. Em consequência procedeu-se à marcação de nova data para realização da audiência de julgamento, tendo as partes, e mandatária, sido devidamente notificados.
Iniciada a audiência, na presença do demandante, do legal representante da demandada e da sua mandatária, a Juíza de Paz procurou conciliar as partes, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artº 26.º, da LJP, não tendo esta diligência sido bem sucedida.
Foram ouvidas as partes, nos termos do disposto no art.º 57.º da LJP, e realizada a audiência de julgamento, com observância do formalismo legal, como resulta da respectiva ata, tendo sido ouvidas as testemunhas apresentadas pelas partes.
FUNDAMENTAÇÃO – MATÉRIA DE FACTO
Com interesse para a decisão da causa, ficou provado que:
1 – A demandada é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio a retalho de artigos de decoração (cfr. art.º 1.º contestação).
2 – Em 4 de agosto de 2014 o demandante comprou à demandada, na Loja do x, uma escrivaninha Britannia, pelo preço de € 980 (novecentos e oitenta euros).
3 – Em 6 de agosto de 2014 o demandante foi levantar o bem ao armazém da demandada no x e transportou-o até à sua residência.
4 – Chegado a casa, ao desempacotar o móvel, o demandante verificou que uma prateleira estava descolada.
5 – Após contacto telefónico, em 7 de agosto de 2014 o demandante apresentou reclamação escrita, via email, na qual denuncia o defeito e comunica pretender a resolução do contrato (Doc. a fls. 3 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido).
6 – No mesmo dia, o demandante apresentou reclamação no livro de reclamações da demandada (Doc. a fls. 9 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido), também comunicando sua pretensão de resolução o contrato.
7 – Em dia não apurado do mês de agosto de 2014, anterior ao dia 14, a demandada propôs ao demandante um desconto de 20% no preço ou a substituição do móvel.
8 – O que o demandante não aceitou.
9 – Dá-se aqui por integralmente reproduzido as condições gerais de venda constantes do verso da encomenda a fls. 23 os autos.
Não ficou provado:
Não se provaram mais factos com interesse para a decisão da causa, designadamente:
1 – Aquando do levantamento, o demandante assinou a guia de entrega comprovativa de que o artigo se encontrava nas devidas condições.
Motivação da matéria fática:
Para fixação da matéria fáctica dada como provada concorreram os factos admitidos (designadamente os factos dados como provados em 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7) os documentos juntos aos autos e os depoimentos das testemunhas apresentadas as partes.
Quanto ao depoimento das testemunhas apresentadas cumpre referir que ambas prestaram os seus depoimentos de modo seguro e convincente, demonstrando terem conhecimento directo dos factos sobre os quais depunham.
Não foram provados quaisquer outros factos alegados pelas partes, dada a ausência de mobilização probatória credível, que permitisse ao tribunal aferir da veracidade desses factos, após a análise dos documentos juntos aos autos e da audição das partes e testemunhas.
O Julgado de Paz é competente em razão do valor, da matéria e do território.
Não existem nulidades que invalidem todo o processado.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade jurídica e são legítimas.
Não existem exceções de que cumpra conhecer ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
FUNDAMENTAÇÃO – MATÉRIA DE DIREITO
Entre demandante e demandada foi celebrado um contrato de compra e venda, definido, no artigo 874.º, do Código Civil, como aquele “(…) pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”, subordinado ao regime previsto no artigo 921.º, do mesmo Código, que estipula que “Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador” (n.º 1), acrescentando o seu n.º 2 que “No silêncio do contrato, o prazo da garantia expira seis meses após a entrega da coisa, se os usos não estabelecerem prazo maior”, e o n.º 3 que “O defeito de funcionamento deve ser denunciado ao vendedor dentro do prazo da garantia e, salvo estipulação em contrário, até trinta dias depois de conhecido”.
Acresce ainda que, no caso sub judice, estamos perante uma compra e venda para consumo, nos termos da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de junho, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, que transpôs a Directiva n.º 1999/44/CE, de 25 de maio), ou seja, o objecto do contrato é um bem destinado ao uso não profissional e as partes no contrato são, por um lado, um profissional (a demandada) e, por outro, uma pessoa particular (que não actua como profissional), visando a satisfação de necessidades pessoais, ou seja, o demandante. Prescreve a Lei de Defesa do Consumidor, no seu artigo 4º, que “Os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”; tal Lei, complementada pelo prescrito no já citado Decreto-Lei n.º 67/2003 (na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de maio) que, além de presumir os casos em que os bens de consumo não são conformes com o contrato (n.º 2 do artigo 2.º), responsabiliza o vendedor pela falta de conformidade do bem no momento da sua entrega, presumindo-se que as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de cinco anos (no caso de bens imóveis) a contar da data de entrega, já existiam nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade do bem (artigo 3º), prescrição com importantes reflexos a nível do ónus da prova: o comprador apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento da coisa durante o prazo de garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega, enquanto que o vendedor, para se ilibar da responsabilidade, terá de alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega, imputável ao comprador, ou a terceiro, ou é devida a caso fortuito. Acresce que os direitos do consumidor previstos no artigo 4.º desse Decreto-Lei (reparação, substituição, redução do preço ou resolução do contrato), tratando-se de coisa móvel, podem ser exercidos – salvo se tal manifestar impossível ou constituir abuso de direito – no prazo de dois anos, devendo o defeito ser denunciado no prazo de dois meses, a contar da data em que tenha sido detectado (n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 5.º), tendo, em caso de inêxito, de reclamar judicialmente – directamente ao vendedor ou ao produtor, conforme o consumidor optar (cfr. art.º 6.º) – o seu direito no prazo de dois anos a contar da data da denúncia (cfr. n.º 3 do artigo 5º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de maio).
No caso em apreço, não está em causa a existência de defeito do bem, que a demandada aceita, mas sim se o exercício do direito à resolução por parte do demandante constituiu, ou não, abuso de direito. Conforme já referimos, o nº 1 do artigo 4º, do citado Decreto-Lei nº 67/2003, dispõe que “em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”, clarificando o nº 5, do mesmo artigo, que “o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais”. Assim, o consumidor, perante a desconformidade do bem comprado, pode, em princípio, desde que respeite os princípios da boa-fé, dos bons costumes e a finalidade económico-social do direito escolhido (ou seja desde que não haja abuso de direito – cfr . art.º 334.º Código Civil), optar pelo exercício de qualquer um daqueles direitos, entre os quais se insere o da resolução do contrato, que não está reservado apenas para as hipóteses de incumprimento definitivo ou impossibilidade de cumprimento dos deveres de reparação ou substituição do bem, justificando-se a sua utilização, desde que a desconformidade que o bem apresenta não seja insignificante. Serão as particularidades do caso concreto que definirão as possibilidades de exercício dos diferentes direitos colocados ao dispor do consumidor, de modo a serem respeitados os princípios que presidiram à sua atribuição.
No caso em análise resultou provado que o demandante comprou um móvel à demandada em 4 de agosto de 2014, móvel que só levantou no dia 6 desse mês, tendo, nesse dia, verificado que uma prateleira estava descolada, defeito que no dia seguinte denunciou à demandada, por escrito, comunicando de imediato pretender a resolução do contrato, proposta que a demandada não aceitou, propondo, dias depois, a redução do preço ou a substituição do bem, propostas nunca aceites pelo demandante.
Destes factos resulta que o demandante não dá hipótese à demandada de manter o negócio celebrado, substituindo o bem comprado, por outro igual, sem custos para o consumidor; e fá-lo sem fundamento compreensível (cfr. Doc. a fls. 3 – mail onde denuncia estar uma prateleira descolada, e se queixa de ter tido de pagar o parque do x quando foi levantar o bem – custo que, segundo a sua opinião, deveria ser suportado pela demandada – e não ter tido ajuda suficiente para carregar o bem para o seu carro). A única pretensão do demandante é desfazer o negócio celebrado. Ora, não podemos avalizar a conduta do consumidor que exige desde logo, sem qualquer outra opção, sem qualquer outra justificação que não a existência do defeito – e esclareça-se de reparação possível, o que a demandada nem propôs ao demandante – a resolução contratual, não permitindo ao vendedor/fabricante apresentar qualquer solução e/ou justificação, sob pena de avalizarmos conduta abusiva.
Na verdade a legislação dos direitos do consumidor, pretende a proteção dos interesses económicos do consumidor “(…) impondo-se nas relações jurídicas de consumo a igualdade material dos intervenientes, a lealdade e a boa fé, nos preliminares, na formação e ainda na vigência dos contratos.” (art.º 9.º da Lei da Defesa de Consumidor, citada), mas lealdade e boa fé para ambas as partes, e a legítima pretensão do consumidor à luz da legislação existente em sua defesa deve ser a eliminação da desconformidade verificada no bem comprado, não a imediata destruição de negócios jurídicos celebrados, excepto se existir conduta minimamente censurável por parte do vendedor/fabricante.
Por outro lado, não podendo o juiz condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido (art.º 609.º, do Código de Processo Civil) e, verificando-se que o demandante pede a resolução contratual que, resultado da aplicação do direito à fatualidade provada, não procede, por exigir a resolução do contrato, neste contexto, constituir abuso de direito, nos termos do n.º 5, do artigo 4.º, do citado Decreto-Lei nº 67/2003, deverá o demandante permitir que a demandada a proceda à substituição do bem, eliminando o defeito, tal como propôs.
DECISÃO
Em face do exposto, julgo a presente ação improcedente, por não provada e, consequentemente, absolvo a demandada do pedido.
CUSTAS
Nos termos da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro, o demandante é condenado nas custas, que ascendem a € 70 (setenta euros), devendo proceder ao pagamento dos € 35 (trinta e cinco euros) em falta, no Julgado de Paz, no prazo de três dias úteis, a contar da data da notificação desta sentença, sob pena do pagamento de uma sobretaxa diária de € 10 (dez euros) por cada dia de atraso.
Cumpra-se o disposto no número 9 da mesma portaria, em relação à demandada.
A presente sentença (processada em computador, revista e impressa pela signatária – art.º 18.º da LJP) foi proferida e notificada ao demandante, nos termos do artigo 60.º, da LJP, que ficou ciente de tudo quanto antecede.
Notifique demandada e sua mandatária.
Registe.
Julgado de Paz de Sintra, 31 de março de 2014
A Juíza de Paz,
(Sofia Campos Coelho)