Sentença de Julgado de Paz
Processo: 40/2016-JPBBR
Relator: CARLA ALVES TEIXEIRA
Descritores: DESISTÊNCIA DE EMPREITADA
INDEMNIZAÇÃO / PROVEITO A RETIRAR DA OBRA
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
Data da sentença: 03/09/2018
Julgado de Paz de : BOMBARRAL-OESTE
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

Relatório:
A, intentou contra B, a presente acção declarativa, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 10.000,00.
Alega, para tanto, que acordou com a Demandada a execução de uma obra e que a Demandada, na qualidade de dona da obra, veio a desistir da mesma, pelo que tem a Demandante direito à quantia peticionada, a título de proveito que retiraria da obra, da preparação dos trabalhos a realizar, tempo despendido e material adquirido especificamente para essa obra.
Juntou 3 documentos.
A Demandada foi regular e pessoalmente citada, tendo prescindido da fase da mediação, e apresentou contestação, invocando, desde logo, a ineptidão do Requerimento Inicial, por ininteligível. Defendeu-se, ainda, por impugnação, negando ter adjudicado a obra à Demandante, mas que, ainda que o tivesse feito, a desistência da empreitada seria livre, pelo que nenhuma indemnização seria devida à Demandante, por não ter esta sofrido qualquer prejuízo.
Juntou 3 documentos.
Por despacho de fls. 45 a 47 foi a Demandante convidada a aperfeiçoar o seu Requerimento Inicial, especificando os factos concretos que se traduzem nos danos que alegou, o que a Demandante veio cumprir, tendo sido exercido o direito ao contraditório por parte da Demandada, que impugnou todos os danos invocados.
Procedeu-se, então, à marcação da audiência de discussão e julgamento, que se realizou com observância do formalismo legal.
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Estão reunidos os pressupostos de regularidade da instância e não há excepções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.

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Fixa-se à causa o valor de € 10.000,00 (dez mil euros) - cfr. artigos 306º n.º 1, 299º n.º 1, 297º n.º 1 e 2 do CPC, ex vi art. 63.º da Lei 78/2001, de 13 de Julho, na redacção que lhe foi dada pela Lei 54/2013, de 31 de Julho (de ora em diante abreviadamente designada LJP).
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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

A) FACTOS PROVADOS:
Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
A)
1 – A Demandante é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras actividades, à construção civil e obras públicas, reparação e restauro de imóveis, prestação de serviços no âmbito de engenharia civil e construção, incluindo fiscalização, consultadoria e gestão de projectos ou empreitadas e exploração hoteleira.
2 – A Demandada é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras actividades, ao alojamento e restauração.
3 – Em 2 de Março de 2016, Demandante e Demandada acordaram que aquela realizaria as obras constantes do orçamento de fls. 4 a 7, pelo preço total de € 170.000,00, acrescido de IVA, a pagar nos termos e condições previstos no referido orçamento, que se dá por reproduzido.
4 – A obra em causa consistia na construção de um bar de praia, conforme projecto de fls. 108.
5 – Em 11 de Março de 2016, a Demandada comunicou à Demandante que: “vimos por este meio dar sem efeito o orçamento apresentado não pretendendo começar os trabalhos a que o mesmo se refere”.
6 - Em 16 de Abril de 2016 a Demandante enviou a factura n.º 4, 4/53, constante de fls. 8, no valor de € 68.000,00 à Demandada.
7 – Em 21 de Abril de 2016 a Demandada enviou uma comunicação à Demandante, nos termos que constam de fls. 41, devolvendo a factura recebida.
8 - Em 29 de Abril de 2016 a Demandante interpelou a Demandante para que esta procedesse ao pagamento da quantia de € 10.000,00 nos termos que constam de fls. 12.
9 – A Demandante esteve presente em 2 reuniões na Câmara Municipal de X, uma delas antes da elaboração do orçamento e a segunda em data posterior a 02 de março de 2016.
10 – A Demandante deslocou-se ao local por duas vezes, a primeira com vista à elaboração do orçamento e a segunda para apresentar o orçamento à Demandada.
11 – A Demandante trocou várias comunicações com a Demandada e com o Engenheiro responsável pela elaboração do projecto de estabilidade, relativas à obra a executar.
12 – No seguimento da comunicação referida no facto provado n.º 5, a Demandante não executou a obra e, em consequência disso, não pôde retirar da mesma o proveito esperado.
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B) FACTOS NÃO PROVADOS:
1 – A Demandante entregou a factura constante de fls. 8 à Demandada em 03.03.2016.
2 – O lucro que a Demandante retiraria da obra seria de 15% do valor da mesma.
3 – A Demandante esteve envolvida 35 dias completos no projecto para adaptação em módulos.
4 – A Demandante deslocou-se ao local para tirar medidas e níveis para fazer a implantação da obra.
5 – A Demandante teve várias reuniões com o Engenheiro responsável pelo projecto de estabilidade.
6 – A Demandante acordou com a Demandada o pagamento da quantia de € 3.500,00 pelo tempo despendido e deslocações à obra e de € 2.800,00 pela colaboração no projecto de estabilidade.
7 – A Demandante encomendou madeira tratada para a obra no valor total de € 59.322,00.
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C) MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal relativamente à factualidade supra descrita, resulta da análise crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência de vida, dos factos admitidos por acordo, dos documentos juntos, da confissão da Demandada, das declarações de ambas as partes e do depoimento prestado pela única testemunha ouvida na audiência final.
Concretizando:
- factos provados n.º 1 e 2: resultam das certidões comerciais de ambas as Sociedades que constam de fls. 147 a 155;
- facto provado n.º 3: resulta da conjugação dos seguintes elementos probatórios: (i) da análise do orçamento de fls. 4 a 7, proposto pela Demandante, onde consta a assinatura do legal representante da Demandada a seguir à menção: “Aceito o orçamento e condições de pagamento, sendo o pagamento da minha inteira responsabilidade”. Tal orçamento contém as obras a realizar, as condições de pagamento, a data de início da obra a combinar posteriormente entre as partes, o prazo de duração da obra e outras ressalvas, contendo ainda rasuras que comprovam que o orçamento proposto foi discutido entre as Partes, tendo até o valor final sido objecto de uma redução; (ii) da confissão da Demandada constante da assentada, de que foi o seu legal representante quem assinou o orçamento, tendo-o lido na totalidade, incluindo a frase que precede a assinatura, e rubricado todas as folhas; (iii) das declarações do Demandante que confirmou que o orçamento foi debatido entre as Partes, o que resultou nas rasuras dele constantes e que explicou em pormenor, e que o mesmo foi aceite, motivo pelo qual foi assinado. Declarou, ainda, que com a assinatura o negócio ficou fechado por aquele valor, independentemente dos materiais que viessem a ser colocados na obra. Mais disse que o valor da adjudicação não foi pago nessa data por o legal representante da Demandada não ter a quantia disponível no Banco, mas que ficou de fazer a transferência logo que tal sucedesse; (iv) das Declarações do Demandado que afirmou que com a assinatura se pretendeu “fechar o valor” pelo qual a obra seria realizada, independentemente das alterações que a mesma viesse a sofrer em virtude dos projectos que estavam em execução; (v) do depoimento da testemunha C, que foi contratado pela Demandante para executar os projectos de estabilidade e que foi convocado por esta para uma reunião com ambas as partes após a adjudicação da obra, tendo o mesmo comparecido. Que jamais teria sido convocado para tal reunião se a obra não estivesse já adjudicada à Demandante e que, no decurso da reunião, as Partes se comportaram sempre nesse pressuposto; (vi) do documento de fls. 103, que consiste numa comunicação da Demandada para a Demandante de 05 de Março de 2016, onde se pode ler: “(…) e uma vez que o negócio está fechado (…)” o que demonstra que dúvidas não havia, naquela data, de que o negócio estava fechado entre as Partes; (vii) outras comunicações trocadas entre as Partes, nomeadamente a fls. 102 a 104 que demonstram a conclusão do negócio.
De resto, quanto a este ponto, dúvidas não restam ao Tribunal de que o negócio foi celebrado entre as Partes, sendo que, a posteriori, a Demandada se terá arrependido e procurado “arrepiar caminho” enviando a comunicação de fls. 38, invocando não ter obtido financiamento para o projecto. Certo é, porém, que, como resultou da instrução da causa – nomeadamente das declarações de ambas as Partes, do depoimento da única testemunha ouvida e dos documentos de fls. 126 a 145 - pelo menos em 17 de abril de 2016 (cerca de um mês após a comunicação à Demandante de que não pretendiam avançar com a obra por falta de financiamento) a estrutura da obra já se encontrava executada por terceiros.
- facto provado n.º 4: resulta da admissão por acordo das partes nos seus articulados (cfr. artigo 12º da Contestação apresentada), e documento de fls. 108, não impugnado.
- facto provado n.º 5: resulta da análise do documento de fls. 38, cujo teor foi confirmado por ambas as Partes nas suas declarações.
- facto provado n.º 6: resulta da análise do documento de fls. 39 e 40, confirmado por ambas as Partes nas suas declarações.
- facto provado n.º 7: resulta da análise do documento de fls. 41.
- facto provado n.º 8: resulta da análise do documento de fls. 11 e 12, cujo teor e recepção foram, também, confirmados por ambas as Partes nas suas declarações.
- facto provado n.º 9: resulta, quanto a uma das reuniões, da admissão por acordo das partes no articulado de resposta ao RI aperfeiçoado, e quanto à segunda reunião, das declarações do Demandante, confirmadas pela comunicação de fls. 104 onde, em 07 de Março, a Demandada demonstra saber que o legal representante da Demandante irá deslocar-se à Câmara Municipal de X no dia seguinte para uma reunião relacionada com a obra a executar.
- facto provado n.º 10: admitido por acordo das partes no articulado de resposta ao RI aperfeiçoado;
- facto provado n.º 11: resulta da análise das várias comunicações trocadas e que se encontram juntas aos autos a fls. 12, 38 a 42, 98 a 106 e 126 a 145.
- facto provado n.º 12: foi admitido por acordo das partes o facto de a Demandante não ter realizado a obra, tendo resultado da instrução da causa que a obra foi realizada por terceiros, conforme supra referido. A consequente perda do proveito esperado resulta do facto de se tratar de uma sociedade comercial, que tem como objectivo o exercício de uma actividade lucrativa, de onde se presume que era expectável a obtenção de um lucro com a realização desta obra, e que a Demandante não chegou a obter, sendo que foi confirmado por ambas as partes que nenhuma quantia foi paga pela Demandada à Demandante por conta desta obra.

- factos não provados n.º 1 a 7: resultam da total e absoluta ausência de prova produzida sobre os mesmos.
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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO:

Pretende-se nos presentes autos obter a condenação da Demandada no pagamento da quantia de € 10.000,00, correspondente à indemnização devida pela “desistência da empreitada”.
Resulta dos factos provados que as Partes acordaram, entre si, que a Demandante procederia à realização da obra descrita no orçamento de fls. 4 a 7, pelo preço total de € 170.000,00, consistindo tal obra na construção de um bar de praia.
Dispõe o artigo 1154º do CC que: “Contrato de prestação de serviços é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.”
Sendo que, uma das modalidades do contrato de prestação de serviços é a empreitada definida como “o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço.” – cfr. artigo 1207º do CC.
Foi, precisamente, este o caso dos autos: as Partes acordaram que a Demandante realizaria a obra descrita no orçamento de fls. 4 a 7, pelo preço de € 170.000,00.
Assim, dúvidas não restam de que estamos perante um contrato de empreitada, que tinha como obrigações recíprocas entre as Partes, a execução da obra pela Demandante, e o pagamento do preço, por parte da Demandada.
Não obstante a regra geral, em matéria contratual, ser a de que os contratos livremente celebrados devem ser pontualmente cumpridos – cfr. artigos 405º e 406º do CC – o regime específico do contrato de empreitada admite a livre desistência por parte do dono da obra.
Com efeito, dispõe o artigo 1229º do CC que: “O dono da obra pode desistir da empreitada a todo o tempo, ainda que tenha sido iniciada a sua execução, contanto que indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra.”
Ora, conforme resultou dos factos provados, após a celebração do contrato de empreitada, a Demandada enviou à Demandante a comunicação de fls. 38 dando sem efeito o contrato. Esta comunicação configura uma desistência por parte do dono da obra que, ao abrigo do disposto no supra citado artigo é lícita.
Sobre esta questão, referem Antunes Varela e Pires de Lima in Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, pág. 745, o seguinte: “A desistência por parte do dono da obra não corresponde a uma revogação ou resolução unilateral, nem, rigorosamente, a uma denúncia do contrato, dados os especiais efeitos prescritos neste artigo. (…) Trata-se, pois, de uma situação sui generis, que não corresponde a nenhuma daquelas figuras, e cujo objectivo é apenas o de dar ao dono da obra a possibilidade de não prosseguir com a empreitada, interrompendo a sua execução para o futuro, o que pode ter a sua justificação nas mais variadas causas: mudança de vida, alteração das condições económicas, etc., ou de prosseguir nela, mas com outro empreiteiro, ou de realizar a obra por outra forma (administração directa, por exemplo).”
Porém, e não obstante consubstanciar um facto lícito, a desistência da empreitada pelo dono da obra confere ao empreiteiro o direito a uma indemnização pelos "gastos e trabalho" que teve e, ainda, pelo "proveito que poderia tirar da obra" - sendo, precisamente, este o pedido formulado pela Demandante nestes autos.
Analisemos, então, face à prova produzida, os danos peticionados, começando pelos gastos e trabalho que a Demandante teve com a obra.
Ora, quanto a este ponto, não se provou a aquisição de qualquer material para a obra – cfr. facto não provado n.º 7.
Quanto ao trabalho desenvolvido pela Demandante, verifica-se que, com excepção da reunião mantida na Câmara Municipal de X em data posterior à da celebração do contrato (cfr. facto provado n.º 9), todo o trabalho desenvolvido pela Demandante e que resultou provado, se prendeu, apenas, com a elaboração do orçamento.
Ora, a elaboração do orçamento é um acto prévio à celebração do contrato, que apenas seria remunerado caso se verificasse um acordo prévio das partes nesse sentido, o que nem sequer foi alegado.
Assim, os únicos gastos e trabalho passíveis de indemnização, à luz das citadas disposições legais são os decorrentes da reunião na Câmara Municipal de X, cujo valor não se apurou, nesta sede.
Por outro lado, e quanto ao proveito a retirar da obra, referem Antunes Varela e Pires de Lima, ob. cit., o seguinte: “A determinação do proveito que o empreiteiro poderia tirar da obra terá por base a obra completa e não apenas o que foi executado. É àquela, ou melhor, à parte que falta realizar (…) que se refere a parte final do artigo 1229º. Terá, pois, de se atender, para este efeito, ao custo global da empreitada e ao preço fixado. Da subtracção destas duas verbas resultará o lucro.”
Quanto a esta questão, alegou o Demandante que o lucro esperado com esta obra seria de 15% face ao preço acordado. Porém, não produziu qualquer prova sobre tal facto, tendo resultado provado o preço fixado para a empreitada, mas não se tendo apurado o custo global que a empreitada teria para o Demandante. Assim, não possui este Tribunal elementos suficientes que permitam fixar o montante da indemnização correspondente ao lucro que o Demandante poderia retirar da obra.
Porém, estando provada a existência dos danos (os gastos e trabalho decorrentes da reunião mantida na Câmara Municipal de X com vista ao início da execução da obra e o proveito que deixou de auferir com a mesma), mas não havendo elementos factuais suficientes que permitam quantificar tais danos, impõe-se relegar tal apuramento para posterior incidente de liquidação – cfr. artigo 661º n.º 2 do CPC.
Com efeito, “Em face da insuficiência de elementos para determinar o montante indemnizatório, nada obsta a que se profira condenação ilíquida, com a consequente remissão do apuramento da responsabilidade para momento posterior, desde que essa segunda oportunidade de prova não incida sobre a existência dos danos, mas apenas sobre o respetivo valor. – cfr. Ac. STJ de 30-04-2014 in www.dgsi.pt
Face ao exposto, impõe-se a condenação da Demandada no pagamento de uma indemnização à Demandante, pelos gastos e trabalho decorrentes da reunião mantida por esta na Câmara Municipal de X, em data posterior a 02.03.2016, com vista ao início da execução da obra, e pelo proveito que esta retiraria da mesma, em montante a apurar em liquidação posterior, e com o limite de € 10.000,00 correspondente ao valor do pedido formulado – cfr. artigos 609º n.º 1 e 2 do CPC.
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Responsabilidade tributária:

As custas com o presente processo serão fixadas, provisoriamente, em partes iguais por Demandante e Demandada, apurando-se a sua divisão, após a liquidação, na proporção do respectivo decaimento.
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Dispositivo:

Julgo a presente acção procedente por provada e, em consequência disso, condeno a Demandada no pagamento à Demandante da indemnização que se apurar em posterior incidente de liquidação, com o limite de € 10.000,00, correspondente:
a) aos gastos e trabalho resultantes da reunião mantida pela Demandante na Câmara Municipal de X em data posterior a 02.03.2016, com vista ao início da execução da obra;
b) ao proveito que a Demandante poderia retirar da obra.


Custas, provisoriamente, na proporção de 50% para cada uma das Partes.
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Registe e notifique.
Bombarral, 09.03.2018

A Juíza de Paz

Carla Alves Teixeira
(que redigiu e reviu em computador – artigo 131º n.º 5 do CPC)