Sentença de Julgado de Paz
Processo: 6/2017-JPBBR
Relator: CARLA ALVES TEIXEIRA
Descritores: INCIDENTE DE FALSIDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTO ILÍCITO - DIREITO AO REPOUSO - DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data da sentença: 03/09/2018
Julgado de Paz de : BOMBARRAL-OESTE
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
Relatório:

A intentou contra B, a presente acção declarativa, pedindo que seja resolvido “o ladrar constante dos cães” e que a Demandada seja condenada no pagamento da quantia de € 9.000,00.
Alega, para tanto, que a Demandada possui na casa ao lado da sua, dois cães de grande porte que ladram, uivam e batem com as patas nos portões com violência, quer de dia quer de noite, o que não lhe permite repousar, sendo que a mesma, apesar de interpelada para resolver a situação, nada fez.
A Demandada foi regular e pessoalmente citada, não tendo apresentado contestação.
As Partes compareceram às sessões de pré-mediação e de mediação, não tendo chegado a acordo, pelo que se procedeu à marcação da audiência de julgamento, que se realizou com observância do formalismo legal.
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QUESTÕES PRÉVIAS:

I - Do Incidente de Falsidade:

A fls. 98 veio a Demandada arguir a falsidade dos documentos juntos pelo Demandante a fls. 73 a 76 e 77 a 94.
Não juntou prova.
Notificado o Demandante nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 448º e 449º do CPC, veio o mesmo arrolar uma testemunha e juntar uma certidão emitida pelo C, de um documento extraído do programa de gestão da D, que se refere ao registo de presenças do Demandante naquele quartel, com vista a provar a veracidade dos documentos em causa.
Não obstante o documento certificado pelo C não ser o mesmo que se encontra em causa, uma vez que o documento impugnado (fls. 73 a 76) tem aposta a menção “modelo 100” e o documento certificado (fls. 132 e 138 a 143) tem aposta a menção “modelo 119”, verifica-se que ambos foram extraídos do mesmo programa de software, e que a informação deles constante é coincidente, pelo menos nas datas que estão em causa nestes autos.
Com efeito, o documento impugnado abrange as presenças do Demandante no quartel no período entre 08.04.2015 e 04.01.2018, enquanto que o documento certificado abrange as presenças do Demandante no quartel num período mais curto, entre 20.06.2015 e 28.07.2017, que engloba o período que interessa para estes autos.
Assim, sendo manifesto que o documento junto pelo Demandante está conforme com a realidade, ao abrigo do princípio da absoluta economia processual pelo qual se rege este processo, foi julgada desnecessária a inquirição da testemunha apresentada pelo Demandante para prova da veracidade de tal documento.
Quanto ao documento de fls. 77 a 94, não tem o mesmo qualquer influência na decisão desta causa.
Dispõe o artigo 448º n.º 3 do CPC que “apresentada a resposta, é negado seguimento à arguição se esta for manifestamente improcedente ou meramente dilatória, ou se o documento não puder ter influência na decisão da causa.”
Como entende o Conselheiro Rodrigues Bastos in "Notas ao Código de Processo Civil", Vol. II, pág. 193, “Além dos casos mencionados neste artigo deve negar-se seguimento ao incidente sempre que se mostre, por qualquer outra razão, que a pretensão do arguente não pode proceder (…)”.
Neste caso resulta evidente a conformidade do documento com a realidade, pelo que a arguição da falsidade só pode entender-se como um expediente meramente dilatório, com vista a protelar e a complicar a marcha do processo para o Demandante, sobretudo atento o facto de este não se encontrar patrocinado por Advogado.
Face ao exposto, nega-se seguimento ao Incidente de falsidade.
II – Da inutilidade superveniente parcial da lide:

A 06.07.2017, veio o Demandante informar que deixou de residir na casa que está em causa nestes autos, informação essa que foi confirmada pelo próprio em sede de audiência de julgamento.
Por seu lado, a própria Demandada informou, no decurso da audiência de julgamento, que também deixou de residir na casa contígua àquela, em Novembro de 2017.
O primeiro pedido formulado pelo Demandante nestes autos era o de que fosse resolvida a questão do barulho dos cães, que a Demandada mantinha na casa ao lado da sua.
Ora, o facto de o Demandante já não residir na casa ao lado da da Demandada desde Julho de 2017, torna inútil o prosseguimento dos autos quanto ao primeiro pedido formulado, sendo que a inutilidade superveniente da lide é causa de extinção da instância nos termos do disposto na alínea e) do art. 277º do C.P.C., aplicável ex vi do artigo 63º da Lei 78/2001, de 13 de Julho, com a redacção dada pela Lei 54/2013 de 31 de Julho (doravante LJP).
Face ao exposto, declaro extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto ao primeiro pedido formulado pelo Demandante, devendo os autos prosseguir apenas para conhecimento do segundo pedido formulado.
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Estão reunidos os pressupostos de regularidade da instância e não há excepções, nulidades ou outras questões prévias de que cumpra conhecer.
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Fixa-se à causa o valor de € 9.000,00 (nove mil euros) - cfr. artigos 306º n.º 1, 299º n.º 1, 297º n.º 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 63.º da Lei 78/2001, de 13 de Julho, na redacção que lhe foi dada pela Lei 54/2013, de 31 de Julho (de ora em diante abreviadamente designada LJP).
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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

A) FACTOS PROVADOS:
A) Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1 – O Demandante trabalha no E e é bombeiro voluntário no F.
2 - Entre Agosto de 2015 e início de Julho de 2017, o Demandante residiu na Travessa X, n.º 0, em Olho Marinho.
3 – No mesmo período, a Demandada residiu na Travessa X, n.º 0, em Olho Marinho.
4 – Naquele período, a Demandada mantinha na sua residência dois cães de grande porte, de raça indeterminada.
5 – Os referidos cães ladravam, e por vezes uivavam, a qualquer hora do dia e da noite.
6 – Por vezes os cães batiam com as patas nos portões da casa da Demandada, com violência, a qualquer hora do dia e da noite.
7 – Por vezes os cães eram deixados sozinhos em casa.
8 – Por vezes o Demandante levantava-se durante a noite para ir tocar à campainha da Demandada, sem que esta abrisse.
9 – Em várias noites o barulho produzido pelos cães impediu o Demandante de dormir.
10 – Em algumas noites o Demandante foi pernoitar no quartel dos Bombeiros, sem estar ao serviço, por não conseguir dormir em sua casa, devido ao barulho produzido pelos cães.
11 – Nos dias seguintes às noites em que não conseguia dormir por causa do barulho produzido pelos cães, o Demandante tinha de fazer um esforço acrescido para responder às suas obrigações profissionais.
12 - O Demandante telefonou para a GNR algumas vezes, queixando-se do barulho produzido pelos cães.
13 – A Demandada tinha conhecimento de que o ruído causado pelos cães perturbava o sono do Demandante e foi, por várias vezes, interpelada para resolver a situação.
14 - A Demandada não tomou qualquer medida para impedir os cães de produzir barulho, quer de dia, quer de noite.
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B) FACTOS NÃO PROVADOS:
1 – A Demandada utiliza a moradia descrita no Facto Provado n.º 3 como segunda casa.
2 – A GNR deslocou-se ao local e constatou que não se encontrava ninguém em casa e que os cães ladravam durante a noite.
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C) MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal relativamente à factualidade supra descrita, resulta da análise crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência de vida, dos documentos juntos, das declarações de ambas as partes e dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência final.
Concretizando:
- facto provado n.º 1: resulta das declarações do Demandante e do depoimento da testemunha G, que esclareceram que aquele desempenha as funções de programador informático e, fora do período laboral, é bombeiro voluntário em X, o que também resulta dos documentos de fls. 47, 73 a 76, 132 e 138 a 143.
- facto provado n.º 2: resulta das declarações do Demandante e do depoimento da testemunha G, que o Demandante residia naquela morada, que corresponde à casa identificada nas fotografias de fls. 65 a 67 com o número 8, em conjunto com os seus Pais, não tendo sido produzida prova em contrário.
- facto provado n.º 3: resulta das declarações prestadas pela própria Demandada em audiência, (que já tinha vindo espontaneamente aos autos assumir-se como proprietária daquele imóvel, onde declarou que residia, tendo junto a respectiva caderneta predial a fls. 23 e 24) uma vez que o Demandante ignorava a sua identificação no momento da propositura da acção), resultando, também, dos depoimentos de todas as testemunhas apresentadas pela mesma, sendo que a casa em causa corresponde à identificada nas fotografias de fls. 65 a 67 com o número 10.
- facto provado n.º 4: resulta das declarações de ambas as Partes e dos depoimentos de todas as testemunhas que foram ouvidas, que confirmaram que a Demandada mantinha dois cães “grandes” na sua residência, tendo sido concretizado pela própria e pela testemunha H, que os mesmos eram mantidos no quintal, só tendo sido mantidos dentro de casa quando eram pequenos.
- factos provados n.º 5 e 6: resultam da conjugação do seguinte: (i) das declarações do Demandante que se revelaram espontâneas, genuínas e credíveis e que, quanto a este ponto referiu que os cães ladravam e, por vezes, uivavam, de dia e de noite, por vezes por períodos de horas a fio e que, sempre que alguém passava na rua, a pé ou de carro, os cães se atiravam com violência contra os portões metálicos, fazendo muito barulho com as patas; (ii) do depoimento da testemunha G, Pai do Demandante, prestou, também, um depoimento que se revelou claro, espontâneo e genuíno, revelando conhecimento directo dos factos, e que logrou convencer o Tribunal, não obstante a tentativa da Demandada de o descredibilizar, ao pretender ditar para a acta as conclusões que retirou do seu depoimento, por o mesmo ter afirmado que o Demandante lhe deu conhecimento de que iria intentar a presente acção e de ter lido o Requerimento Inicial que foi apresentado. Tal em nada afectou a credibilidade que o mesmo mereceu, por parte do Tribunal, sendo perfeitamente natural que o filho, com quem residia, lhe tenha dado conhecimento da acção que ia intentar. Quanto a este ponto da matéria de facto, confirmou que os cães ladravam muito, e muito alto, atento o seu porte, e que durante alguns meses até achou que um deles (a fêmea) teria algum problema de saúde, pois nesse período uivava muito, parecendo estar a lamentar-se de algo. Quanto aos portões, confirmou que quando os cães se atiravam contra os mesmos o barulho era tal que “parecia uma cavalaria a passar”.
(iii) A própria Demandada, não obstante as declarações muito contidas que prestou, quanto a este ponto, confirmou que os cães ladravam, de acordo com o seu porte, e sobretudo quando havia movimento ali perto, tendo referido que existe um café, aberto até às 2h, separado da casa por um descampado que também é usado para estacionamento, pelo que há algum movimento de carros no local, sendo normal que os cães ladrem, pois “é isso que eles fazem”. Confirmou que os cães eram mantidos no quintal.
(iv) Nenhuma das testemunhas que a Demandada apresentou negou que os cães ladrassem, e por vezes uivassem, quer de dia quer de noite.
Assim, a testemunha I que foi morar para a casa onde morava o Demandante após a saída deste, e que foi, portanto, vizinho da Demandada entre meados de julho e início de Novembro de 2017 (data em que a mesma se mudou) admitiu que os cães ladravam a qualquer hora do dia e da noite, tendo focado o seu depoimento no facto de tal, a si, não o incomodar, sendo certo que, por ser agente da PSP estava habituado a dormir por turnos e a qualquer hora. Disse que, por serem cães grandes, era natural que ladrassem mais alto, e confirmou que havia muito movimento na zona, o que fazia com que os cães ladrassem mais. Questionado sobre se perdeu horas de sono por causa dos cães respondeu de forma indirecta dizendo que “se perdi depressa as recuperei porque bastava eu ir lá ao muro mandá-los calar, que eles calavam-se”.
As testemunhas J, K e L não mereceram credibilidade por parte do Tribunal, uma vez que resultou notória a concertação prévia dos seus depoimentos e o espírito de “missão” com que vinham defender a “menina” (como se dirigiam à Demandada) da terra, contra o Demandante, que nem sequer era dali e que mal conheciam.
De todo o modo, e quanto a esta questão, referiram apenas que por vezes ouviam os cães da Demandada ladrar, mas que consideravam um barulho normal, focando-se também no facto de a si, tal não os incomodar. Salienta-se, porém, que a distância a que os mesmos residem do local em causa é superior àquela que pretenderam fazer crer ao Tribunal (como se pôde constatar facilmente através da consulta de um mapa), sendo que a testemunha que reside mais próximo (J) foi aquela que demonstrou um maior desconforto no depoimento que prestou, tendo sido visível que se encontrava condicionada pelo facto de conhecer bem a Demandada desde criança, bem como os pais desta.
Por último, a testemunha H, que residia à data dos factos com a Demandada, prestou um depoimento tão contido quanto o da Demandada, conforme melhor se explanará infra, mas quanto a este ponto confirmou que os cães eram mantidos no quintal, e não negou que os cães ladrassem quer de dia quer de noite, sobretudo quando alguém passava por perto.
- factos provados n.º 7 e 8: resulta da conjugação do seguinte: (i) das declarações do Demandante que relatou que várias vezes foi tocar à campainha da Demandada, sem que ninguém lhe tivesse aberto a porta, verificando que os cães se encontravam no quintal (ii) também a testemunha G relatou a dificuldade que era conseguir falar com a Demandada ou com alguém naquela casa, uma vez que foram várias as vezes que tentou, sem que ninguém lhe abrisse a porta, assumindo, por isso que não estaria em casa.
(iii) A própria Demandada e o seu companheiro, H, confirmaram que, pelo menos no período em que estavam a trabalhar, os cães eram deixados sozinhos em casa. (iv) Nenhuma das restantes testemunhas contrariou este facto, sendo que a testemunha I, ao relatar que era o próprio quem se levantava e ia ao muro mandar calar aos cães, acabou por confirmá-lo.
- facto provado n.º 9: resulta (i) da prova dos factos anteriores, instrumentais em relação a este, (nomeadamente o facto de se tratar de cães de grande porte, que era mantidos no quintal da moradia, que ladravam a qualquer hora do dia e da noite, com intensidade adequada ao seu porte, e que batiam com as patas no portão, sobretudo quando havia movimento, sendo certo que tal movimento existia, pelo menos até às 2h da manhã), conjugado com (ii) a análise das fotografias juntas a fls. 65 a 67 que demonstra a proximidade a que ambas as casas se situavam, e que permite facilmente constatar que bastaria os mesmos estarem encostados ao muro para que o som produzido fosse ouvido com grande intensidade dentro de casa do Demandante; (iii) as declarações do Demandante que relatou, com alguma emoção visível, o sofrimento que sentia por não conseguir ter uma noite de sono seguida, acordando por várias vezes, isto quando conseguia adormecer, tendo referido que era uma verdadeira “tortura” para si e que essa foi uma das principais razões pelas quais se mudaram; (iv) o depoimento da testemunha G que confirmou que ninguém dormia uma noite inteira na sua casa, incluindo o Demandante, e que tiveram de se mudar dali pois não era possível descansar. Que o Demandante por vezes nem chegava a dormir e quando dormia, estava sempre a acordar. Referiu até que quando os cães ladravam junto ao muro perto da janela da casa do Demandante, nem sequer se conseguia falar ao telemóvel naquela divisão, que correspondia ao quarto, pois não se conseguia ouvir; (v) a própria testemunha L, e não obstante o que já foi dito sobre a credibilidade que mereceu, referiu que encontrou uma vez a mãe do Demandante numa loja local e que a mesma se queixou de que ninguém conseguia dormir em sua casa por causa do barulho dos cães da Demandada; (vi) As restantes testemunhas, quanto a este ponto, limitaram-se a referir que, a si próprias, o barulho não as incomodava, como já se disse.
- facto provado n.º 10: Trata-se de um facto não alegado pelo Demandante, mas que resultou da instrução da causa e que, por se tratar de um facto complementar ou concretizador do anterior, que foi alegado, e sobre o qual tiveram as partes a oportunidade de se pronunciar (cfr. acta de fls. 53 e 54) pode o Tribunal dele conhecer ao abrigo do disposto no artigo 5º n.º 2 b) do CPC. A prova do mesmo resulta dos mesmos elementos probatórios referidos no ponto anterior, para onde se remete, tendo o Demandante nas suas declarações referido que conseguia descansar melhor no quartel do que na sua própria casa e que por isso muitas vezes ia directo do trabalho para lá, outras vezes levantava-se de noite desesperado por não conseguir dormir e ia para o quartel. Este facto foi confirmado pela testemunha G, sendo também confirmado pelos documentos de fls. 73 a 76, 132 e 138 a 143 que o Demandante fez vários turnos extra no quartel dos bombeiros, no período em causa.
- facto provado n.º 11: resulta das declarações do Demandante, do depoimento da testemunha G, e das máximas da experiência comum;
- facto provado n.º 12: resulta das declarações do Demandante e do depoimento da testemunha G que ambos telefonaram para a GNR, fazendo queixa do ruído produzido pelos cães, mas que estes nada resolveram.
- facto provado n.º 13: resulta da conjugação dos seguintes elementos: (i) declarações do Demandante que, quanto a este ponto disse que ele, pessoalmente, nunca tinha conseguido falar com a Demandada, pois de todas as vezes que foi tocar à porta, ninguém abriu, mas que uma vez conseguiu falar com o seu companheiro, e que este não deu importância às queixas, tendo respondido que era normal os cães ladrarem. Que o seu Pai, porém, tinha falado várias vezes quer com a Demandada, quer com o seu companheiro, tendo até sugerido que estes passeassem mais com os cães, para ver se tal os acalmava, tendo a Demandada respondido que não tinha tempo para passear, e tendo sempre desvalorizado as queixas que lhe eram feitas; (ii) depoimento da testemunha G, que confirmou o que havia sido afirmado pelo Demandante, tendo relatado as conversas mantidas quer com a Demandada, quer com o seu companheiro, e até com o Pai desta a quem também se queixou; (iii) declarações da Demandada que, sobre este ponto, começou por afirmar que só teve conhecimento de que os cães incomodavam o Demandante quando foi citada para esta acção. Mais tarde acabou por dizer que soube de uma vez que o pai do Demandante tinha ido tocar à campainha desta às 2h da manhã, mas que a mesma nada ouviu por já se encontrar a dormir, tendo sido o seu companheiro quem abriu a porta e que, uns dias mais tarde, casualmente, lhe contou o episódio, tendo dito que o mesmo tinha ido queixar-se que os cães não deixavam ninguém dormir em sua casa; (iv) Por sua vez, o seu companheiro H, afirmou que nunca tinha sido confrontado com o facto de o barulho dos cães incomodar os vizinhos. Só quando lhe foi dito que a Demandada já tinha relatado pelo menos um episódio é que, muito hesitante e trocando com esta muitos olhares, acabou por confessou que uma vez o Pai do Demandante se tinha ido queixar lá a casa. Porém, quando questionado sobre a hora a que tal ocorreu, voltou a hesitar e acabou por dizer que tinha sido ao final da tarde, o que não corresponde ao relatado pela Demandada que referiu que foi às 2h da manhã, quando estavam já todos a dormir. Mais tarde, a propósito de outra questão, a testemunha acabou por referir outra ocasião em que o Pai do Demandante o abordou, tendo referido ser tratador de animais e perguntado se o deixava ir falar com os cães para os tentar acalmar, ao que lhe respondeu que ele podia falar com os cães pelo portão, como fazia toda a gente.
Por todo o exposto, foi notório que nem a Demandada nem esta testemunha relataram toda a verdade ao Tribunal.
De resto, os relatos feitos pelo Demandante e pela testemunha G, das conversas mantidas com a Demandada e das respostas que esta lhes dava, ignorando as suas queixas, e nada fazendo para minimizar o ruído dos cães, coincidem com a atitude e a postura demonstradas pela mesma durante toda a audiência de julgamento, que se pode qualificar como de desafiadora e de desdém face aos relatos do Demandante, o que serviu, igualmente, para cimentar a convicção do Tribunal quanto a este ponto.

- facto não provado n.º 1: resulta da ausência de prova suficiente sobre o mesmo.
- facto não provado n.º 2: resulta do documento de fls. 112 e 113 que atesta que a GNR não elaborou qualquer auto de ocorrência sobre estes factos, sendo que o facto ora em causa apenas poderia ser provado através de tal auto, caso o mesmo existisse.
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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO:
Pretende-se, nos presentes autos, obter a condenação da Demandada no pagamento ao Demandante da quantia de € 9.000,00, a título de danos não patrimoniais, por violação do seu direito ao repouso.
A questão a decidir por este Tribunal é, pois, o apuramento da responsabilidade civil da Demandada e, em consequência disso, o apuramento do valor dos danos a indemnizar.
Atendendo a que a pretensão do Demandante tem como causa de pedir a responsabilidade civil por facto ilícito, há que analisar os pressupostos deste tipo de responsabilidade, por referência ao caso concreto:
a) um facto, que tanto se pode traduzir numa acção como numa omissão, desde que seja voluntário, isto é, como refere Antunes Varela “facto voluntário significa, apenas (...) facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade.” - (Das Obrigações em Geral, vol. I, p. 537).
b) a ilicitude desse facto, isto é, a “contrariedade por parte do lesante com os comandos que lhe são impostos pela ordem jurídica, ou seja, a infracção de deveres jurídicos, quer de abstenção, quer, em determinados casos, de acção. Violando o seu dever de abstenção face à personalidade física ou moral de outrem, o lesante pratica um facto positivo ou uma acção ilícita. Desrespeitando o seu dever de acção para com a mesma personalidade, o lesante pratica um facto negativo ou uma omissão ilícita.” (ob. cit.)
No caso concreto estamos no domínio das relações de personalidade, sendo que o dever jurídico que está em causa é, por um lado o dever geral de respeito pelos direitos de personalidade alheios e, por outro, o dever de respeito pela Lei que protege interesses de personalidade alheios.
Na nossa Ordem Jurídica os direitos de personalidade têm protecção constitucional, merecendo a categoria de direitos fundamentais, em várias das suas vertentes, em que se incluem o direito à tranquilidade, o direito ao repouso e o direito ao sono – cfr. artigos 25º n.º 1, 64º e 66º n.º 1 da CRP.
Também a Lei ordinária, nomeadamente através do disposto no artigo 70º do CC reconhece o direito geral de personalidade, onde se inclui quer a personalidade física, quer a personalidade moral.
Assim, o direito à tranquilidade, ao repouso e ao sono constituem uma emanação dos direitos fundamentais de personalidade, de inviolabilidade da integridade física e moral das pessoas, no direito à protecção da saúde, e no direito a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado, nos termos dos supra citados artigos, sendo que a sua violação constitui um facto ilícito gerador de responsabilidade civil.
O lar tem vindo a ser reconhecido pela jurisprudência como o local privilegiado onde cada pessoa retempera forças físicas e anímicas desgastadas pelo trabalho, pelos afazeres diários e pela vivência em comunidade, no geral, e onde cada ser humano pode resguardar-se dos elementos exteriores, através da tranquilidade e do repouso, que são
essenciais à vida e realização plena do ser humano, variando as necessidades, no plano quantitativo e qualitativo, de pessoa para pessoa, em função da sua própria personalidade e situação pessoal.
Analisando o caso concreto, o facto de a Demandada possuir dois cães na sua residência não é, por si só, um facto ilícito, sendo outrossim, um direito que lhe assiste, incluído no direito à propriedade privada, também ele com assento constitucional.
Porém, não foi apenas esse facto que se provou: provou-se que a Demandada mantém no quintal da sua casa dois cães de grande porte, que ladram e uivam, de forma adequada ao seu porte, que se atiram contra o portão metálico, causando um ruído muito intenso, sendo que os referidos cães são, por vezes, deixados sozinhos em casa, tudo isto a qualquer hora do dia e da noite.
Provou-se, ainda, que a Demandada tinha conhecimento de que tais ruídos afectavam o repouso e o sono do Demandante, que residia a escassos metros, conforme se comprova pelas fotografias juntas a fls. 65 a 67, e que nada fez para o evitar.
Assim, face à matéria provada, dúvidas não restam de que a Demandada praticou um facto ilícito, porque violador do direito de personalidade do Demandante e das disposições legais tendentes a proteger tal direito, quer por acção, ao manter os cães no quintal nas circunstâncias descritas, quer por omissão, ao não tomar qualquer medida para evitar ou sequer minimizar o ruído por estes produzido.
c) o terceiro pressuposto da responsabilidade civil é a culpa, definida como a censurabilidade da conduta do agente pela ordem jurídica, que se pode traduzir em dolo ou negligência. Trata-se de um juízo de censura ou reprovação que o Direito faz ao lesante por ter agido ilicitamente, quando podia e devia ter agido com observância formal e material do preceituado na norma. A culpa deve ser apreciada em abstracto, no sentido em que o padrão normativo (art. 487º nº 1 do C.C.) não é a diligência habitual do agente lesante, mas antes a do bom pai de família. Ou seja, a conduta de uma pessoa diligente, colocada nas circunstâncias precisas em que actuou o lesante.
E quanto a este aspecto, também não restam dúvidas de que a Demandada agiu com culpa. Com efeito, uma pessoa diligente, um bom pai de família, no lugar na Demandada, podia e devia ter agido de outra forma, procurando uma solução para evitar, ou pelo menos minimizar, o ruído produzido pelos cães, sobretudo no período nocturno. Tais soluções poderiam passar por manter os cães dentro de casa, o que reduziria a intensidade do ruído, ou recorrer a dispositivos disponíveis no mercado que evitam o ladrar dos cães, entre outras que poderia ter procurado dentro das suas circunstâncias pessoais e concretas. A atitude que demonstrou, ignorando as queixas do Demandante e nada fazendo a esse respeito é reprovável e merecedora de censura por parte da Ordem Jurídica, pelo que dúvidas não restam de que a Demandada agiu com culpa.
d) o dano, que consiste em “toda a ofensa de bens ou interesses protegidos pela ordem jurídica” (Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 5ª Edição, 1991, p. 477), sendo que, no caso, estamos perante a ofensa de direitos de personalidade do Demandante.
Quanto a este aspecto, provou-se que os factos ilícitos e culposos, no período que está em causa, afectaram o direito ao repouso do Demandante, quebrando-lhe o descanso nocturno e fazendo com que o mesmo, tivesse de se levantar por vezes para ir tocar à campainha da Demandada, ou para ir dormir no quartel dos bombeiros. Tal, obrigava-o, ainda, a um esforço acrescido para responder às suas obrigações profissionais.
Trata-se de um dano não patrimonial que, pela sua gravidade, merece a tutela do Direito, nos termos do disposto nos artigos 483º e 496º do CC.
Quanto a este ponto, salienta-se, ainda, que tem sido pacífico que não deverá atender-se ao padrão do homem médio, mas a cada pessoa concreta, uma vez que a lei tutela cada Homem em si mesmo sendo, por conseguinte, irrelevante se outra pessoa nas mesmas circunstâncias seria afectada da mesma forma que o Demandante.
e) Por último, temos o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo, apelando-se à teoria da causalidade adequada, segundo a qual o facto há-de ser em concreto causa necessária do evento danoso (conditio sine qua non) e, ao mesmo tempo, terá de ser, em abastracto, adequado a causar tais danos. Isto é, o evento danoso deve ser constituído, simultaneamente, por uma causa necessária e uma causa potencialmente idónea da produção daqueles danos – cfr. artigo 563º do CC.
Da matéria provada resultam verificadas ambas as condições: os ruídos produzidos pelos cães era a causa directa da perturbação do sono do Demandante, sendo em abstracto uma causa idónea para a provocar.

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De todo o exposto, resulta verificada a violação ilícita e culposa, por parte da Demandada do direito de personalidade do Demandante, mais concretamente do seu direito à tranquilidade, ao repouso e ao sono, emanações dos direitos fundamentais à integridade física e moral, à saúde e a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado, causadora de danos não patrimoniais que pela sua gravidade merecem a tutela do direito (artigos 483º e 496º do C. Civil).
Resta, por fim, apurar o montante de tais danos, que o Demandante quantifica em € 9.000,00.
Os danos não patrimoniais são sempre de difícil quantificação, atendendo a que, muitas das vezes, tutelam valores e direitos que “não têm preço”. A indemnização, nestes casos, não visa propriamente ressarcir o lesado, mas dar-lhe uma compensação que, de algum modo, possa contrabalançar a lesão que sofreu.
O cálculo da indemnização deverá sempre obedecer a critérios de equidade, de prudência e de bom senso, atendendo às circunstâncias do caso concreto.
Há, também, que ter em conta o disposto no artigo 8º n.º 3 do CC: “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”
Ora, da análise da jurisprudência nesta matéria, verifica-se que o montante peticionado pelo Demandante é, manifestamente, superior às decisões que têm sido proferidas em casos análogos ao dos presentes autos.
Assim, com recurso à equidade e aos demais critérios supra referidos, e tendo em conta a jurisprudência nesta matéria e as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente o período em que durou a lesão (cerca de 2 anos), fixa-se a quantia indemnizatória no montante de € 1.000,00.

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Responsabilidade tributária:
Atento o disposto no artigo 527º n.º 1 e 2 do CPC aplicável ex vi do artigo 63º da LJP, e porque ambas as partes se declaram partes vencidas serão as custas repartidas na proporção do respectivo decaimento, que é de 89% para o Demandante e de 11% para a Demandada.
Assim, nos termos conjugados dos artigos 1º, 2º, 8º, 9º e 10º da Portaria n.º 1456/2001 de 28 de Dezembro, alterada pela Portaria n.º 209/2005 de 24.02, atendendo aos pagamentos já efectuados nestes autos, deverá o Demandante efectuar o pagamento da quantia de € 27,30, no prazo de 3 dias úteis a contar do conhecimento da presente decisão, sob pena de a tal quantia acrescer uma sobretaxa de € 10,00 por cada dia de atraso, com o limite de € 140,00, devendo ser devolvido igual montante (€ 27,30) à Demandada.
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Dispositivo:

Julgo a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência disso:

a) Condeno a Demandada a pagar ao Demandante a quantia de € 1.000,00.

b) Absolvo a Demandada do demais peticionado.

Custas na proporção de 89% para o Demandante e de 11% para a Demandada.

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Registe e notifique.
Bombarral, 09.03.2018


A Juíza de Paz

Carla Alves Teixeira
(que redigiu e reviu em computador – artigo 131º n.º 5 do CPC)