Sentença de Julgado de Paz
Processo: 26/2018 - ARV
Relator: ELENA BURGOA
Descritores: INCUMPRIMENTO CONTRATUAL. DIREITO DE CONSUMO. VENDA DE VEÍCULO. DESCONFORMIDADE. DIREITO À REPARAÇÃO. ABUSO DE DIREITO- BOA-FÉ.
Data da sentença: 12/05/2018
Julgado de Paz de : OESTE
Decisão Texto Integral: Proc. nº 26/2018 JPAV
Sentença

(proferida nos termos do n.º 1, do art.º 26.º, da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho)

Data: 05 de dezembro de 2018

Horas; 10:00h

Matéria: Responsabilidade civil contratual e incumprimento contratual, relativo a direito de consumo, alínea h e i, do n.º 1, do art.º 9.º, da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho.

Objecto do litígio: indemnização por danos causados com a venda de um veículo por alegadamente desconformidade/objeto defeituoso.

Demandantes: A e B

Mandatário: Dr. C

Demandada: D, Lda, representada pelo seu Legal Representante, E

Mandatária: Dr.ª F

Valor da ação: 5.750,00 €

Do requerimento Inicial

Com data de 31.01.2018, os Demandantes, identificados nos autos, intentaram a presente ação contra a Demandada, igualmente identificada nos autos, nos termos constantes do requerimento inicial (de fls. 1/5) que dá aqui por integralmente reproduzido e juntou 17 documentos (de fls. 9/45) que aqui se dão, igualmente, por reproduzidos. Pedindo/exigindo a devolução da viatura ou ser indemnizado no valor de 5.750,00 euros (cinco mil setecentos e cinquenta euros) correspondente a todos os extras em falta, diferença de potência de motor, perda de garantia e danos morais. Valor que pode ser ligeiramente ajustado, nos termos de orçamento solicitado.

Contestação

A Demandada foi regularmente citada e apresentou contestação constante de fls. 75/80, que aqui se dá por reproduzida. Juntou procuração forense e 3 documentos (fls. 81 a 83) que aqui se dão, igualmente, por reproduzidos, impugnando a factualidade alegada pelos Demandantes, concluindo pela improcedência da ação por não provada.

As partes não efetuaram sessão de pré-mediação por ter faltado a Demandada, que não justificou.


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Verificam-se os pressupostos de validade e regularidade da instância, não subsistindo outras questões que obstem ao conhecimento da causa.

Há que enfatizar, que o litígio/conflito submetido a este Tribunal atento o requerimento inicial apresentado é uma questão de direito de consumo/de natureza jurídico-civil, tal como aí é configurada, sem qualquer ressonância ou relevância jurídico- criminal que seja imputada à Demandada.

O Tribunal é, pois, competente.

É competente em razão da matéria e do território e do valor que se fixa em € 5.750,00 – arts. 297º nº 1 e 306º do Código de Processo Civil.

A audiência de julgamento foi agendada para o dia 31-10-2018, que se realizou, conforme ata de fls. 127/128, tendo sido marcada leitura de sentença para o dia 21-11-2018.

Contudo, a Demandada deu entrada, em 16.11.2018, de junção de prova documental de fls. 129 a 141., pelo que se desmarcou a data agendada para leitura de sentença, a fim de conceder prazo de pronúncia aos Demandantes, atendendo ao estatuto de igualdade substancial das partes.

Foi marcada leitura de sentença para esta data.

FUNDAMENTAÇÃO – MATÉRIA DE FACTO

Com base nas declarações das partes, testemunhas e restantes documentos juntos aos autos em tempo, devidamente conjugados com as regras de experiência comum e critérios de razoabilidade, dão-se como provados os seguintes factos,

1- Após pesquisa efetuada na internet no site/plataforma online G, a parte Demandante localizou, através do motor de busca, uma viatura de marca WW GOLF colocada à venda pela Demandada;

2- A Demandada dedica-se profissionalmente e com fins lucrativos, à atividade de comércio de automóveis;

3- Em 30.10.2017, os Demandantes compraram à Demandada o veículo, no estado de usado, de marca Volkswagen, modelo Golf 1.6 TDI, com a matrícula …, ano 2013, km 86.030. cor cinza, combustível Diesel, Cilindrada 1.6, para uso privado - docs. de fls. 81 a 83);

4- Os Demandantes são, assim, consumidores de bem comercializado pela Demandada;

5- O Demandante A assinou a proposta de compra, em 30.10.2018, tendo sido registada a propriedade do veículo em nome da 2ª Demandante, B;

6- Ficou acordado como preço da compra e venda referida o preço da venda de 15.750€ (quinze mil e setecentos cinquenta euros), que o 1º Demandante pagou à Demandada;

7- O preço foi pago, do seguinte modo: pelo pagamento de sinal de mil euros por transferência bancaria, em 30.10.2018 e os restantes €14.750, no dia 3.11.2018, por meio de cheque que tinha como beneficiária a Demandada;

8- A referida compra, com acordo de garantia pelo prazo de 1 ano (doc. fls. 81), foi efetuada nas instalações da Demandada;

9- Todas as negociações – os contornos do negócio jurídico envolveram, não a 2º Demandante, não obstante o registo do veículo estar ao seu nome, mas sim o 1º Demandante, ou seja, a quase totalidade das negociações e contactos foram realizadas entre o 1º Demandante e o sócio gerente da Demandada;

10- O veículo em questão era, à data, propriedade da esposa do sócio gerente da Demandada;

11- Em data anterior à conclusão definitiva do negócio, num domingo antes do almoço, os Demandantes juntamente com os pais da 2ª Demandante, deslocaram-se até onde estava o carro (à porta da casa do sócio gerente da Demandada), onde examinaram e conduziram o referido veículo;

12- Tendo para esse efeito o sócio gerente da Demandada facultado aos Demandantes as chaves do carro para experimentar/avaliar o mesmo e componentes;

13- O veículo foi observado e testado pelos Demandantes acompanhados pelo sogro do Demandante (e pai da 2ª Demandante) de profissão mecânico;

14- Que o Demandado lhes deu liberdade para experimentarem o carro, sem qualquer limitação de tempo ou outra;

15- Que tanto o Demandante como o pai da 2ª Demandante conduziram a viatura;

16- Que com o pai da Demandante (testemunha da parte Demandante), mecânico profissional, que experimenta viaturas, todos os dias, há dezenas de anos, deram uma volta;

17- Andou com o veículo uns 300/400m, durante 2 ou 3mn, efetuando o percurso por uma rua pequena para análise do barulho do motor, travões e embraiagem, não tendo o mesmo acusado problemas. E também estacionou o mesmo;

18- Tendo, em momento posterior, alertado para a verificação do estado das pastilhas;

19- Aquando do teste/experimentação, o pai da Demandante “só viu a parte mecânica e não viu outros pormenores”;

20- Aquando do teste/experimentação, os Demandantes não detetaram as alegadas desconformidades/inexistência de extras nem questionaram o vendedor acerca dos mesmos;

21- Após o teste, os Demandantes ficaram interessados na aquisição do veículo;

22- Em 30.10.2017, foi emitida a fatura/recibo FR 1/589 pelo preço de 15.750€;

23- A viatura tinha a inspeção técnica periódica aprovada, em 12 outubro de 2017 (fls. 27);

24- Foi entregue aos Demandantes a Declaração de circulação, na qual constava que a viatura a partir de 30.10.2017 era propriedade de B. (fls. 28);

25- O vendedor assumiu que a viatura seria entregue com lavagens interiores (estofos), revisão mecânica (óleo e filtros) e pintura para-choques traseiro;

26- Em 29.10.2017, o Demandante deu conhecimento à Demandada que com a viatura estava tudo ok, pedindo para confirmar “apenas na cobertura do carro se consegue limpar umas manchas que a B. mencionou”, fls. 30 verso;

27- Que nos dias a seguir a ter comprado o veículo, em 06.11.2018, solicitou à Demandada o anúncio do carro por este já ter sido removido, dando conhecimento do seu estado de “confusão com os extras”, fls. 33;

28- Atento o solicitado, de imediato, a Demandada comunicou ao Demandante que a partir do momento que o tira da net o anúncio desaparece, fls. 33;

29- Em 7.11.208, o Demandante deu conhecimento ao sócio gerente da Demandada do anúncio que recuperou e, por tal motivo, pretendia falar com ele;

30- Atento que não foi possível falar (por incompatibilidade de horários) o Demandante confrontou, em 8.11.2018, o vendedor com a ausência de extras (sensores de estacionamento, kit de mãos livres, Bluetooth, entrada usb e cruise control) fls. 35;

31- Sentindo-se enganado, o demandante, atento o combinado por ambos pelo telefone, em 09.11.2018, comunicava à Demandada das razões da devolução (a falta de alguns extras) e o seu modo de realização, quanto à entrega da viatura e à devolução da quantia entregue (15.750€);

32- Em resposta a essa comunicação, a Demandada enviou ao Demandante mensagem, datada no mesmo dia, na qual refere o transtorno causado pela troca, mas comunicou-lhe aceitar a entrega do carro e que teria de estar lavado e limpo, sem nenhum risco, mossa ou dano e recebendo o valor através de cheque e assinatura de nota de crédito;

33- Em sequência, o Demandante informou o seu Mandatário que lhe sugeriu a entrega do carro pronto;

34- O que não se veio a verificar/foi inviabilizada (a devolução) por desentendimentos quanto ao modo de proceder à devolução da quantia paga;

35- Atualmente as partes não estão interessadas na devolução da viatura;

36- Após esse desentendimento, as partes reataram o diálogo;

37- O Demandante confirmou à Demandada, em 14.11.2018, o recebimento da fatura do carro e fala no assunto da instalação de extras na viatura;

38- Em 29.11.2018, o Demandante questiona à Demandada para saber da entrega do livrete, fls. 40;

39- Potencia útil máxima da viatura: 66 KW, Documento Único Automóvel, fls. 26;

40- Na sequência da disponibilização do livrete, em 28.12.2018, perante a informação constante no mesmo da potencia de 66 kW da viatura (90 cavalos) solicita à Demandada a confirmação do erro, pois supostamente deveria ter 105 cavalos, fls. 43;

41- Em 19 de janeiro de 2018 o Demandante volta a insistir pela entrega do livrete, fls. 45, sendo entregue, ainda, em janeiro;

42- O vendedor, ao longo do período pré-contratual assumiu que a potência do motor da viatura correspondia a 105 cavalos. Não informou os Demandantes da potência que a mesma tinha (90 cavalos/66KW);

43- O livrete/documento único de automóvel não foi mostrado/nem entregue no momento do teste da viatura nem no momento da compra;

44- Que no anúncio na plataforma online G junto nos autos (fls. 9 a 25), impresso em 06.11.2018, com a indicação de que corresponde a um instantâneo da página, tal como surgiu no dia 20 de outubro - há divergências entre as especificações das características da viatura (fls. 22 verso e 23) e as imagens apresentadas (fls. 9 verso a 21);

45- O veículo da imagem, fotografia digital impressa (de fls. 9 verso a 14), não tem sensores de estacionamento traseiros nem dianteiros;

46- O veículo da imagem, fotografia digital impressa (15 e 16 verso), não tem cruise control;

47- O veículo da imagem, da fotografia digital impressa de fls. 12,13, 20 verso, não apresenta anomalias na pintura do para-choques traseiro;

48- No exercício da sua atividade, a Demandada tinha sempre vários anúncios publicitados na referida plataforma.

Factos não provados

- Sob qual regime de bens os Demandantes são casados;

- A origem/causa das divergências entre as fotografias digitais impressas e o texto inserido com as características/especificações da viatura;

- Qualquer conduta dolosa da Demandada;

- Danos morais sofridos pelos demandantes;

- O valor em causa para colocação dos acessórios peticionados e o valor correspondente ao diferencial de potência que tem a viatura (90 CV) e a potência garantida pela Demandada (105 CV).

Motivação

Produzida a prova, deram-se como assentes os factos provados e os não provados, constantes das rubricas acima com o mesmo nome. A convicção do Tribunal assentou nas declarações das partes e testemunhas e na análise crítica da documentação junta.

Para tal, foram fundamentais o alegado e declarado pelas partes, as missivas eletrónicas entre as partes, conjugados com a prova testemunhal, com especial relevância para a testemunha dos Demandantes, E, que apesar da qualidade de pai da Demandante, depôs de forma credível, e foi alvo de valoração da prova porquanto acompanho o processo de compra e experimentação da viatura e possui conhecimentos técnicos (mecânico profissional). Explicou, de forma clara, que o sócio gerente da Demandada, E, lhes deu liberdade para testar o carro sem qualquer limitação e que o próprio também experimentou o veículo. Quanto a matéria relativa aos extras da viatura afirmou não ter visto esses “pormenores”, pois só se apercebeu da parte mecânica. Revelou ter perguntado no local ao vendedor/sócio gerente da Demandada qual era a potência do veículo, sendo respondido que 115CV e referindo que, na altura, não foi exibida a documentação – Livrete/Documento Único Automóvel.

Quanto às testemunhas apresentadas pela Demandada foram credíveis e imparciais na medida do adequado. H e I, ex-empregado e empregado da Demandada, ambos tinham conhecimento do negócio. H revelou ter participado, às vezes, na colocação de anúncios na plataforma, conhecer da insatisfação dos Demandantes embora não soubesse o motivo. Que se apercebeu que a Demandada, aquando da reclamação, queria devolver o dinheiro., embora não tenha acompanhado a venda diretamente. Por último, I, vendedor no stand da Demandada, foi igualmente atendível por ter respondido de forma precisa ás questões colocadas sobre o procedimento de venda dos veículos, a (ir)relevância da diferencia de potência em causa, performance da viatura. Referindo também que quando os anúncios são inseridos, o sistema assume, as vezes, características que os carros não têm.

Quanto aos documentos juntos, não foram considerados os documentos que o Demandante veio a juntar em 16.11.2018, conforme Despacho de 27.11.2018, de fls. 150, por tardiamente apresentados. Pelo que devem ser desentranhados e deles não se tendo tomado conhecimento para prolação da decisão, devolvendo-se à parte.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A questão a decidir é a de saber se dos factos apurados resulta que o veículo objeto da compra e venda aqui em apreço seja um objeto defeituoso e se constituiu na obrigação de indemnizar o Demandante, devendo, neste caso, a Demandada ser condenada e em que quantitativo.

Da matéria factual dada por provada resulta que, em 30.10.2017, por um lado, os Demandantes adquiriram à Demandada, num estabelecimento comercial desta, um veículo automóvel, através de um contrato de compra e venda (cfr. arts. 874º e 879 Cód. Civil), tendo por objecto o veículo automóvel referido em 3) dos factos provados, no estado de usado, e pelo preço de 15.750,00€; sendo que a Demandada, enquanto vendedor, entregou aos Demandantes o referido veículo automóvel no mesmo dia 30.10.2017. A coisa vendida foi, assim, uma coisa móvel corpórea (e duradoura), não estando o contrato legalmente sujeito à observação de forma ou formalidades especiais (art. 219º Cód. Civil).

No caso em apreciação, tendo o bem sido comprado para fins não profissionais do Demandantes, constata-se que aquele contrato de compra e venda foi celebrado entre um vendedor profissional e um consumidor (in casu, 2). Consequentemente, constitui um contrato de compra e venda de consumo – sujeito ao regime das garantias relativas à venda de bens de consumo previsto no Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, com a redacção resultante das alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 84/2008, de 21 de Maio (cfr. Art. 1º-A) – e é fonte de uma relação jurídica de consumo – sujeita subsidiariamente às regras da Lei nº 24/96, de 31 de Julho de 1996 (Lei de Defesa do Consumidor).

Com efeito, no caso em apreciação, os Demandantes são de qualificar como consumidores (nos termos dos arts. 1º, nº 3/a) Dec.-Lei nº 143/2001, 1º-B/a) do Decreto-Lei nº 67/2003 e 2º, nº 1, da Lei nº 24/96), enquanto a Demandada é de qualificar como vendedora (nos termos do art. 1º-B/c) do Decreto-Lei nº 67/2003), e a coisa vendida é de qualificar como bem de consumo (nos termos do art. 1º-B/b) do Decreto-Lei nº 67/2003).

Atenta esta qualificação, há que assinalar que a Lei de Defesa do Consumidor, no seu artigo 4º, estabelece que “Os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”.

Também há que referir que o vendedor está obrigado a entregar ao comprador-consumidor bem de consumo que seja conforme com o contrato de compra e venda (art.2º, nº 1, Decreto-Lei nº 67/2003).

No entanto, o bem de consumo, entregue pelo vendedor ao comprador-consumidor, presume-se que não é conforme com o contrato quando ocorra, entre outros factos previstos na lei, o seguinte: «não apresentar as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem».

Além deste preceito, há que tomar em conta o princípio geral da boa-fé que rege toda a construção legal do direito privado e, em especial, do direito civil.

Assim, o art. 762º, nº 2 do Cód. Civil estipula que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente devem as partes proceder de boa-fé. Esta exige que o direito seja exercido de forma honesta e íntegra, de modo a não causar prejuízos injustificados ou mesmo frustrar expectativas devidamente fundadas da contraparte.

Agir segundo a boa-fé traduz-se na observância das “exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos”- A. Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., pág. 96.

Nos termos da referida al. d), presume-se que o objeto da compra e venda será defeituoso se as suas qualidades e o seu desempenho habituais não corresponderem aos habituais nos bens do mesmo tipo e que o comprador pode razoavelmente esperar, tendo em conta a natureza do bem e eventualmente, as declarações públicas sobre as características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante.

Ora, no caso em apreciação, a anomalia denunciada pelos Denunciantes à Demandada, em 6.11.2017, mais concretamente, o facto de a viatura ter os extras em falta - é susceptível de ser subsumível à presunção de desconformidade do bem com o contrato prevista naquela alínea d) do art. 2º Decreto-Lei nº 67/2003.

Quanto ao prazo de garantia, tratando-se de coisas móveis – como é o veículo discutido na presente acção -, a lei estabelece como prazo de garantia o de dois anos a contar da entrega do ao comprador-consumidor (art. 5, nº 1, Decreto-Lei nº 67/2003); no entanto, no caso de coisas móveis usadas – como é igualmente o veículo discutido na esta acção –, a lei admite que tal prazo possa ser reduzido a um ano mediante acordo das partes (art. 5, nº 2, Decreto-Lei nº 67/2003). No caso em apreciação, houve acordo entre Demandantes e Demandada para a redução da garantia a um ano, tendo a Demandada assumido garantia de bom funcionamento do motor e caixa de velocidades do veículo, pelo prazo de 12 meses, com início em 30.10.2017 (nº 8) dos factos provados).

Assim sendo, importa ter em conta que sobre o vendedor impende o dever de responder perante o comprador-consumidor por qualquer falta de conformidade que existisse no momento em que entregou a este o bem de consumo (art. 3º, nº 1, Decreto Lei nº 67/2003), sendo que o vendedor responde por tal desconformidade anterior ao momento da entrega, mesmo sem culpa sua; acresce que as faltas de conformidade que se manifestem no prazo de garantia a contar da entrega daquele bem – no caso em apreciação, no prazo de um ano a contar a partir da entrega do veículo aos Demandantes, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando essa presunção for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade (art. 3º, nº 1, Decreto-Lei nº 67/2003).

Em caso de falta de conformidade do bem entregue com o contrato, como “remédios” o consumidor tem direito a que a conformidade «seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato» (artigo 4º, nº 1, do DL 67/2003).

Ora, preceitua o art. 4º, nº 5, Decreto-Lei nº 67/2003 que o consumidor pode exercer qualquer destes direitos, salvo se, no caso concreto, tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito nos termos gerais. Sendo que, nos termos gerais previstos no art. 334º Cód. Civil, ocorre abuso do direito quando o exercício de um direito excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico daquele direito.

No caso em apreciação, o Demandante, após ter optado pela devolução da viatura (“resolução”) que não se revelou possível por desentendimentos quanto ao seu processamento (n.ºs 30/34 dos factos provados) optou por exercer o direito à reparação com a colocação dos extras em falta.

Para exercer os referidos direitos que a lei lhe confere para a reposição da conformidade do bem (e, portanto, também o direito à reparação), caso se trate – como no caso em apreciação – de bem móvel, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses a contar da data em que a tenha detectado (art. 5º-A, nº 2, Decreto-Lei nº 67/2003). No caso em apreciação, não foi possível apurar a data concreta em que o Denunciante tomou conhecimento de tal anomalia, mas tendo ficado provado que o Denunciante denunciou à Demandada da ausência dos extras (sensores de estacionamento, kit de mãos livres, Bluetooth, entrada USB e cruise control no dia 08.11.2017, das características que pretendiam e criaram expetativas (nº 30 dos factos provados). Sendo que em 6.11.2018, deu conhecimento à Demandada do seu estado de “confusão” em relação com os extras da viatura (nº 27 dos factos provados).

No entanto, da prova produzida resultou provado que, por um lado, que o anúncio da plataforma online junto aos autos (fls. 9 a 25) apresenta divergências entre as especificações das características da viatura (fls. 22 verso e 23) e as imagens apresentadas (fls. 9 verso a 21)– facto provado nº 44, verificando-se que o veículo da fotografia digital impressa não tinha sensores de estacionamento nem cruise control (nºs 45 e 46 dos factos provados); por outro lado, a Demandada entregou o veículo ao Demandante para verificar/experimentar a viatura e componentes (n.º 12/15 dos factos provados).

Ora, não caso dos referidos extras não estávamos perante vícios ocultos e foi dada a oportunidade aos Demandantes de verificar essas características visíveis da viatura e podiam e deviam ter esclarecido junto do vendedor, ou melhor ainda, junto do pai da Demandada, técnico profissional mecânico, que os acompanhava na realização do teste à viatura.

A sua conduta é culposa, na medida em que uma pessoa diligente e para a qual fossem determinantes uma certas características/especificações do veículo, no lugar dos Demandantes, podia e devia ter agido de outra forma, sendo a sua conduta censurável por constituir a falta dos extras vícios aparentes ou de fácil constatação.

Ora, atendendo a tal, no caso concreto, é de considerar abusivamente exercido pelos Demandantes o direito à reposição da conformidade do veículo (no que respeita à desconformidade pela falta de extras, por se traduzir num exercício que excede manifestamente os limites impostos pela boa fé e, consequentemente, por configurar uma situação de abuso do direito, nos termos gerais (previstos no art. 334º Cód. Civil).

Em suma, atentos os factos provados, no caso concreto, o exercício do direito de reparação, apesar de não ser impossível, considera-se que, no caso concreto discutido na presente acção, constitui abuso do direito. Pelo que, conclui-se que, no caso em apreciação, apesar de a falta de conformidade se ter manifestado dentro do prazo de garantia, e o Demandante exercer tempestivamente foi ilegitimamente exercido – por se tratar de exercício abusivo – o direito à reposição da conformidade do veículo, quanto à falta de extras discutidos na presente acção.

Assim, dos factos provados não resulta que o veículo objeto do contrato de compra e venda em causa se possa considerar defeituoso quanto aos extras.

Quanto à diferença na potência da viatura (66 KW) 90 cavalos em vez dos 105 cavalos, não oferece dúvidas de que configura uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, pois não estava conforme com as qualidades que a Demandada assegurava (nº 42 dos factos provados). Estamos aqui perante um vício oculto que só poderia ser detetado com a entrega atempada da documentação (Livrete ou Documento Único Automóvel). Acresce que em termos legais, decorre do art. 882º, nº2, do Código Civil que a obrigação da entrega da coisa, no contrato de compra e venda que impende sobre o vendedor, abrange, “salvo estipulação em contrário”, a entrega ao comprador dos “documentos relativos à coisa ou direito”. Mesmo que da lei não resultasse tal obrigação, ela resulta dos chamados deveres secundários ou acessórios de conduta cuja violação pode constituir fundamento para a resolução do contrato.

Os deveres acessórios de conduta são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma actuação de boa-fé (art. 762º, nº2, do Código Civil) entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos deveres correspondentes, devem agir com honestidade, e consideração pelos interesses da outra parte.

Ora, no momento da aquisição, a Demandada apenas entregou aos Demandantes uma declaração e autorização para circular com o veículo adquirido, documento que apenas é válido temporariamente e como comprovativo perante as autoridades de trânsito, de que o mencionado veículo havia sido adquirido pela autora. (nº 24 dos factos provados).

Como acima referido, o incumprimento e a morosidade no seu cumprimento da obrigação de entregar o referido documento (livrete) embora por causa do averbamento dos vidros escurecidos, impossibilitou os Demandantes de fruir plenamente o veículo adquirido e não obstante a entrega do veículo.

Tanto mais que tratando-se de um veículo automóvel, o registo é obrigatório e a sua circulação está dependente desse registo, tal como decorre do disposto no artigo 5.º, n.º 1, do DL 54/75, de 12/2, pelo que o vendedor só cumpre pontualmente o contrato quando emite a declaração de venda necessária à aquisição no registo da aquisição automóvel a favor do comprador, tal como decorre do disposto no artigo 25, n.º 1, do DL 55/75, de 12/2.

Aliás, só com a verificação da documentação poderia conferir se o carro que se está comprando é o mesmo que está descrito no documento e constatar as suas características. Particularmente no caso dos autos, onde resulta provado que, assim que foi entregue o Documento Único Automóvel, o Demandante denunciou à Demandada a desconformidade da potência da viatura, em 28.12.2018 (nº 40 dos factos provados).

Ora, dada a natureza desta desconformidade não sendo possível a reparação, e ainda que não afete gravemente a funcionalidade do veículo, acarreta desvalorização. Não estando provado, nos autos, o respetivo valor da desvalorização correspondente ao diferencial entre ambas as potências, o Tribunal carecendo de elementos para fixar o seu valor, deverá condenar naquilo que venha a ser liquidado posteriormente.

Conforme a doutrina e a jurisprudência, quando foram alegados apenas os factos geradores desses prejuízos, estes terão de ser liquidados em execução de sentença (nº 2 do artº 661º do Código de Processo Civil, cfr, ainda Alberto dos Reis (Código de Processo Civil - Anotado, I, p.614, 615 e V, p.71; Ac. Rel. Évora 20-01-1977, BMJ, 270, p.276, Ac. Rel. Porto, 15-2-1979, C.J., 1979, II, p.438).

Em relação à indemnização peticionada por danos morais, nada se provou nos autos, razão pela qual este pedido improcede.


DECISÃO

Em face do exposto e das disposições legais aplicáveis, julga-se a presente ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência condeno á Demandada no pagamento aos Demandantes de indemnização que se apurar em posterior incidente de liquidação correspondente ao valor da desvalorização correspondente ao diferencial existente entre a potência existente na viatura (90 cavalos) e a expectável (105 cavalos).

Custas

Na proporção, provisoriamente, de 50% para cada uma das partes.

Esta sentença foi proferida e notificada às partes presentes, nos termos do art.º 60.º, n.º 2, da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, ficando as mesmas cientes de tudo quanto antecede.

Envie-se cópia.

Julgado de Paz do Oeste, Arruda dos Vinhos, em 05 de dezembro de 2018
(processado informaticamente pela signatária)

A Juíza de Paz


(Elena Burgoa)