Sentença de Julgado de Paz
Processo: 110/2018-JPCRS
Relator: ELISA FLORES
Descritores: USUCAPIÃO- AUTONOMIZAÇÃO DE PARCELA
Data da sentença: 02/06/2019
Julgado de Paz de : CARREGAL DO SAL
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
Demandantes:
A, em nome próprio e habilitado no lugar de sua mãe, E, anteriormente demandante nos presentes e falecida na sua pendência, e B, na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de F;
Demandados:
I - C, D, casada no regime da separação total de bens com P, G, casada no regime da separação total de bens com H, todas na qualidade de herdeiras da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de I;
II - J, L, e M, todas na qualidade de herdeiras da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de Q.
RELATÓRIO
Os demandantes propuseram contra I e esposa C e as demandadas herdeiras de Q, a presente ação declarativa para autonomização de parcela que se enquadra na alínea e) do nº 1 do artigo 9.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, pedindo, com os fundamentos constantes do requerimento inicial, que: Se declare que o prédio identificado no artigo 5.º da petição inicial se encontra dividido em substância em três prédios autónomos e independentes uns dos outros; A parcela dos demandantes, com a composição e configuração agora descritas, se autonomizou por via da usucapião, atenta a demarcação de facto alegada; Se reconheça os demandantes como donos e legítimos proprietários do prédio que efetivamente possuem, melhor identificado na alínea a) do artigo 9.º da petição inicial; Se condene os demandados no reconhecimento e aceitação da constituição e existência de tal prédio como autónomo e distinto, assim como o direito de propriedade dos demandantes sobre o mesmo; E se ordene a adequação do artigo matricial e registo em conformidade.
Para o efeito, juntaram sete documentos, que aqui se dão por reproduzidos.
Tendo conhecimento no decurso da ação que o demandado I já havia falecido, a fim de sanar a ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário, atento o disposto no artigo 39º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 2º da Lei nº 54/2013, de 31 de julho, e por razões de absoluta economia processual, admitiu-se a intervenção das herdeiras do “de cujus”, D e G, agora demandadas, em representação da sua Herança (cf. nº1 do artigo 2091º do Código Civil e artigos 30º, 577º, alínea e) e 576.º, nº2, 578º do Código de Processo Civil), que citadas, não contestaram.
Já na fase de julgamento o filho, também aqui demandante, e alegadamente único e universal herdeiro da demandante E, veio comunicar o seu falecimento na pendência da ação, requerendo a suspensão da instância e desencadeando o incidente de habilitação de herdeiros.
A instância foi suspensa para o efeito, como requerido, e após a instrução do incidente de Habilitação de Herdeiros, autuado em Apenso [P110-A/2018] foi em 27 de novembro de 2018 proferida a respetiva sentença, onde se reconhece o requerente A e se determina a habilitação do mesmo para prosseguir na ação principal como demandante na posição que a falecida E, a habilitada, ocupava, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 354.º do Código de Processo Civil.
Uma vez transitada em julgado, esta sentença, a instância principal prosseguiu com a Audiência de julgamento.
As demandadas, regular e pessoalmente citadas, não apresentaram contestação mas a demandada D compareceu à Audiência de Julgamento.
Nesta, só os demandantes apresentaram testemunhas.
Valor da ação: € 73,22 (setenta e três euros e vinte e dois cêntimos).
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
Consideram-se provados os seguintes factos:
1.º- O autor da herança demandante, F, faleceu em 19/11/2015, no estado de casado e em primeiras núpcias de ambos, e sob o regime da comunhão geral de bens, com E, entretanto também falecida, na pendência da ação;
2.º- Para além da sua esposa, E, sua herdeira legitimária, sucedeu-lhe ainda o filho do casal, A, casado com R, sob o regime de bens de comunhão de adquiridos;
3.º- Tendo ainda deixado testamento público outorgado no Cartório Notarial de S, lavrado no livro de notas para testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos número três, de folhas dezanove a folhas dezanove verso, pelo qual instituiu herdeiro da quota disponível da sua herança, B, também aqui demandante;
4.º- Do acervo hereditário de F faz parte o prédio rústico, sito ao Quintal, lugar de T, freguesia de U, concelho de S, composto de vinha e terra de semeadura com videiras, oliveiras e mato, a confrontar a Norte com Herdeiros de V, a sul com Estrada, a Nascente com J e a Poente com Caminho público, inscrito na matriz predial sob o artigo 8414.º, com a área de 0, 8193 Há (área corrigida) registado na respetiva na Conservatória do Registo Predial de S, sob o nº 0000/20140511;
5.º- Tal prédio veio à posse do já falecido F e a então já esposa, E, por óbito de X e mulher, Z, falecidos respetivamente em 31 de março de 1977 e em 21 de maio de 1982;
6.º- Após o óbito da Z, no ano de 1982, F e esposa e ainda os seus irmãos, I e J, bem como os respetivos cônjuges, procederam à partilha e divisão informal do referido prédio, em 3 parcelas autónomas e independentes umas das outras;
7.º- Tais parcelas foram imediatamente demarcadas, com marcos de pedra que cravaram no solo e/ou cordões de videira, ao longo da linha divisória de cada uma;
8.º- Ao falecido F e esposa, E, foi atribuída a Parcela nº 1, conforme cópia da Planta junta aos autos a fls. 24, ou seja:
Prédio rústico composto por terra de semeadura, com videiras, oliveiras e mato, com a área de 2.233m2, sito ao Quintal, lugar de T, freguesia de U, concelho de S, a confrontar a Norte com herdeiros de V, a Sul com Herdeiros de W e outro, a Nascente com J e a Poente com Caminho Público;
9.º- À sua irmã J e marido já falecido, Q, foi atribuída a parcela 2, ou seja o prédio rústico constituído por terra de semeadura com videiras, oliveiras e mato, com a área de 2.258 m2, sito ao Quintal, lugar de T, freguesia de U, concelho de S, a confrontar a Norte com herdeiros de V, a Sul com Estrada, a Nascente com I e a Poente com F;
10.º- Por sua vez a I, já falecido e esposa foi atribuída a parcela 3, um prédio rústico constituído por terra de semeadura com videiras, oliveiras e mato, com a área de 3.702 m2, sito ao Quintal, lugar de T, freguesia de U, concelho de S, a confrontar a Norte e Nascente com herdeiros de V, a Sul com Estrada e urbano do próprio, e a Poente com J;
11.º- Passando a partir dessa data, 1982, o falecido F e mulher, E, e os seus irmãos e respetivos cônjuges, a usar e fruir cada um a sua parcela, agindo e comportando-se como únicos e exclusivos proprietários da mesma;
12.º- Sendo que o falecido F e a sua esposa, e posteriormente os seus herdeiros, têm vindo continuamente, a plantar e a tratar, dentro dos limites do seu prédio, videiras e oliveiras, colhendo os seus frutos;
13.º- E procedendo à limpeza do seu prédio, nomeadamente roçando as silvas, os matos, as ervas daninhas;
14.º- Retirando do seu prédio todos os benefícios e utilidades que ele é suscetível de produzir, e sempre em proveito próprio;
15.º- O que sempre fizeram à vista e com o conhecimento de toda a gente, de forma contínua e ininterrupta;
16.º- Sem oposição de quem quer que seja;
17.º- Na convicção de que, com sua posse, não lesam direitos de outrem;
18.º- Apesar da divisão informal operada no prédio identificado em 4.º supra, “prédio mãe” este foi um dos bens relacionados e partilhados no Processo de Inventário n.º 539/11.2TBSCD, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal de Y, por óbito de X e Z, progenitores do falecido F e dos demandados I e J;
19.º-Por mero formalismo da partilha teve de ser adjudicado na proporção de 5/18 avos para o Autor da herança ora demandante, F, de 8/18 avos para o falecido I, e de 5/18 para J;
20.º- Para pôr fim à compropriedade, e com fundamento na usucapião, I e J, intentaram ação neste Julgado de Paz contra F e esposa- processo com o n.º 135/2014-JPCSal-, no âmbito da qual foi proferida sentença, já transitada em julgado, onde foi decidido:
“a) Declaro que o prédio rústico “ prédio mãe”, sito ao Quintal, inscrito na matriz da freguesia de U, concelho de S, sob o artigo 8414.º e atualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de S sob o n.º 6929/20140511, se encontra dividido em substância, em três prédios autónomos e independentes uns dos outros;
Declaro que I e mulher, C, são donos e legítimos proprietários do prédio rústico constituído por terra de semeadura com videiras, oliveiras e mato, com a área de 3.702 m2, sito ao Quintal, Lugar de T, freguesia de U, concelho de S, a confrontar do norte e nascente com Herdeiros de V, do sul com Estrada e urbano do próprio, e de poente com Herdeiros de Q, por se ter autonomizado do prédio originário, com o artigo matricial 8414.º e descrição n.º 0000/20140511, por via da usucapião;
c) Mais declaro que a Herança aberta por óbito de Q, representada pelos seus herdeiros, J, L e M, é dona e legítima possuidora do prédio rústico constituído por terra de semeadura com videiras, oliveiras e mato, com a área de 2.258 m2, sito ao Quintal, lugar de T, freguesia de U, concelho de S, a confrontar do norte com Herdeiros de V, do sul com estrada, de nascente com I e do poente com F, por também se ter autonomizado do prédio originário, com o artigo matricial 8414.º e descrição n.º 0000/20140511, por via da usucapião.”;
21.º- E assim, dando-se cumprimento a esta decisão, foram autonomizadas as parcelas 2 e 3 constantes da planta junta a fls. 24 dos autos, e criados 2 prédios autónomos e distintos entre si, ficando um a pertencer a X e esposa, e o outro à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de Q, representada pelas suas herdeiras, a viúva, J e suas filhas L e M, cada um com novo artigo matricial e número de registo predial (desanexações n.ºs 0000/20151126 e 00000/20151126);
22.º- Com a referida autonomização, cessou a compropriedade dos demandados no identificado “prédio mãe” e foi corrigida a sua área, deduzindo-lhe a área das parcelas que se autonomizaram;
23.º- Ficando o “prédio mãe” identificado no nº 4.º supra, com a área reduzida a 2.233m2 (parte sobrante), a pertencer apenas ao falecido F e atualmente, após a sua morte, a pertencer à herança ilíquida e indivisa aberta pelo seu óbito, em propriedade plena;
24.º- Sendo que há mais de 30 anos que o falecido F e esposa, e após o seu óbito, os representantes da herança demandante, têm exercido sobre a sua parcela, totalmente separada e distinta do prédio inicial, por divisão informal, atos materiais de posse, uso e fruição, de forma pacífica, pública, contínua, de boa-fé, na convicção de serem seus donos exclusivos;
25.º- Pelo que constitui um prédio autónomo, que os representantes da demandante aqui pretendem ver reconhecido, por usucapião, e atualizar a sua inscrição matricial e o registo na Conservatória do Registo Predial, em conformidade.
Motivação dos factos provados:
Atendeu-se aos documentos juntos aos autos, às declarações do demandante A e da demandada presente em julgamento, J, bem como do depoimento das testemunhas apresentadas pelos demandantes, N, e O, tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 607º, nº 5 do Código de Processo Civil (C P C), aplicável subsidiariamente e com as necessárias adaptações aos Julgados de Paz, por força do disposto no artigo 63º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhe foi conferida pelo mesmo artigo 2º da Lei nº 54/2013, de 31 de julho e no artigo 396º do Código Civil (doravante simplesmente C. Civil).
Ambas as testemunhas são vizinhas do prédio e depuseram com isenção e conhecimento direto dos factos.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provou que a Sul o prédio confronta com a Estrada, por prova em contrário. De facto, da Planta junta aos autos a fls. 24, e da prova produzida em julgamento resultou que esta parte sobrante do “prédio mãe” já não confronta a Sul com a Estrada, pelo facto de, segundo a demandada presente, o seu pai ter vendido uma parte de terreno a Sul, junto e em paralelo à Estrada, aos atuais confrontantes.
FUNDAMENTAÇÃO De direito:
Os demandantes, enquanto possuidores do prédio correspondente à parcela nº 1 da Planta junta aos autos, descrita no nº 8.º da factualidade assente, já totalmente separada e distinta do prédio inicial, por divisão informal, na convicção de serem seus donos exclusivos, visam com a presente ação adquiri-la por usucapião, sem determinação de parte ou direito.
Resulta, efetivamente, da matéria de facto dada como provada que o prédio originário, “prédio mãe”, desde 1982 se encontra dividido, informalmente, em três prédios perfeitamente autónomos, individualizados e demarcados, passando os já falecidos F e esposa, por inversão do título de comproprietário para proprietário exclusivo, e posteriormente os seus sucessores, a explorar exclusivamente a sua parcela, com a configuração que hoje tem.
Posse que é titulada, por escritura de partilhas, mas que não reflete a realidade jurídica possessória, que existe há muitos anos.
O instituto da usucapião tem eficácia constitutiva, permitindo adquirir o direito sobre o qual foi constituída, e liga-se à posse, pública e pacífica, como um dos seus efeitos (cf. artigos 1316º, 1287º, 1297º, 1265º e 1300º, e ainda 1265º, todos do C. Civil);
E tem de se prolongar, de forma contínua, por um determinado prazo. Na situação dos autos, a mesma tem uma duração temporal superior à legalmente exigida, uma vez que se trata de posse de boa-fé, por ter sido elidida a presunção do nº 2, do artigo 1260.º do C. Civil.
O artigo 1268º do C. Civil estabelece uma presunção, a de que, quem está na posse de uma coisa é titular do direito correspondente aos atos que pratica sobre ela.
Acresce ainda, que a posse é pública se é exercida de modo a que todos aqueles que possam invocar um direito contraditório com a coisa possam ter conhecimento dela. E é pacífica se adquirida sem violência. No caso dos autos resulta que a posse dos demandantes preenche também estes requisitos.
E presumindo-se que quem pratica os atos materiais, o “corpus”, tem igualmente o “animus possidendi”, presunção que não foi ilidida pelas demandadas, resulta do exposto que os demandantes reúnem, assim, os requisitos legalmente exigidos para o efeito de aquisição por usucapião, da referida parcela.
Mas aquela não opera, contudo, automaticamente, pelo mero decurso do prazo, necessita de ser invocada, o que pretendem os demandantes com a presente ação. Assim sendo, o exercício efetivo e com caráter de reiteração, público e de boa-fé, da posse do prédio pelos demandantes, como titulares de um direito de propriedade, por mais de vinte anos, confere-lhes o direito de adquirir esse mesmo direito, por via da usucapião, nos termos do artigo 1287º e seguintes do C. Civil, por se encontrarem preenchidos os seus requisitos.
Por outro lado, é a jurisprudência maioritária de que não são impedimento as regras que visam evitar o fracionamento excessivo de prédios rústicos, porque cedem perante os direitos adquiridos por usucapião, forma de aquisição originária da propriedade.
decisão:
Em face do exposto, julgo a ação procedente, por provada, e em consequência:
a) Declaro que pertence exclusivamente aos demandantes, B e A, sem determinação de parte ou direito, em representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de F, e por se ter autonomizado, por via da usucapião, do prédio originário, “prédio-mãe”, inscrito na Matriz Predial sob o artigo 8414.º e registado na Conservatória do Registo Predial de S sob o nº 0000/20140511-, o seguinte prédio rústico sito ao Quintal, lugar de T, freguesia de U, concelho de S, identificado como Parcela nº 1 da Planta junta aos autos:
- Terra de semeadura, com videiras e oliveiras, com a área de 2.233m2, a confrontar a Norte com herdeiros de V, a Sul com Herdeiros de W e outro, a Nascente com J e a Poente com Caminho Público, o qual passou a ser um prédio autónomo e distinto do “prédio mãe”, e do qual se destacou;
b) Declaro que, por força das autonomizações e posteriores desanexações entretanto ocorridas, das Parcelas “2” e “3” descritas nos pontos 9.º e 10.º da factualidade assente, em cumprimento da decisão proferida no Processo n.º 135/2014-JPCSal, já transitada em julgado, este prédio corresponde à parte sobrante do “prédio-mãe”;
c) Condeno as demandadas no reconhecimento e aceitação da constituição e existência deste prédio referido na alínea a) da presente decisão como autónomo e distinto do originário prédio rústico inscrito na Matriz Predial sob o artigo 8414.º e registado na Conservatória do Registo Predial de S sob o nº 0000/20140511, “prédio mãe”, assim como o direito de propriedade exclusiva dos demandantes sobre o mesmo, embora sem determinação de parte ou direito;
d) Ordeno a correção da composição e confrontações do “prédio mãe” na inscrição do artigo 8414.º da Matriz Predial rústica da freguesia de U, concelho de S, devendo da certidão de teor correspondente a este prédio, passar a constar a composição e confrontações indicadas na alínea a) da presente decisão;
e) Ordeno ainda a atualização em conformidade da descrição do “prédio-mãe”- a descrição n.º 0000/20140511, freguesia de U - da Conservatória do Registo Predial de S, devendo constar no registo predial como seus únicos proprietários B e A, sem determinação de parte ou direito, em representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de F, e a composição e confrontações indicadas na alínea a) da presente decisão.
Dada a natureza do processo, custas totais pelos demandantes.
Registe e notifique.
Carregal do Sal, 06 de fevereiro de 2019
A Juíza de Paz, (Elisa Flores)