Sentença de Julgado de Paz
Processo: 14/2018-JPCNT
Relator: ISABEL BELÉM
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE - POSSE - AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
Data da sentença: 04/17/2018
Julgado de Paz de : CANTANHEDE
Decisão Texto Integral:
SENTENÇA
Processo nº 14/2018-JP

I - IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES

DEMANDANTES:
A, viúva, residente no lugar da XXX, na Rua Principal, n.º 3XX, freguesia da Tocha, neste concelho de Cantanhede;
B, divorciado, residente no referido lugar da XXX, na Rua Principal, n.º 3XX, freguesia da Txx, neste concelho de Cantanhede; e
C, casado em comunhão de adquiridos com D, residente no lugar da XXX, na Rua Principal, n.º 3XX, freguesia da Txx, neste concelho de Cantanhede, na qualidade de herdeiros e representantes da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de MOD.

DEMANDADOS:
E, viúva, residente no lugar de XXX, na Rua dos XXX, n.º 3XX, freguesia da Txx, neste concelho de Cantanhede;
F, solteiro maior, residente no lugar de XXX, na Rua dos XXX, n.º 3XX, freguesia da Txx, neste concelho de Cantanhede; e
G, casada em comunhão de adquiridos com H, residente no lugar de XXX, na Rua dos XXX, n.º 3XX, freguesia da Txx, neste concelho de Cantanhede,
na qualidade de herdeiros representantes da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de MAD.

II- OBJECTO DO LITÍGIO
Os Demandantes propuseram contra os Demandados a presente ação declarativa, pedindo, em suma, que prédio descrito no artigo 1º do presente requerimento inicial se encontra dividido em dois prédios autónomos e distintos, há mais vinte anos; e que os demandantes adquiriram, por usucapião, o prédio que identificam como parcela A, por se encontrar autonomizada do prédio mãe, há mais de 20 anos, mais peticionando que se ordene ao Serviço de Finanças e a Conservatória do Registo Predial o registo em conformidade.
Para tanto, alegaram os factos constantes do Requerimento Inicial (fls. 1 a 5, que se dá por reproduzido), juntando documentos.
Os Demandados, regularmente citados, não apresentaram contestação.
Considerando o tipo de ação em causa, não houve lugar à fase de mediação
A audiência de julgamento decorreu com observância do formalismo legal, conforme o atesta a respetiva ata.
Cumpre apreciar e decidir
Valor da ação: € 945,00

III - FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Da discussão da causa, resultaram os seguintes

A - Factos provados:
A) Encontra-se descrito na conservatória do Registo Predial de Cantanhede sob o nº 44XX/199710XX, o prédio rústico, composto de terreno de cultura, sito em XXX, da freguesia da Txx, concelho de Cantanhede com a área total de 4.980m2, a confrontar do Norte com MD, do Sul com JR e outros, do Nascente com Rua dos XXX e herdeiros de MD e do Poente com JS, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 5XXX;
B) Sobre o prédio identificado no número anterior incidem as seguintes inscrições: AP. 1XX de 2017/10/XX – Aquisição de ½ a favor de A, viúva; B, divorciado; e de C, casado em comunhão de adquiridos com D, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária de MD; AP 5XX de 2017/11/XX – Aquisição de ½ a favor de
E, viúva; F, solteiro maior, e de G, casada em comunhão de adquiridos com H, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária de MD;
C) Por escritura de Habilitação, lavrada em XX/XX/2017 no cartório notarial sito em Cantanhede, a cargo do Lic. LMC, a folhas 1X a 1X do Livro de Notas para Escrituras diversas número 2XX-A, foram os aqui Demandantes habilitados herdeiros de MD, falecido em XX de abril de 2017;
D) Por efeito da escritura de Habilitação e Partilha lavrada em XX/10/1995 no 2.º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, a folhas XX a XX do Livro n.º XX-D, por óbito de MAO, falecida em 21/02/1995, no estado de viúva de JO, o prédio descrito em A) foi adjudicado aos seus dois filhos, os acima indicados MD, casado com MJ e a E, casado com MD, na proporção de ½ para cada um deles;
E) E nesse ano de 1995, pelos acima identificados filhos e sucessores da dita MO, o prédio descrito em A) foi dividido em duas parcelas distintas e autónomas, que passaram a constituir dois prédios autónomos, conforme a o levantamento topográfico, com as seguintes descrições, configurações e áreas:
1) Parcela A Parcela A – prédio rústico, composto de terreno de cultura, sito em XXX, freguesia da Txx, concelho de Cantanhede, com a área de 2.362 m2, a confrontar do Norte com MD, do Sul com herdeiros de MAD, do Nascente com Rua dos XXX e do Poente com JS.
2) Parcela B – prédio rústico, composto de terreno de cultura, sito em XXX, freguesia da Txx, concelho de Cantanhede com a área de 2618 m2, a confrontar do Norte com herdeiros de MD, do Sul com JR e outros, do Nascente com herdeiros de MAD e do Poente com JS,

F) Tendo, nessa data (1995) as referidas parcelas de terreno, sido divididas de forma consensual entre os antecessores dos Demandantes e dos Demandados, encontrando-se perfeitamente demarcadas entre si por marcos de cimento cravados na terra, não havendo qualquer confusão ou definição relativa à sua titularidade.
G) Tendo, a partir dessa mesma data a Parcela A passado a ser usufruída em exclusividade pelos antecessores dos Demandantes e a Parcela B pelos antecessores dos Demandados;
H) Os Demandantes, por si e seus antecessores, vem usufruindo de forma ininterrupta do referido prédio identificados como Parcela A, usando-o e fruindo-a, de forma individualizada, autónoma e distinta relativamente ao prédio primitivo (prédio mãe) descrito em A), de que fazia parte;
I) Nela praticando, desde aquela data, até aos dias de hoje, portanto há mais de 20 anos, de modo exclusivo e respeitando rigorosamente as suas divisórias, os mais variados atos de fruição e posse, nomeadamente lavrando-o, cultivando-o e colhendo os respetivos frutos;
J) De forma pacífica e sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, designadamente dos proprietários confinantes e demais moradores na freguesia, incluindo os Demandados, na convicção de estarem a usar de direito de propriedade próprio e de que não lesavam direitos de outrem;

B - Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a causa.

C- Convicção:
A convicção do Tribunal para a factualidade dada como provada foi adquirida através da análise crítica e ponderada do teor dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados e, ainda, das declarações das partes e dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência final.

Assim, os factos assentes de A) , B), C) e D) , resultam do teor dos documentos (certidão da Conservatória do Registo predial ( fls. 12) certidão matricial (fls. 11), escritura de Habilitação( fls. 6 a 10) e escritura de Habilitação e Partilha (fls. 14 a 29).
Para os restantes factos a convicção do tribunal baseou-se nas declarações das partes e no teor dos documentos de fls. 30, 31 e 32 (respetivamente, levantamentos topográficos e documentos de identificação do técnico que procedeu ao levantamento), conjugados com os depoimentos das testemunhas inquiridas que responderam de forma isenta e imparcial, mostrando-se credíveis e com conhecimento direto dos factos por si relatados.
As testemunhas MV, MA e ID, demonstraram ser conhecedoras dos prédios em questão antes e após a sua autonomização, esclarecendo os limites e demarcação de cada uma das parcelas de terreno, bem como aos atos de posse praticados em exclusividade pelos Demandantes.

IV - FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A questão em apreço reconduz-se em saber se os Demandantes podem ver reconhecido o seu direito de propriedade exclusivo sobre a parcela de terreno identificada como Parcela A e identificada em E) 1. dos factos provados, a qual se autonomizou, por via da usucapião, passando a ser um prédio autónomo e distinto do descrito em A) dos factos provados.
O direito de propriedade de imóvel adquire-se por contrato, que é uma forma de aquisição derivada, e por usucapião e acessão, que são formas de aquisição originária – cfr. artigo 1316.º do Código Civil.
Assim, para se reconhecer alguém como proprietário de um bem é necessário que esse interessado prove a aquisição desse direito por uma daquelas formas.
O artigo 7º do Código do Registo Predial vem facilitar aquela prova a quem tenha o bem – imóvel – registado em seu nome, estabelecendo a presunção da respetiva propriedade.
Cumpre esclarecer, porém, que é pacífico, quer na doutrina quer na jurisprudência, que esta presunção não abrange os elementos identificativos do prédio, tais como as confrontações, estremas ou áreas. Por outro lado, a mencionada presunção derivada do registo não é uma presunção absoluta, apenas tem o efeito de inverter o ónus da prova. Como é consabido, o registo não dá nem tira direitos é meramente declarativo, destinando-se a publicitar a situação dos prédios nele descritos.
A presunção do registo não é a única presunção que aqui cumpre referir.
Prescreve o artigo 1268º, nº1 do Código Civil “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.
E, de acordo com o disposto no artigo 1287º do mesmo diploma “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião”.
Assim, um dos efeitos da posse é a criação de direitos. A posse gera a aquisição da propriedade. Faz adquirir o direito, desde que se mantenha durante certo período de tempo (Cfr. Mota Pinto, Reais, pag. 213).
Segundo tem sido orientação da Jurisprudência e Doutrina, o estado de facto criado pela divisão em parcelas e autonomização destas, operada pelos comproprietários de um prédio rústico, pode converter-se em estado de direito pelo funcionamento das regras da usucapião. Tal significa que na compropriedade, a unidade predial pode parcelar-se por usucapião desde que os comproprietários passem a utilizar partes distintas do prédio como se estivesse materialmente dividido em frações, ocupando cada um a sua parcela, perfeitamente delimitada e circunscrita, sem oposição, de modo exclusivo, à vista de toda a gente, sem violência, na convicção de exercer um direito próprio, como se seu verdadeiro dono fosse, sem invasão de parcelas alheias.
Com efeito, como ensina o Professor Oliveira Ascensão, a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião: as vicissitudes registrais não contendem nem abalam os efeitos da usucapião.
Porém, a verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período de tempo. Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má- fé, titulada, ou não titulada) influem apenas no prazo (Cfr. M.H. Mesquita, Reais, 1967, pág. 112)
“A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”- artigo 1251º do Código Civil.
Na posse distinguem-se dois elementos: o “corpus” - que se identifica com os atos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa; e o “animus” - que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticados (Cfr. M.Pinto, Reais, p.181).
A lei exige a existência do “corpus” e do “animus” para que exista posse, o que implica que o possuidor tenha de provar a existência destes dois elementos para poder adquirir por usucapião.
Para facilitar ao possuidor a prova do “animus”, a lei estabelece uma presunção: em caso de dúvida, presume-se a posse daquele que exerce o poder de facto. O exercício do “corpus” faz presumir o “animus”.
Se a posse é titulada e de boa-fé, a usucapião de bens imóveis tem lugar decorridos 10 anos, se é titulada e de má-fé, decorridos 15 anos, se é não titulada e de boa-fé, decorridos 15 anos, se não titulada e de má-fé, decorridos 20 anos (artigos 1294º e 1296º, ambos do Código Civil).
Ora, descendo ao caso dos autos, verificamos que os Demandantes conseguiram fazer prova de todos os elementos da usucapião no que diz respeito à parcela em discussão.
Dos factos provados resulta assente que desde finais de 1995, aquando da partilha por óbito de MAO, os então sucessores MOD e mulher e MDO a e marido procederam à divisão do prédio descrito em A) em duas parcelas (Parcela A e Parcela B) distintas e autónomas e separadas entre si, demarcadas por marcos, devidamente identificadas no levantamento topográfico, passando a Parcela A a ser usufruída em exclusividade pelos antecessores dos Demandantes e a Parcela B pelos antecessores dos Demandados.
Que s Demandantes, por si e seus antecessores na Parcela A (identificada em E) 1. dos factos provados) têm vindo a usufrui-la de forma ininterrupta, cultivando-a, colhendo os respetivos frutos, de modo exclusivo, de forma pacífica e sem oposição de ninguém à vista de toda a gente, incluindo dos Demandados, na convicção de estarem a usar de direito de propriedade próprio.
Provada a materialização há mais de 20 anos e em que cada um passou a possuir, como se sua fosse, mutuamente se privando do uso sobre a totalidade do prédio e limitando-o à metade que lhe ficava demarcada, sem qualquer interferência do outro, constitui prova indiscutível da inequivocidade da posse que cada um passou a exercer apenas em nome próprio.
A conformidade da autonomização (desanexação) em referência não carece de ser analisada, dado que, acolhemos a tese que sustenta que as regras constantes de outros diplomas cedem perante os direitos adquiridos por usucapião. Sustenta-se, para tanto, que a posse é “agnóstica”, não sendo legítimo ou curial distinguir entre posse “justa ou injusta”, consoante exista, ou não, justa causa possessionis, sendo, pois, indiferente o que quer que historicamente estiver para trás dessa posse (cfr. DURVAL FERREIRA -Posse e Usucapião).
Resulta, assim do exposto, terem os Demandantes demonstrado ter adquirido por usucapião o prédio identificado como Parcela A e identificada em E) 1. dos factos provados dos factos provados, por nela terem praticado os atos de posse com as características que conduzem à aquisição originária, encontrando-se preenchidos todos os requisitos exigidos pelo instituto da usucapião.
Resulta ainda inequívoca a desconformidade entre os elementos constantes das descrições prediais e matriciais em referência com a realidade factual, pelo que urge proceder às respetivas atualizações junto dos serviços da Conservatória do Registo Predial e das Finanças, fazendo valer e prevalecer a verdade material e substantiva que a segurança do comércio jurídico exige.

Assim, e em conformidade os pedidos formulados pelos Demandantes, porque provados, têm de proceder.
Custas: Atenta a natureza da presente ação, serão suportadas pelos demandantes (artigo 535.º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

Face a quanto antecede, julgo procedente a presente ação, e, por consequência:
A. DECLARO que o prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº 4XXX/199710XX e aí inscrito a favor dos Demandantes e Demandados, na proporção de ½ para cada um, deu origem, por via da usucapião, a dois prédios distintos e autónomos, com as seguintes descrições:
1) Parcela A Parcela A – prédio rústico, composto de terreno de cultura, sito em XXX, freguesia da Txx, concelho de Cantanhede, com a área de 2.362 m2, a confrontar do Norte com MD, do Sul com herdeiros de MAD, do Nascente com Rua dos XXX e do Poente com JS.
2) Parcela B – prédio rústico, composto de terreno de cultura, sito em XXX, com a área de 2618 m2, freguesia da Txx, concelho de Cantanhede, a confrontar do Norte com herdeiros de MD, do Sul com JR e outros, do Nascente com herdeiros de MAD e do Poente com JS.

B. DECLARO os Demandantes, na qualidade de herdeiros e em representação da herança aberta por óbito de MD, como os únicos donos, legítimos possuidores e proprietários, por via da Usucapião, do prédio acima identificado como PARCELA A, condenando os Demandados a reconhecer tal prédio como autónomo e distinto bem como o direito de propriedade dos Demandantes sobre o mesmo;

C. Ordeno a atualização em conformidade nos competentes registos da Conservatória do Registo Predial bem como do Serviços de Finanças, de modo a que seja conformada a realidade registral e matricial com a realidade factual existente,

Custas: pelos Demandantes, os quais deverão proceder ao pagamento da quantia de € 35,00 (trinta e cinco euros), no prazo de 03 (três) dias úteis subsequentes à notificação da presente Decisão, sob pena da aplicação de uma sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso.

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 8º-C, do Código Registo Predial os Demandantes têm dois meses, (sob pena de pagamento de multa de valor igual à prevista a titulo de emolumento - nº 1, do artigo 8º-D), contados do trânsito em julgado desta sentença, para registar o direito de propriedade ora atribuído.

Esta sentença foi proferida e notificada à ilustre mandatária dos Demandantes, única que se encontrava presente, tendo-lhe sido entregue cópia.
Registe e notifique as partes ausentes.

Cantanhede, 17 de abril de 2018
Processado por meios informáticos e
revisto pela signatária. (Artigo 18.º da LJP)
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A Juíza de Paz Coordenadora,
(Isabel Belém)