Sentença de Julgado de Paz
Processo: 17/2018-JPMMV
Relator: ISABEL BELÉM
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
POSSE- AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
Data da sentença: 04/18/2018
Julgado de Paz de : MONTEMOR-O-VELHO
Decisão Texto Integral: I - IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
DEMANDANTES:
A, casada com B, sob o regime de comunhão de comunhão de adquiridos, ambos residentes na Rua da XXX, nº1, XXX, 3140-0XX Carapinheira.
DEMANDADOS:
C casado com D, sob o regime de comunhão de adquiridos, ambos residentes na Rua da XXX, nº 2X, XXX, 3140-0XX Carapinheira.

II- OBJECTO DO LITÍGIO
Os Demandantes propuseram contra os Demandados a presente ação declarativa, pedindo, em suma, a declaração de que o prédio rústico que melhor identificam lhes pertence exclusivamente, por se ter autonomizado, por via da usucapião, do prédio descrito no artigo 1º do requerimento inicial, passando a ser um prédio autónomo e distinto, ordenando-se o registo da aludida parcela a seu favor. Mais pediram a condenação dos Demandados no reconhecimento e aceitação da constituição e existência do referido prédio como autónomo e distinto, assim como no reconhecimento do respetivo direito de propriedade.
Para tanto, alegaram os factos constantes do Requerimento Inicial (fls. 1 a 6- que se dá por reproduzido), e juntaram os documentos de fls. 7 a 42 (cujo teor se dá igualmente por reproduzido).
Os Demandados, regularmente citados, não apresentaram contestação.
Considerando o tipo de ação em causa, não houve lugar à fase de mediação.
Na sessão da audiência de julgamento, os Demandantes requereram a junção de documentos e ainda o aperfeiçoamento do requerimento inicial e cumprido o princípio do contraditório, sem que tenha havido oposição por parte dos Demandados, foi o mesmo deferido.
Valor da ação: 215,95€
Cumpre apreciar e decidir

III - FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Da discussão da causa, resultaram os seguintes
A - Factos provados:
A) Encontra-se descrito na conservatória do Registo Predial de Montemor –o-Velho, sob o nº 5XX/1989XXXX, o prédio rústico, sito em XXXX, freguesia da Carapinheira, concelho de Montemor-o-Velho, composto de terra de semeadura, com a área de 6480 m2, a confrontar do norte com serventia de inquilinos; sul com MS; nascente com herdeiros de JL e outros e do poente com estrada pública, inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo 2XXX;
B) Sobre o prédio identificado no número anterior incidem as seguinte inscrições: AP. X de 1990/03/XX– Aquisição de ½ a favor de AJ, casado com MV, no regime da comunhão geral de bens, por compra a AV casado com MF; AP 3XXX de 2016/03/XX – Aquisição de ½ a favor de JP, casado, por sucessão hereditária e partilha de MV, casada com JP, sob o regime da comunhão geral;
C) O prédio identificado em A), não obstante constar da respetiva descrição predial bem como da certidão matricial a área global de 6480 m2, na realidade tem a área global de 6255 m2, como resulta do levantamento topográfico, em virtude de cedência de terreno para o domínio público por parte dos Demandados;
D) Tal prédio descrito em A) confronta, atualmente, do norte com Escola e outros, do Sul com Estrada e AR, do Nascente com RM e do Poente com serventia de inquilinos;
E) O prédio descrito e A) foi adquirido pelos pais da Demandante mulher, AJ e MV, e pelos pais do Demandado marido, JP e MV, em comum e partes iguais, por escritura de compra e venda outorgada a 20 de janeiro de 1956, no Cartório Notarial de Montemor-o-Velho, lavrada de fls. XX a 3Xv do livro 5ZZ-A de Notas daquele Cartório;
F) Na sequência do óbito de AJ e MF, falecidos, respetivamente em 22.02.2005 e 23.10.1991, sucedeu-lhes a única filha, aqui Demandante mulher;
G) Por sua vez, por óbito de JP e MV, pais do Demandado marido, foi a este adjudicada, a verba nº 8, referente à metade do prédio descrito em A), no processo de inventário nº 5X/1X.1TBCNT que correu os seus termos no Tribunal Judicial de Montemor-o-Velho;
H) Desde a data da realização da escritura de compra e venda referida em E), no ano de 1956, que o prédio descrito em A) se encontra dividido em duas parcelas distintas e autónomas, devidamente identificadas e atualizadas, com as seguintes descrições, configurações e áreas:

a) PARCELA A (assim identificada no levantamento topográfico): prédio composto de terra de semeadura, localizado em XXX, freguesia da Carapinheira, concelho de Montemor-o-Velho, com a área de 3.035 m2, que confronta a Norte com Escola e outros, a Sul com Estrada, a Poente com serventia de inquilinos e a Nascente com JP (Parcela B);
b) PARCELA B (assim identificada no levantamento topográfico): prédio composto de terra de semeadura, localizado em XXX, freguesia da Carapinheira, concelho de Montemor-o-Velho, com a área de 3.220 m2, que confronta a Norte com Escola e outros, a Sul com Estrada e AR, a Poente HB (Parcela A) e a Nascente com RM;
I) Encontrando-se cada uma das supra identificadas parcelas individualizadas e delimitadas com marcos entre si, desde aquela data, e com acessos independentes de e para a via pública.
J) E, desde o então, os Demandantes e Demandados, por si e seus antecessores, vêm atuando na convicção de serem os únicos donos e legítimos possuidores de cada uma das suas parcelas de terreno;
K) Passando os Demandantes A e B, por si, desde o ano de 1970, a usufruir em exclusivo do prédio identificado como Parcela A , descrito em H) dos factos provados, e os Demandados a usufruir em exclusivo do prédio identificado como Parcela B, descrito em H) dos factos provados;
L) Os Demandantes, por si e seus antecessores, vêm usufruindo de forma ininterrupta do prédio designado por Parcela A, usando-o e fruindo-o, de forma individualizada, autónoma e distinta relativamente ao prédio primitivo (prédio mãe) descrito em A), de que fazia parte;
M) Semeando-o, cultivando-o, colhendo os respetivos frutos, limpando-o, fazendo melhoramentos, de modo exclusivo, praticando os atos normais de defesa e conservação, respeitando rigorosamente as suas divisórias, com total exclusividade e independência, há mais de 20, 40, 50 anos;
N) De forma pacífica e sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, designadamente dos proprietários confinantes e demais moradores na freguesia, incluindo os demandados, na convicção de estarem a usar de direito de propriedade próprio e de que não lesavam direitos de outrem.

B- Factos não provados::
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a causa.

C- Convicção:
A convicção do Tribunal para a factualidade dada como provada foi adquirida através da análise crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência de vida, do teor dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados e, ainda, dos depoimentos prestados pelas partes e pelas testemunhas na audiência final.

Assim, os factos assentes de A), B), E), F) e G) resultam do teor dos documentos (Certidão da Conservatória do Registo predial de fls. 8 e 9 e 10; certidão matricial de fls. 7, cópia da escritura de compra de fls. 15 a 25; cópia da certidão de inventário de fls. 27 a 40, Habilitação de Herdeiros de fls. 57 a 59 e certidão de óbito de fls. 61 ).
Para os restantes factos a convicção do tribunal baseou-se no teor do documento de fls. 53 a 56 (levantamento topográfico) , nas declarações da partes conjugadas com o depoimentos das testemunhas inquiridas que responderam de forma isenta e imparcial, mostrando-se credíveis e com conhecimento direto dos factos por si relatados.
As testemunhas FN e AR, demonstraram ser conhecedoras dos prédios em questão, declarando que sempre conheceram as duas parcelas em causa como atualmente se apresentam, pelo menos há mais de 30 e 40 anos, as quais se encontram perfeitamente demarcadas umas das outros, esclarecendo os limites e demarcação de cada uma delas, bem como aos atos de posse praticados em exclusividade pelos Demandantes na Parcela A, bem como pelos Demandados sobre o a Parcela B identificadas em H) dos factos dados como provados.

IV - FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A questão em apreço reconduz-se em saber se os Demandantes podem ver reconhecido o seu direito de propriedade exclusivo sobre uma parcela de terreno que designam por Parcela A, a qual se autonomizou, por via da usucapião, passando a ser um prédio autónomo e distinto do descrito em A) dos factos provados.
O direito de propriedade de imóvel adquire-se por contrato, que é uma forma de aquisição derivada, e por usucapião e acessão, que são formas de aquisição originária – cfr. artigo 1316.º do Código Civil.
Assim, para se reconhecer alguém como proprietário de um bem é necessário que esse interessado prove a aquisição desse direito por uma daquelas formas.
O artigo 7º do Código do Registo Predial vem facilitar aquela prova a quem tenha o bem – imóvel – registado em seu nome, estabelecendo a presunção da respetiva propriedade.
Cumpre esclarecer, porém, que é pacífico, quer na doutrina quer na jurisprudência, que esta presunção não abrange os elementos identificativos do prédio, tais como as confrontações, estremas ou áreas. Por outro lado, a mencionada presunção derivada do registo não é uma presunção absoluta, apenas tem o efeito de inverter o ónus da prova. Como é consabido, o registo não dá nem tira direitos é meramente declarativo, destinando-se a publicitar a situação dos prédios nele descritos.
A presunção do registo não é a única presunção que aqui cumpre referir.
Prescreve o artigo 1268º, nº1 do Código Civil “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.
E, de acordo com o disposto no artigo 1287º do mesmo diploma “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião”.
Assim, um dos efeitos da posse é a criação de direitos. A posse gera a aquisição da propriedade. Faz adquirir o direito, desde que se mantenha durante certo período de tempo (Cfr. Mota Pinto, Reais, pag. 213).
Segundo tem sido orientação da Jurisprudência e Doutrina, o estado de facto criado pela divisão em parcelas e autonomização destas, operada pelos comproprietários de um prédio rústico, pode converter-se em estado de direito pelo funcionamento das regras da usucapião. Tal significa que na compropriedade, a unidade predial pode parcelar-se por usucapião desde que os comproprietários passem a utilizar partes distintas do prédio como se estivesse materialmente dividido em frações, ocupando cada um a sua parcela, perfeitamente delimitada e circunscrita, sem oposição, de modo exclusivo, à vista de toda a gente, sem violência, na convicção de exercer um direito próprio, como se seu verdadeiro dono fosse, sem invasão de parcelas alheias.
Com efeito, como ensina o Professor Oliveira Ascensão, a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião: as vicissitudes registrais não contendem nem abalam os efeitos da usucapião.
Porém, a verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período de tempo. Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má- fé, titulada, ou não titulada ) influem apenas no prazo (Cfr. M.H. Mesquita, Reais, 1967, pág. 112)
“A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”- artigo 1251º do Código Civil.
Na posse distinguem-se dois elementos: o “corpus” - que se identifica com os atos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa; e o “animus” - que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticados (Cfr. M.Pinto, Reais, p.181).
A lei exige a existência do “corpus” e do “animus” para que exista posse, o que implica que o possuidor tenha de provar a existência destes dois elementos para poder adquirir por usucapião.
Para facilitar ao possuidor a prova do “animus”, a lei estabelece uma presunção: em caso de dúvida, presume-se a posse daquele que exerce o poder de facto. O exercício do “corpus” faz presumir o “animus”.
Se a posse é titulada e de boa fé, a usucapião de bens imóveis tem lugar decorridos 10 anos, se é titulada e de má fé, decorridos 15 anos, se é não titulada e de boa fé, decorridos 15 anos, se não titulada e de má fé, decorridos 20 anos (artigos 1294º e 1296º, ambos do Código Civil).
Ora, descendo ao caso dos autos, verificamos que os Demandantes conseguiram fazer prova de todos os elementos da usucapião no que diz respeito às parcelas em discussão.
Dos factos provados resulta assente que desde pelo menos 1956, o prédio mãe se encontra autonomizado em duas parcelas distintas e autónomas e separadas entre si, demarcadas por marcos e cada uma delas com acesso independente de e para a via pública, devidamente identificadas no levantamento topográfico, e adjudicadas a cada um dos antecessores dos Demandantes e Demandados, ficando uma daquelas parcelas, a designada por parcela A a pertencer atualmente aos Demandantes, e a parcela B a pertencer atualmente aos Demandados, passando cada um a usufruir em exclusivo da parcela de terreno correspetiva.
Provada a materialização há mais de 20 anos e em que cada um passou a possuir, como se sua fosse, mutuamente se privando do uso sobre a totalidade do prédio e limitando-o à parte que lhe ficava demarcada, sem qualquer interferência dos outros, constitui prova indiscutível da inequivocidade da posse que cada um passou a exercer apenas em nome próprio.
Os Demandantes na Parcela A que lhes ficou a pertencer, têm vindo a usufrui-la de forma ininterrupta, semeando-a, cultivando-a, colhendo os respetivos frutos, limpando-a e fazendo melhoramentos, de modo exclusivo, de forma pacífica e sem oposição de ninguém à vista de toda a gente, incluindo dos Demandados, na convicção de estarem a usar de direito de propriedade próprio.
A conformidade da autonomização (desanexação) em referência não carece de ser analisada, dado que, acolhemos a tese que sustenta que as regras constantes de outros diplomas cedem perante os direitos adquiridos por usucapião. Sustenta-se, para tanto, que a posse é “agnóstica”, não sendo legítimo ou curial distinguir entre posse “justa ou injusta”, consoante exista, ou não, justa causa possessionis, sendo, pois, indiferente o que quer que historicamente estiver para trás dessa posse (cfr. DURVAL FERREIRA -Posse e Usucapião).
Resulta, assim do exposto, terem os Demandantes demonstrado ter adquirido por usucapião o prédio identificado como Parcela A, descrito em H) a), dos factos provados, por nele terem praticado os atos de posse com as características que conduzem à aquisição originária, encontrando-se preenchidos todos os requisitos exigidos pelo instituto da usucapião.
Resulta ainda inequívoca a desconformidade entre os elementos constantes das descrições prediais e matriciais em referência com a realidade factual, pelo que urge proceder às respetivas atualizações junto dos serviços da Conservatória do Registo Predial e das Finanças, fazendo valer e prevalecer a verdade material e substantiva que a segurança do comércio jurídico exige.

Assim, e em conformidade os pedidos formulados pelos Demandantes, porque provados, têm de proceder.
Custas: Atenta a natureza da presente ação, serão suportadas pelos Demandantes (artigo 535.º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

V – DISPOSITIVO
Face a quanto antecede, julgo procedente a presente ação, e, por consequência:
1)DECLARO que o prédio identificado em A) dos factos provados e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 5XX/19890XXX tem a área global de 6.255 m2;
2)DECLARO que o prédio rústico designado por PARCELA A pertence exclusivamente aos Demandantes A e B, constituindo um prédio rústico, composto de terra de semeadura, sito em XXX, freguesia de Carapinheira, concelho de Montemor-o-Velho, com a área de 3.035 m2, que confronta a norte com Escola e outros, a sul com Estrada, a poente com serventia de inquilinos e a nascente com C, por se ter autonomizado, por via da usucapião, do prédio descrito em A) dos factos provados, passando a ser um prédio autónomo e distinto, cessando assim a compropriedade que pudessem deter na parte sobrante do prédio originário;
3)CONDENO os Demandados no reconhecimento e aceitação da constituição e existência do referido prédio descrito no ponto anterior, como autónomo e distinto, assim como no reconhecimento do direito de propriedade dos Demandantes sobre o mesmo;
4)ORDENO a atualização em conformidade nos competentes registos da Conservatória do Registo Predial, bem como dos Serviços de Finanças, de modo a que seja conformada a realidade registral e matricial com a realidade factual existente, nomeadamente com a atribuição de artigo matricial e o registo do referido prédio a favor dos Demandantes.
Custas: pelos Demandantes, os quais deverão proceder ao pagamento da quantia de € 35,00 (trinta e cinco euros), no prazo de 03 (três) dias úteis subsequentes à notificação da presente Decisão, sob pena da aplicação de uma sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso.
Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 8º-C, do Código Registo Predial os Demandantes têm dois meses, (sob pena de pagamento de multa de valor igual à prevista a titulo de emolumento - nº 1, do artigo 8º-D), contados do trânsito em julgado desta sentença, para registar o direito de propriedade ora atribuído.
Esta sentença foi proferida e notificada às partes presentes e explicado o seu conteúdo.

Montemor-o-Velho, 18 de abril de 2018
Processado por meios informáticos e
revisto pela signatária..
A Juíza de Paz Coordenadora
(Artigo 18.º da LJP)
(Isabel Belém)