Sentença de Julgado de Paz
Processo: 62/2017-JP
Relator: ISABEL BELÉM
Descritores: USUCAPIÃO
Data da sentença: 09/05/2017
Julgado de Paz de : CANTANHEDE
Decisão Texto Integral:
SENTENÇA
Processo nº 62/2017-JP

I - IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
Demandantes: A e marido B, residentes na Rua X.
Demandados: C e mulher D, residentes na Rua Y.

II- OBJECTO DO LITÍGIO
Os Demandantes propuseram contra os Demandados a presente ação declarativa, pedindo, em suma, que prédio descrito no artigo 1º do presente requerimento inicial se encontra dividido em duas parcelas, há mais vinte anos; que a demandante mulher adquiriu, por usucapião, a parcela 2, por se encontrar autonomizada do prédio mãe, há mais de 20 anos, mais peticionando que se ordene ao Serviço de Finanças e a Conservatória do Registo Predial o registo em conformidade.
Para tanto, alegaram os factos constantes do Requerimento Inicial (fls. 1 a 6, que se dá por reproduzido), juntando documentos.
Os Demandados, regularmente citados, não apresentaram contestação.
Considerando o tipo de ação em causa, não houve lugar à fase de mediação
A audiência de julgamento decorreu com observância do formalismo legal, conforme o atesta a respetiva ata.
Cumpre apreciar e decidir

III - FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Da discussão da causa, resultaram os seguintes
A - Factos provados:
A) Encontra-se descrito na conservatória do Registo Predial de Cantanhede sob o nº XXX/XXXXXXXX, o prédio rústico, composto de vinha com árvores de fruto e tanchas, sito em XXX-sul, freguesia de XXX, concelho de Cantanhede e comarca de Coimbra, com a área total de 4.980m2, que confronta a norte com XXX, a sul com caminho, a nascente com XXX, e a poente com XXX, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo nº XXXXX;
B) Sobre o prédio identificado no número anterior incidem as seguintes inscrições: AP. XX de 2001/XX/XX – Aquisição de ½ a favor de C, casado com D, casados no regime da comunhão de adquiridos, por partilha da herança de XXX, casado com XXX; AP XX de 2001/XX/XX – Aquisição ½ a favor de A, casada com B, por partilha da herança de XXX, casado com XXX;
C) Por escritura de partilha outorgada no Cartório Notarial de Cantanhede, em XX.XX.2001, por óbito de XXX, lavrada a fls 48 e ss do L-XX7B, o prédio descrito em A) foi adjudicado à aqui demandante mulher e ao demandado marido, na proporção de ½ para cada um deles, título do qual resultou a inscrição referida em B);
D) O prédio descrito em A) tem actualmente as seguintes confrontações: do norte com XXX, do sul com a estrada pública, do nascente com herdeiros de XXX e do poente com a estrada pública e XXX;
E) O prédio descrito em A) tem atualmente a área de 6.285m2, conforme medição efectuada ao referido prédio, por técnico credenciado para o efeito, como resulta do levantamento topográfico, não tendo ocorrido alteração na configuração do prédio;
F) Em data não concretamente apurada, mas muito antes da escritura referida em C), durante o ano de 1988, por efeito de doação verbal dos pais da demandante mulher e do demandado marido, o prédio descrito em A) foi dividido em duas parcelas distintas e autónomas, que passaram a constituir dois prédios autónomos, conforme o levantamento topográfico, com as seguintes descrições, configurações e áreas:

1) Parcela 1Prédio rústico, composto de terra de cultura, sito em rua X, nº X, concelho de Cantanhede, comarca de Coimbra, com a área total de 3.492m2, que confronta a norte com XXX, a sul com estrada pública, a nascente com herdeiros de XXX e a poente com A, actualmente inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo nº XXXXX e descrito na Conservatória do registo Predial de Cantanhede sob parte do nº XXXX/XXXXXXXX;

2) Parcela 2 - Prédio rústico, composto de terra de cultura, sito na rua X; n°X, sito em concelho de Cantanhede, comarca de Coimbra, com a área total de 2.793m2, que confronta a norte com XXX, a sul com estrada pública, a nascente com C e a poente com estrada pública e XXX, inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo nº XXXXX e descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial de Cantanhede sob parte do nº XXXX/XXXXXXXX;
G) Tendo, nessa data (1988) as referidas parcelas de terreno, sido divididas de forma consensual entre demandantes e demandados, encontrando-se perfeitamente demarcadas entre si e entre os prédios confinantes;
H) E desde que, ocorreu a aludida divisão, que a Demandante mulher, por si e por seus ante possuidores, passou a tomar conta e a cuidar da parcela 2, identificado em F) 2) e por sua vez, que o Demandado marido começou a tomar conta e a cuidar da parcela 1, identificado em F) 1);
I) Os demandantes, por si e antecessores, vem usufruindo de forma ininterrupta da referida parcela 2, usando-a e fruindo-a, de forma individualizada, autónoma e distinta relativamente ao prédio primitivo (prédio mãe) descrito em A), de que fazia parte;
J) Nela praticando desde aquela data, até aos dias de hoje, portanto há mais de 28 anos, de modo exclusivo e respeitando rigorosamente as suas divisórias, os mais variados actos de fruição e posse: murando-a por completo, semeando-a, cultivando-a, plantando árvores de fruto, limpando e retirando-lhe as ervas daninhas, colhendo os frutos e os produtos hortícolas, pagando os impostos e contribuições;
K) Tendo a demandante ainda conjuntamente com o seu marido construído a sua casa de habitação na referida parcela 2, que lhe ficou a pertencer e que actualmente é composta de casa de habitação de rés-do-chão, 1º andar, sótão, anexos e logradouros e já se encontra inscrita na matriz predial urbana sob o artigo urbano nº XXXX, da respectiva freguesia de X;
L) Atos esses, todos eles, praticados de forma pacífica e sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, designadamente dos proprietários confinantes e demais moradores na freguesia, incluindo os demandados, na convicção de estarem a usar de direito de propriedade próprio e de que não lesavam direitos de outrem;

B - Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a causa.

C- Convicção:
A convicção do Tribunal para a factualidade dada como provada foi adquirida através da análise crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência de vida, do teor dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados e, ainda, dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência final.
Assim, os factos assentes de A) , B) e C) e K) , resultam do teor dos documentos (certidão da Conservatória do Registo predial, certidões matriciais e escritura pública de partilha, respectivamente de fls. 92, 10, 47 e 48, e 16 a 29 e 40 a 46).
Para os restantes factos a convicção do tribunal baseou-se no teor dos documentos de fls. 13, 113 e 114, e 121 (respectivamente, levantamento topográfico, declaração assinada pelo técnico e declaração assinada por demandantes e demandados de que não ocorreu alteração na configuração do prédio aposta no levantamento topográfico), conjugados com os depoimentos das testemunhas inquiridas que responderam de forma isenta e imparcial, mostrando-se credíveis e com conhecimento direto dos factos por si relatados.
As testemunhas demonstraram ser conhecedoras dos prédios em questão antes e após a sua autonomização, esclarecendo os limites e demarcação de cada uma das parcelas de terreno, bem como aos atos de posse praticados em exclusividade pelos Demandantes.

IV - FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A questão em apreço reconduz-se em saber se a demandante mulher pode ver reconhecido o seu direito de propriedade exclusivo sobre uma parcela de terreno que designam por PARCELA 2 , a qual se autonomizou, por via da usucapião, passando a ser um prédio autónomo e distinto do descrito em A) dos factos provados.
O direito de propriedade de imóvel adquire-se por contrato, que é uma forma de aquisição derivada, e por usucapião e acessão, que são formas de aquisição originária – cfr. artigo 1316.º do Código Civil.
Assim, para se reconhecer alguém como proprietário de um bem é necessário que esse interessado prove a aquisição desse direito por uma daquelas formas.
O artigo 7º do Código do Registo Predial vem facilitar aquela prova a quem tenha o bem – imóvel – registado em seu nome, estabelecendo a presunção da respetiva propriedade.
Cumpre esclarecer, porém, que é pacífico, quer na doutrina quer na jurisprudência, que esta presunção não abrange os elementos identificativos do prédio, tais como as confrontações, estremas ou áreas. Por outro lado, a mencionada presunção derivada do registo não é uma presunção absoluta, apenas tem o efeito de inverter o ónus da prova. Como é consabido, o registo não dá nem tira direitos é meramente declarativo, destinando-se a publicitar a situação dos prédios nele descritos.
A presunção do registo não é a única presunção que aqui cumpre referir.
Prescreve o artigo 1268º, nº1 do Código Civil “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.
E, de acordo com o disposto no artigo 1287º do mesmo diploma “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião”.
Assim, um dos efeitos da posse é a criação de direitos. A posse gera a aquisição da propriedade. Faz adquirir o direito, desde que se mantenha durante certo período de tempo (Cfr. Mota Pinto, Reais, pag. 213).
Segundo tem sido orientação da Jurisprudência e Doutrina, o estado de facto criado pela divisão em parcelas e autonomização destas, operada pelos comproprietários de um prédio rústico, pode converter-se em estado de direito pelo funcionamento das regras da usucapião. Tal significa que na compropriedade, a unidade predial pode parcelar-se por usucapião desde que os comproprietários passem a utilizar partes distintas do prédio como se estivesse materialmente dividido em frações, ocupando cada um a sua parcela, perfeitamente delimitada e circunscrita, sem oposição, de modo exclusivo, à vista de toda a gente, sem violência, na convicção de exercer um direito próprio, como se seu verdadeiro dono fosse, sem invasão de parcelas alheias.
Com efeito, como ensina o Professor Oliveira Ascensão, a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião: as vicissitudes registrais não contendem nem abalam os efeitos da usucapião.
Porém, a verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período de tempo. Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má- fé, titulada, ou não titulada ) influem apenas no prazo (Cfr. M.H. Mesquita, Reais, 1967, pág. 112)
“A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”- artigo 1251º do Código Civil.
Na posse distinguem-se dois elementos: o “corpus” - que se identifica com os atos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa; e o “animus” - que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticados (Cfr. M.Pinto, Reais, p.181).
A lei exige a existência do “corpus” e do “animus” para que exista posse, o que implica que o possuidor tenha de provar a existência destes dois elementos para poder adquirir por usucapião.
Para facilitar ao possuidor a prova do “animus”, a lei estabelece uma presunção: em caso de dúvida, presume-se a posse daquele que exerce o poder de facto. O exercício do “corpus” faz presumir o “animus”.
Se a posse é titulada e de boa fé, a usucapião de bens imóveis tem lugar decorridos 10 anos, se é titulada e de má fé, decorridos 15 anos, se é não titulada e de boa fé, decorridos 15 anos, se não titulada e de má fé, decorridos 20 anos (artigos 1294º e 1296º, ambos do Código Civil).
Ora, descendo ao caso dos autos, verificamos que os demandantes conseguiram fazer prova de todos os elementos da usucapião no que diz respeito à parcela em discussão.
Dos factos provados resulta assente que desde pelo menos 1988, por doação verbal dos pais da demandante mulher e demandado marido, o prédio mãe, descrito em A), se encontra autonomizado em duas parcelas distintas e autónomas e separadas e demarcadas entre si e também dos prédios confinantes, e cada uma delas com acesso direto de e para a via pública, e adjudicadas a cada um dos respectivos filhos, aqui demandante mulher e demandado marido, devidamente identificadas no levantamento topográfico, ficando uma daquelas parcelas, a designada por Parcela 1, com área de 3.492 m2, a confrontar a norte com XXX, a sul com estrada pública, a nascente com herdeiros de XXX e a poente com A, a pertencer ao demandado marido e a outra, a designada por Parcela 2, com área de 2.793m2, que confronta a norte com XXX, a sul com estrada pública, a nascente com C e a poente com estrada pública e XXX, a pertencer à demandante mulher.
Provada a materialização há mais de 20 anos e em que cada um passou a possuir, como se sua fosse, mutuamente se privando do uso sobre a totalidade do prédio e limitando-o à metade que lhe ficava demarcada, sem qualquer interferência do outro, constitui prova indiscutível da inequivocidade da posse que cada um passou a exercer apenas em nome próprio.
A demandante mulher, na parcela que lhe ficou a pertencer (identificado como parcela 2) tem vindo a usufrui-la de forma ininterrupta, semeando-a, cultivando-a, colhendo os respetivos frutos, limpando-a e fazendo melhoramentos e nela edificado uma casa de habitação, de modo exclusivo, de forma pacífica e sem oposição de ninguém à vista de toda a gente, incluindo dos demandados, na convicção de estar a usar de direito de propriedade próprio.
A conformidade da autonomização (desanexação) em referência não carece de ser analisada, dado que, acolhemos a tese que sustenta que as regras constantes de outros diplomas cedem perante os direitos adquiridos por usucapião. Sustenta-se, para tanto, que a posse é “agnóstica”, não sendo legítimo ou curial distinguir entre posse “justa ou injusta”, consoante exista, ou não, justa causa possessionis, sendo, pois, indiferente o que quer que historicamente estiver para trás dessa posse (cfr. DURVAL FERREIRA -Posse e Usucapião).
Resulta, assim do exposto, ter a demandante mulher demonstrado ter adquirido, por usucapião, o prédio identificado como parcela 2, descrito em F) 2), dos factos provados, por nela ter praticado os atos de posse com as características que conduzem à aquisição originária, encontrando-se preenchidos todos os requisitos exigidos pelo instituto da usucapião.
Resulta ainda inequívoca a desconformidade entre os elementos constantes das descrições prediais e matriciais em referência com a realidade factual, pelo que urge proceder às respetivas atualizações junto dos serviços da Conservatória do Registo Predial e das Finanças, fazendo valer e prevalecer a verdade material e substantiva que a segurança do comércio jurídico exige.

Assim, e em conformidade os pedidos formulados pelos Demandantes, porque provados, têm de proceder.
Custas: Atenta a natureza da presente ação, serão suportadas pelos Demandantes (artigo 535.º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

V – DISPOSITIVO
Face a quanto antecede, julgo procedente a presente ação, e, por consequência:
1.Declaro que o prédio rústico, composto de vinha com árvores de fruto e tanchas, sito em XXX, freguesia de XXX, concelho de Cantanhede e comarca de Coimbra, com a área total de 4.980m2, que confronta a norte com XXX e outros, a sul com caminho, a nascente com XXX, e a poente com XXX, descrito na Conservatória do Registo predial sob o nº XXXX/XXXXXXXX e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo nº XXXXX, encontra-se dividido em substância há mais de 20 anos, dando origem a duas parcelas de terreno autónomas e distintas;
2.Declaro que a demandante mulher A, casada com B, no regime da comunhão de adquiridos, adquiriu por usucapião a Parcela 2, com a seguinte descrição e configuração: Prédio rústico, composto de terra de cultura, sito em rua X, nº X, X-sul, freguesia de X, concelho de Cantanhede, comarca de Coimbra, com a área total de 2 793m2, que confronta a norte com XXX, a sul com estrada pública, a nascente com C e a poente com estrada pública e XXX, por se ter autonomizado do prédio mãe, supra descrito em 1., do qual se destacou, passando a ser um prédio autónomo e distinto do prédio mãe, cessando a compropriedade que pudesse deter na parte sobrante do dito prédio originário;
3.Ordeno a atualização em conformidade nos competentes registos da Conservatória do Registo Predial bem como do Serviços de Finanças, de modo a que seja conformada a realidade registral e matricial com a realidade factual existente, nomeadamente com a atribuição de artigo matricial e o registo do referido prédio a favor da aqui Demandante mulher.

Custas: pelos Demandantes, os quais deverão proceder ao pagamento da quantia de € 35,00 (trinta e cinco euros), no prazo de 03 (três) dias úteis subsequentes à notificação da presente Decisão, sob pena da aplicação de uma sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso.

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 8º-C, do Código Registo Predial os Demandantes têm dois meses, (sob pena de pagamento de multa de valor igual à prevista a titulo de emolumento - nº 1, do artigo 8º-D), contados do trânsito em julgado desta sentença, para registar o direito de propriedade ora atribuído.
Esta sentença foi proferida nos termos do artigo 60.º, n.º 1, da LJP, não tendo, porém, sido pessoalmente notificada às partes, uma vez que as mesmas não se encontravam presentes, pelo que se deverá proceder à notificação postal da sentença às partes e seus ilustres mandatários.
Registe e notifique.

Cantanhede, 5 de Setembro de 2017
Processado por meios informáticos e
revisto pela signatária. Verso em branco
A Juíza de Paz Coordenadora
(Artigo 18.º da LJP)
(Isabel Belém)