Sentença de Julgado de Paz
Processo: 4/2018-JPAJT
Relator: ISABEL ALVES DA SILVA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO; ÓNUS DA PROVA
Data da sentença: 04/17/2018
Julgado de Paz de : ALJUSTREL
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
O demandante A intentou contra a demandada B acção declarativa de condenação, pedindo a restituição da quantia de 1.400€ que lhe havia emprestado.

Para tanto, alega, em suma, que emprestou diversas quantias à demandada, do seguinte modo: em 21-11-2017, 500€ para a compra de um comando necessário para a aquisição de peixe em lota; em 27-11-2017, 400€ e, em 16-12-2017, 500€, ambas as quantias para aquisição de um veículo comercial para efectuar a venda e transporte de peixe. Alega ainda que ficou acordado que a demandada pagaria conforme as suas possibilidades e que na altura dos factos que originaram o litígio mantinham uma relação amorosa, que durou um mês. Juntou dois documentos (fls. 4 e 19), que aqui se dão por reproduzidos.

A demandada foi regularmente citada e apresentou contestação. Em resumo, admitiu que, à data, mantinha uma relação amorosa com o demandante e impugnou os restantes factos por aquele alegados, argumentando que a ajuda monetária foi dada livremente enquanto casal, pois os dois residiam na sua casa, fazendo vida em comum.

Realizaram-se duas sessões da audiência de julgamento, conforme actas de fls. 44-45 e 59-60, e foi designado o dia de hoje para a sua continuação, com leitura da sentença.

II. Valor da acção
Nos termos do disposto nos artigos 297.º, n.º1, 299.º, n.º 1 e 306.º, n.º 2, todos do CPC, aplicável por remissão do artigo 63.º da LJP, fixo à presente acção o valor de 1.400€ (mil e quatrocentos euros).

III. Fundamentação da matéria de facto
Face à prova produzida e com relevância para a decisão, dão-se como provados e não provados os seguintes factos:

Factos provados
1 – No fim do ano de 2017, o demandante e a demandada mantiveram uma relação amorosa, que durou cerca de um mês e terminou em 08-01-2018, tendo o demandante vivido em comum com a demandada e contribuído para as despesas domésticas.
2 - A demandada adquiriu no Stand de automóveis C um veículo automóvel de marca SEAT em troca de um veículo de marca Citroën e da soma de 1.250€, esta a pagar em prestações (doc. fls. 51).

3 – Do valor referido em 2., estão em dívida 950€ (doc. fls. 51).

4 – A demandada adquiriu, na Doca de X, dois comandos remotos de interrupção de leilão, em 30-01-2015 e 23-11-2017 (doc. fls. 52).

5 - O demandante e a sua irmã D contactaram a demandada no seu local de trabalho a fim de solicitar a devolução do dinheiro, tendo a demandada objectado que não eram conversas para terem no seu local de trabalho.

Factos não provados:
¾ Que o demandante tenha entregado a quantia de 1.400€ à demandada, repartidos em 500€ para a demandada utilizar na aquisição de um comando para a compra de peixe na lota, e 400€ e 500€ para a demandada pagar, respectivamente, a 1.ª prestação e a prestação final da aquisição de um veículo de marca SEAT.
¾ Que o demandante e a demandada tivessem acordado que esta restituiria aqueles montantes consoante as suas possibilidades.


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Motivação da matéria de facto
Os factos provados resultaram quer do acordo das partes (factos 1 e 5) quer do teor das informações solicitadas (factos 2 a 4), tendo o Stand de automóveis de C, com o qual a demandada fez o negócio da compra e venda do veículo SEAT, informado os termos daquele negócio conforme consta de fls. 51, e a E - Doca ------ -----------, SA – Delegação ----- – -----, entidade que procede à comercialização dos comandos para intervenção dos comerciantes nos leilões de venda do pescado em lota, informado sobre a aquisição de comandos pela demandada conforme fls. 52.
O demandante e a demandada prestaram declarações. Em suma, aquele reiterou o teor do requerimento inicial e acrescentou que o dinheiro que dava para a alimentação era através do cartão da mina onde trabalha; a demandada reiterou igualmente que o demandante não lhe emprestou nada, que apenas partilharam as despesas em casal, que a compra da carrinha foi troca por troca com outro veículo e não envolveu dinheiro, e que já tinha o comando, pois já vendia peixe há 5 anos e não havia necessidade de agora comprar um comando novo.

Os documentos juntos pelo demandante a fls. 4 e 19 reportam-se a extracto de movimentos da conta n.º F, de que é titular, e a transferência bancária da conta de que é titular G Mestre para a conta do demandante.

Foram inquiridas as testemunhas H, vendedor do veículo SEAT, e D, irmã do demandante, por iniciativa do Julgado de Paz. Com relevância para a matéria a decidir, a primeira testemunha reiterou os termos do negócio constantes do documento de fls. 51 e referiu que apenas ouviu o demandante dizer que, se pudesse, ajudava a demandada; a segunda testemunhou no sentido vertido no facto provado sob o n.º 5, esclarecendo que o irmão foi ao local de trabalho da demandada e perguntou-lhe se tencionava pagar o que devia, ao que a aquela respondeu que não era o sítio indicado para terem essas conversas; referiu também que estava com o irmão quando ele fez os levantamentos da conta bancária e que ele lhe disse que os mesmos eram para a “dar à I para a carrinha”.

Já os factos não provados resultaram da ausência de prova sobre os mesmos.

IV. Fundamentação de Direito
A questão a saber é se o demandante e a demandada celebraram um contrato de mútuo, nos termos do 1142.º do Código Civil, que prescreve que este «é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade».
A definição legal pode, pois, ser decomposta nos seguintes três vectores: o empréstimo de certa coisa de uma parte, o mutuante, a outra parte, o mutuário; o objecto desse empréstimo é dinheiro ou outra coisa fungível; e o mutuário fica obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade. O contrato de mútuo é um contrato real quoad constitutionem, o que significa que ele só se completa no momento em que é entregue a coisa emprestada ao mutuário (vd. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., p. 396, nota 1, e, entre outros, Ac. STJ, processo n.º 07A079, de 13-02-2007, disponível em www.dgsi.pt).

No caso dos autos, as partes acordam que houve “entregas” de dinheiro. A demandada imputa tais “entregas” à participação nas despesas domésticas ocorridas em virtude da vivência em comum por força do relacionamento que mantiveram e nega que o demandante lhe haja emprestado qualquer quantia. O demandante, por seu turno, não negando a comparticipação em despesas domésticas, invoca que as quantias peticionadas dizem respeito a algo diferente, a saber, a empréstimo feito à demandada para que esta adquirisse o comando para efectuar a compra de pescado e o veículo automóvel para a sua venda.

Da matéria dada como provada resulta que o Stand de automóveis de C recebeu 300€ relativos à compra do veículo SEAT. O facto de se ter provado – contrariamente ao que foi declarado pela demandada - que a compra do veículo SEAT não foi “troca por troca” e que a mesma adquiriu em 23-11-2017 um comando para intervir nos leilões em lota para compra de pescado, não implica a prova de que o demandante tenha entregado à demandada um total de 1.400€ a título de empréstimo, ou mesmo os 300€ recebidos pelo Stand de automóveis. Dito de outro modo, o facto de a demandada ter faltado à verdade relativamente à compra do comando e do veículo automóvel não faz prova de que o demandante lhe tenha entregado os 1.400€. Por outro lado, também os documentos juntos aos autos pelo demandante relativos quer aos levantamentos da sua conta bancária (mesmo que a sua irmã tenha assistido a tais levantamentos) quer à transferência para a sua conta bancária nada nos revelam sobre a entrega de quaisquer montantes à demandada.

No contrato de mútuo, “é ao autor a quem compete a prova não só da entrega do dinheiro ou da coisa, como também da respectiva obrigação de restituição” (vd., entre muitos, Ac. TRC, processo n.º 1778/11.1TBVNO.C1, de 19-06-2013, disponível em www.dgsi.pt) no seguimento do prescrito no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, que dispõe que «àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado». Ou seja, cabia ao demandante fazer prova desses elementos, que são a entrega do dinheiro e a obrigação de restitui-lo. Nem o demandante fez prova directa da ocorrência desses factos, nem a indagação de factos antecedentes ou consequentes que não teriam ocorrido não fosse o facto de o demandante ter emprestado o dinheiro à demandada (de que é exemplo o facto provado 5) levou à confirmação de que o demandante entregou dinheiro, qual o montante entregue ou que a demandada se obrigou a restituí-lo. E, assim sendo, não pode proceder a sua pretensão.

V. Decisão
Em face do exposto, julgo a presente acção improcedente por não provada e absolvo a demandada B do pedido.

Custas:
O demandante é declarado parte vencida para efeito de custas, pelo que deve efectuar o pagamento de 35€ (70-35€ já pagos a fls. 8), neste julgado de paz, no prazo de três dias úteis, a contar do conhecimento desta decisão, sob pena do pagamento de uma sobretaxa de 10,00€, por cada dia de atraso (artigos 8.º e 10.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro, alterada pela Portaria n.º 209/2005, de 24 de Fevereiro, e n.º 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil).
Reembolse-se a demandada, no valor de 35€ (artigo 9.º da mesma Portaria).

Registe e notifique – artigo 60º, nº 2 da LJP

Julgado de Paz de Aljustrel (Agrupamento de Concelhos),em 17-04-2018

A Juíza de Paz

Isabel Alves da Silva