Sentença de Julgado de Paz
Processo: 74/2017-JPBBR
Relator: CARLA TEIXEIRA
Descritores: UNIÃO DE FACTO / SOCIEDADE IRREGULAR / ENTREGA DE COISA CERTA / LIQUIDAÇÃO POSTERIOR
Data da sentença: 06/07/2018
Julgado de Paz de : OESTE - CALDAS DA RAINHA
Decisão Texto Integral:
SENTENÇA

Relatório:
A intentou a presente acção declarativa contra, pedindo a condenação desta a entregar-lhe os bens que identifica ou, não sendo tal entrega possível, a pagar-lhe a quantia de € 14.580,00, correspondente ao valor desses bens, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde Setembro de 2016 até integral pagamento.
Alega, para tanto, que viveu em união de facto com a Demandada e que, nesse período, exploraram juntos um estabelecimento comercial de venda ao público de antiguidades, no qual, após a separação do casal, deixou vários bens seus para serem vendidos pela Demandada, contra o recebimento de uma comissão acordada entre ambos, sendo que esta, sem qualquer aviso, encerrou o estabelecimento e fez desaparecer todos os seus bens.
Juntou 7 documentos.
A Demandada foi regular e pessoalmente citada e apresentou Contestação, negando ter alguma vez vivido em união de facto com o Demandante e explorado o referido estabelecimento comercial em conjunto com este, onde alega que nunca existiram quaisquer bens do Demandante à venda. Mais refere que a presente acção não passa de uma “artimanha para obtenção de dinheiro fácil”.
Juntou 1 documento.
Uma vez que a Demandada prescindiu da fase da mediação, procedeu-se à marcação da audiência de discussão e julgamento, que se realizou com observância do formalismo legal.
**
Estão reunidos os pressupostos de regularidade da instância e não há excepções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.
**
Fixa-se à causa o valor de € 14.580,00 (catorze mil, quinhentos e oitenta euros) - cfr. artigos 306º n.º 1, 299º n.º 1 e 302º n.º 1 do CPC, ex vi artigo 63.º da Lei 78/2001, de 13 de Julho, na redacção que lhe foi dada pela Lei 54/2013, de 31 de Julho (de ora em diante abreviadamente designada LJP).
**
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
A) FACTOS PROVADOS:
A) Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1 – O Demandante e a Demandada mantiveram um relacionamento amoroso entre finais de 2013 e Agosto/Setembro de 2015.
2 – Já antes do relacionamento com a Demandada, o Demandante negociava a compra e venda de antiguidades, nomeadamente de carros antigos.
3 – Durante o seu relacionamento, o Demandante e a Demandada decidiram explorar, em conjunto, uma actividade comercial de compra e venda de antiguidades, tendo como objectivo, o lucro.
4 – Para o efeito, em 01.05.2014, a Demandada celebrou um contrato de arrendamento do prédio urbano sito na C, onde ambos instalaram um estabelecimento comercial denominado “D”.
5 – O Demandante colocou diversos bens seus, incluindo veículos automóveis, que já possuía num armazém, à venda no referido estabelecimento comercial.
6 – O Demandante e a Demandada adquiriram diversos bens para colocar à venda no referido estabelecimento, inicialmente com dinheiro da Demandada, e depois também com o lucro das vendas.
7 – O estabelecimento comercial “D” abriu ao público em Junho de 2014.
8 - Após o fim do relacionamento entre ambos, as Partes acordaram que o Demandante deixaria de explorar o estabelecimento comercial em parceria com a Demandada, continuando esta a exploração do mesmo.
9 – Aquando da separação, as Partes acordaram que o Demandante levaria consigo os bens que já possuía antes e que tinha colocado à venda no estabelecimento.
10 – Na sequência desse acordo, pouco após a separação, o Demandante e terceiros em sua representação, deslocaram-se à D e levaram 3 veículos automóveis e diversos objectos.
11 – Dos bens que tinha levado para venda no estabelecimento, o Demandante deixou lá os seguintes:
a) peças indeterminadas do que foi o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula CI, marca E, Modelo --------------------, forrado a pele, do ano de 1959, de cor vermelha e outra, a gasolina.
b) peças indeterminadas do que foi o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula HN, marca F, Modelo -------------------, do ano de 1973, de cor azul, a gasolina.
c) peças indeterminadas do que foi o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula T, marca G, Modelo --------------------, do ano de 1970.
d) peças indeterminadas do que foi o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula BA, marca H, Modelo ------------------, do ano de 1962, de cor vermelha e outra, a gasolina.
e) peças indeterminadas do que foi o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca I, Modelo --------, do ano de 1956, de cor preta e branca, a gasolina.
12 - A Demandada manteve a exploração do estabelecimento comercial durante cerca de 1 ano após o fim do relacionamento, tendo encerrado em Setembro de 2016.
13 – Aquando do encerramento do estabelecimento comercial, a Demandada enviou os bens descritos no Facto Provado n.º 11 para a sucata.
14 - Em 20.03.2017, o Demandante enviou à Demandada a comunicação junta a fls. 16 e 16 verso.
15 - Em 12.04.2017 a Demandada respondeu ao Demandante nos termos da comunicação junta a fls. 18.
**
B) FACTOS NÃO PROVADOS:
1 – Após o final da relação com a Demandada, o Demandante deixou no estabelecimento comercial os seguintes bens, que havia levado para venda no mesmo:
a) móveis em madeira: 1 cristaleira, 1 móvel de canto, 2 mesas de centro no valor de € 300,00
b) objectos de cerâmica: pratos e outros objectos no valor de € 200,00.
c) objectos em vidro: copos e outros objectos, no valor de € 150,00.
d) 1 colecção de aviões em miniatura, no valor de € 2.000,00.
e) diversas moedas antigas, no valor de € 600,00.
f) 1 equipamento de aquecimento de estufas no valor de € 400,00.
g) uma bancada de trabalho em metal, no valor de € 150,00.
h) diversas ferramentas de trabalho no valor de € 300,00.
i) 1 máquina de soldar no valor de € 380,00.
j) 1 máquina de costura singer antiga no valor de € 100,00.
k) um veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula SE, marca J, modelo ------------- do ano de 1989 de cor branca e outra, a gasolina, no valor de € 1.000,00.
2 – Aquando do fim da relação entre as Partes, os bens deixados no estabelecimento comercial pelo Demandante tinham os seguintes valores:
a) peças indeterminadas do que foi o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula CI, marca E, Modelo ------------------------o, forrado a pele, do ano de 1959, de cor vermelha e outra, a gasolina: valor de € 500,00.
b) peças indeterminadas do que foi o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula HN, marca F, Modelo -----------------------, do ano de 1973, de cor azul, a gasolina: valor de € 1.500,00.
c) peças indeterminadas do que foi o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula T , marca G, Modelo ------------------------ do ano de 1970: valor de € 3.500,00.
d) peças indeterminadas do que foi o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula BA, marca H, Modelo -----------------------, do ano de 1962, de cor vermelha e outra, a gasolina: valor de € 2.500,00.
e) peças indeterminadas do que foi o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca I, Modelo --------------, do ano de 1956, de cor preta e branca, a gasolina: valor de € 1.000,00.
3 - Os bens do Demandante, descritos no facto provado n.º 11, ficaram no estabelecimento comercial “D”, por acordo com a Demandada.
4 - As Partes acordaram que a Demandada procederia à venda dos bens do Demandante e, em troca, receberia uma comissão de 15% a 20% do valor da venda.
5 - As Partes acordaram que, caso os bens não fossem vendidos, permaneceriam no estabelecimento até que o Demandante encontrasse um espaço para os armazenar.
6 - Em Setembro de 2016 o Demandante teve conhecimento, através de terceiros, de que os veículos automóveis descritos no facto provado n.º 11, já não se encontravam à venda no estabelecimento comercial “D”.
7 - No mesmo dia, o Demandante dirigiu-se ao estabelecimento comercial e interpelou a Demandada acerca dos bens, não tendo a mesma dado qualquer explicação.
8 - O Demandante levou a cabo várias diligências junto de sucatas e de compradores de carros antigos, mas não obteve informação sobre o paradeiro dos bens.
9 - Em Outubro de 2016 o Demandante tomou conhecimento de que o estabelecimento comercial D havia encerrado.
10 - O Demandante contactou várias vezes a Demandada após o encerramento do estabelecimento comercial, com vista a obter informação sobre o paradeiro dos bens, sem que a mesma tenha dado qualquer explicação.
**
C) MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal relativamente à factualidade supra descrita, resulta da análise detalhada, crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência de vida, dos factos admitidos por acordo, dos documentos juntos, da confissão da Demandada, das declarações das Partes e dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, que decorreu de forma muito acalorada, em quatro sessões, tendo sido notório, em várias ocasiões, o envolvimento sentimental dos vários intervenientes com o caso em discussão, com a consequente perda de objectividade e muito “ruído” produzido à volta dos factos que eram relevantes para a decisão de mérito.

Concretizando:
- facto provado n.º 1: resulta da conjugação das declarações de ambas as Partes com os depoimentos de todas as testemunhas ouvidas, que confirmaram a existência do relacionamento amoroso entre as Partes. Não obstante as inúmeras advertências do Tribunal no sentido de se tratar de matéria irrelevante para os presentes autos – conforme infra se verá em sede de Direito - muito se discutiu a natureza de tal relação, se as Partes viviam, ou não, em condições análogas às dos cônjuges, se o que as movia eram afectos ou dinheiro, os motivos da separação, entre outros. Não obstante a irrelevância, mas porque foi tão acaloradamente discutido, dir-se-á que o Tribunal ficou plenamente convencido de que ambos viveram, pelo menos durante parte do seu relacionamento, em comunhão de mesa, leito e habitação, ou seja, em condições análogas às dos cônjuges, na casa da Demandada. Os únicos depoimentos prestados em sentido contrário foram das testemunhas K e L que não mereceram qualquer credibilidade pelas razões que melhor se explanarão infra.

- factos provados n.º 2 a 7: resultam da conjugação dos seguintes elementos probatórios: (i) cópia do contrato de arrendamento de fls. 39 a 41; (ii) declarações do Demandante que relatou a actividade que desenvolvia antes de conhecer a Demandada, de compra e venda de carros e de móveis antigos, em alguns casos após restauro, dos armazéns que foi tendo e onde guardava os bens. Relatou o negócio que projectou em conjunto com a Demandada, e os passos que foram dando para o concretizar até abrirem o estabelecimento ao público, um mês após o arrendamento, tendo até sido dele a escolha do nome; disse que levou todos os bens que possuía para venda nesse estabelecimento; relatou as compras que ia fazendo com a Demandada, sendo ele quem negociava por ter experiência na área, e sendo a Demandada quem pagava inicialmente, usando mais tarde o lucro das vendas que iam fazendo na loja para esse efeito; que era ele quem “geria” a loja, marcando os preços, negociando com os interessados, apesar de a Demandada também estar quase sempre presente. Que os clientes iam lá por causa dele, pois já era conhecido no meio, que era ele quem ia à feiras de antiguidades e quem entregava os móveis aos clientes; (iii) das declarações da Demandada muito focadas no dinheiro que gastou no estabelecimento comercial e durante a relação com o Demandante, e no sentimento de injustiça que esta acção lhe causa por entender que quem saiu lesada da relação foi ela e não o Demandante, que mais não quis senão aproveitar-se do seu dinheiro. Demonstrou ao longo de toda a audiência uma visível animosidade e mágoa em relação ao Demandante. Começou por tentar manter a versão que havia relatado na contestação (no sentido de que o Demandante não tinha levado qualquer bem seu para o estabelecimento, que sempre foi só dela) mas depressa se foi contradizendo, acabando ao longo da audiência por relatar uma versão oposta a essa e mais condicente com a versão do Demandante e das restantes testemunhas. Confirmou o projecto conjunto de exploração do estabelecimento comercial, que o Demandante levou bens seus para venda no mesmo, incluindo vários carros antigos; que o Demandante fazia alguns restauros; que entregou “muito dinheiro” ao Demandante para este ir comprar bens para o estabelecimento, focando-se, como se disse, na “fortuna” que referiu ter gasto com o negócio; (iv) do depoimento da testemunha M que visitou os armazéns que o Demandante teve antes do relacionamento com a Demandada, confirmando a existência de carros e móveis antigos no mesmo. Foi, também, cliente do estabelecimento “D” que para si era do Demandante pois era ele quem estava presente a atender a clientela e quem negociava as vendas, não obstante a Demandada também colaborar lá; (v) do depoimento da testemunha N que também foi cliente da “D” que disse julgar ser de ambos, pois viviam como um casal e no negócio também o atendiam os dois como sendo os donos; que o Demandante comprava peças que restaurava para vender e que viu lá à venda vários carros do Demandante que este já tinha tido antes num armazém; (vi) do depoimento da testemunha O que trabalhava perto do estabelecimento e confirmou que ambos se comportavam como marido e mulher e que o negócio também era feito em conjunto, ambos assumindo a posição de donos, “gerentes”; que comprou lá muitas coisas e negociou directamente com o Demandante; (vii) do depoimento da testemunha P que fez trabalhos de reparação de electrodomésticos para a “D” e que referiu que o estabelecimento era de ambos, que ambos agiam como “donos” sendo o Demandante quem tinha a última palavra relativamente aos negócios porque era quem percebia daquela área, que ambos “mexiam” na caixa e faziam os pagamentos; (viii) do depoimento da testemunha Q, que conhecia o antigo armazém do Demandante onde este tinha carros e outras peças que levou depois para a “D", referiu que ele próprio vendeu peças ao Demandante para a “D” e que trabalhou no estabelecimento, ajudando a carregar material e a fazer reparações, afirmando que ambos se comportavam como donos e geriam o dinheiro das vendas, usando-o para pagar as despesas, incluindo a sua retribuição, referiu que os dois faziam vida de casados e relatou o projecto de negócio que tinham em conjunto, que incluía, para além da exploração do estabelecimento, também a construção de um museu de miniaturas; (ix) da ausência de prova credível em contrário: com efeito, as únicas testemunhas a afirmar que o estabelecimento era só da Demandada foram o filho da Demandada, K e uma amiga, L que revelaram uma ligação emocional muito forte à história da relação entre as Partes, sendo visível a animosidade e a hostilidade demonstradas para com o Demandante a quem acusaram de apenas ter querido aproveitar-se financeiramente da Demandada, tendo-a levado a uma depressão após o final da relação. A primeira testemunha chegou mesmo a verbalizar que não gosta do Demandante com quem disse ter tido conflitos vários, incluindo agressões e que tudo fez para que a relação da Mãe com este terminasse. Sobre os factos aqui em causa mostrou pouco saber pois não frequentava o estabelecimento durante a relação entre as Partes, repetindo, porém, que era tudo da Mãe, mas sem base nenhuma que o sustentasse. Respondeu quase sempre em tom acusatório, como quando disse que o Demandante nada fazia na loja, “só se fazia trabalhos para roubar mulheres que é o que ele sabe fazer”, entre vários outros exemplos. A segunda testemunha revelou a mesma hostilidade para com o Demandante e a mesma ligação afectiva à Demandada, tendo prestado um depoimento que não logrou convencer o Tribunal, por ser contraditório com os restantes depoimentos (incluindo com o da testemunha K, que disse ter visto no estabelecimento no dia em que o Demandante foi levantar os carros, sendo que este disse que não esteve lá) pela hostilidade demonstrada quando questionada pela Ilustre Mandatária do Demandante que a fez entrar em contradição por várias vezes e porque afirmou que fazia trabalhos de limpeza no estabelecimento, sendo que ninguém a viu por lá, nem sequer o Demandante. Do depoimento destas duas testemunhas perpassou um sentimento de revolta e injustiça perante o objecto dos presentes autos (que vem já da própria relação mantida entre as partes que entendem ter sido uma forma de o Demandante se financiar à custa da Demandada) que as terá levado a faltar à verdade para adequar a realidade ao resultado que entenderam que seria justo para a Demandada.

- factos provados n.º 8 a 10 e 12: resultam da conjugação das declarações de ambas as Partes que foram coincidentes quanto ao facto de terem combinado que o Demandante poderia levar todos os seus bens (entendendo por estes todos os bens que tinha trazido do seu armazém antigo para a loja), continuando a Demandada a explorar o estabelecimento, até porque o arrendamento do espaço fora feito em seu nome.
Quanto aos bens que este levou consigo, ambos referiram diversos móveis, bem como três automóveis, tendo um sido levado pelo filho e dois pelo Demandante. A testemunha Q confirmou que foi buscar dois veículos com o Demandante, tendo cada um conduzido um deles directamente para a Expo Oeste.
A Demandada referiu que foram 4 veículos, mas não foi produzida mais prova credível nesse sentido, pelo que se considera provado apenas a parte em que as declarações de ambos coincidiram. Com efeito, as testemunhas K e L também referiram 4 veículos, mas o seu depoimento foi contraditório, tendo a segunda afirmado que a testemunha Joaquim estava presente (o que o próprio contrariou) e que viu o Demandante levar os veículos de reboque, facto que foi contrariado pela testemunha que acompanhou o Demandante e que afirmou que estes circulavam e foram levados um por cada um, sendo que o seu depoimento desta testemunha se revelou isento, genuíno e credível.
Quanto à data de encerramento do estabelecimento, foram também coincidentes as declarações de ambas as Partes.

- facto provados n.º 11 e 13: resultam da confissão da Demandada, sendo que nenhuma outra prova foi produzida sobre estes factos. Com efeito, nenhuma das testemunhas sabia exactamente o que é que o Demandante tinha deixado no estabelecimento comercial, tendo referido que havia lá carros antigos, mas não sabiam identificá-los nem dizer a quem pertenciam, nem localizar no tempo o período em que os viram lá.
A Demandada, no final da audiência e já depois de terminada a prova testemunhal, acabou por confessar que o Demandado deixou no estabelecimento os veículos que vem peticionar nestes autos, com excepção do Ford que referiu que levou com ele. Esclareceu, porém, que não se tratava já de veículos automóveis, propriamente ditos, mas de um aglomerado de peças que mais não eram do que ferro velho, sem motor, sem portas, sem rodas, uma vez que os Demandante tinha levado consigo várias peças, e que ficaram lá cerca de um ano sem que o Demandante os fosse buscar, porque o que ele pretendia era vender os documentos dos veículos a quem tivesse outros daquela marca e modelo por € 1.000,00, pois os “carros” em si não tinham qualquer valor comercial. Que quando fechou o estabelecimento comercial mandou tudo para a sucata juntamente com outras peças suas, uma vez que tinha de entregar o locado livre e devoluto de pessoas e bens.

- factos provados n.º 14 e 15: resulta das comunicações de fls. 16 a 18.

- factos não provados n.º 1 a 10: resulta da ausência de prova suficiente e credível produzida sobre os mesmos. Relativamente aos aviões em miniatura resultou das declarações de ambas as Partes que os mesmos foram comprados pouco antes da abertura do estabelecimento, com dinheiro da Demandada, pelo que não se trata de bens que o Demandante já tivesse em seu poder antes do início da relação com esta.
Quanto aos factos não provados n.º 3 a 10, apenas foram confirmados pelo Demandante, sendo que a Demandada os negou e não foi produzida qualquer prova que permitisse confirmar a versão do Demandante quanto aos mesmos.
**
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO:
O Demandante pretende que a Demandada seja condenada a entregar-lhe diversos bens que alegou ter deixado no estabelecimento comercial que ambos exploraram ou, não sendo tal possível, a pagar-lhe o respectivo valor, que computou em € 14.580,00.
Vejamos se tal obrigação resulta dos factos provados, à luz das disposições legais vigentes e aplicáveis ao caso concreto.
Desde logo, há que referir que a natureza da relação amorosa existente entre as Partes, que tanto se debateu nas várias sessões da audiência de julgamento, é irrelevante para a apreciação do mérito da causa, na medida em que o regime jurídico da união de facto (aprovado pela Lei n.º 7/2001, de 11/05, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30/08 e pela Lei n.º 2/2016, de 29/02) não contém qualquer disposição que possa ser aplicada aos presentes autos, atendendo à causa de pedir e ao pedido, tal como foram configurados pelo Demandante.
**
Resultou provado que as Partes acordaram na exploração, em conjunto, de um negócio de compra de antiguidades, e revenda das mesmas ao público, em alguns casos após restauro, visando o lucro.
Provou-se que o Demandante entrou para este negócio com vários bens que já tinha na sua posse e que a Demandada entrou para o negócio com dinheiro que foi usado para a aquisição de outros bens. Resultaram, também, dos depoimentos prestados em audiência, factos instrumentais que permitem concluir que aos olhos de todos, ambos actuavam como “donos” do estabelecimento comercial, denominado “D”, conforme se explanou em sede de motivação de facto.
Dispõe o artigo 36º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) o seguinte: “1 - Se dois ou mais indivíduos, quer pelo uso de uma firma comum quer por qualquer outro meio, criarem a falsa aparência de que existe entre eles um contrato de sociedade responderão solidária e ilimitadamente pelas obrigações contraídas nesses termos por qualquer deles.
2 - Se for acordada a constituição de uma sociedade comercial, mas, antes da celebração do contrato de sociedade, os sócios iniciarem a sua actividade, são aplicáveis às relações estabelecidas entre eles e com terceiros as disposições sobre sociedades civis.”
Trata-se da figura das sociedades irregulares como ainda hoje são designadas pela doutrina e pela jurisprudência, apesar de o actual CSC ter praticamente abandonado tal designação. Nestes casos, em que as Partes iniciam a actividade comercial sem observância da forma legal prevista para o contrato de sociedade, não se reconhece a existência de uma sociedade comercial, mas equipara-se a situação de facto existente à das sociedades civis, cujo contrato se caracteriza por não se encontrar sujeito a forma especial – cfr. artigo 981º, n.º 1 do CC.
Como refere Ferrer Correia, “a solução que se oferece como mais ajustada à intenção das partes é sem dúvida a que consiste em regular as relações entre elas, onde não possam alcançar as cláusulas do contrato, por normas pertencentes ao direito das sociedades; e como à validade do acto constitutivo de toda a sociedade comercial é essencial a forma solene da escritura pública, é manifesto que as normas aplicáveis só poderão ser as correspondentes ao tipo da sociedade civil, pois a sociedade civil basta-se com qualquer forma.” - Estudos Vários de Direito, 1982, pág. 511 e 512.
Atenta a matéria de facto apurada, dúvidas não restam de que as Partes se associaram para a prática de actos do comércio, tendo iniciado tal prática sem observarem a forma legal para constituição de uma sociedade, pelo que entre ambos existia um contrato de “sociedade comercial de facto” que apenas não tinha existência jurídica por falta de forma legal. Nestes casos, e uma vez que a Lei remete para as disposições relativas às sociedades civis, aplicar-se-á às relações entre os sócios – que é o que está em causa nesta acção – o disposto nos artigos 983º a 995º do Código Civil (CC).
Está, assim, enquadrada a actividade que foi exercida em conjunto pelas Partes entre Junho de 2014 e Agosto/Setembro de 2015.
**
Provou-se que em Agosto/Setembro de 2015 as Partes terminaram o seu relacionamento amoroso e, em consequência disso, acordaram em pôr termo à exploração conjunta do estabelecimento comercial “D”, ficando apenas a Demandada a explorá-lo.
Mais se provou terem acordado que o Demandante levaria consigo os bens que já possuía antes do início da relação com a Demandada e que tinha colocado à venda na “D”, ficando os restantes bens para esta.
Daqui resulta que as Partes acordaram na dissolução da sociedade irregular, sendo o acordo dos sócios uma das formas previstas na lei para que tal dissolução produza efeitos – cfr. artigo 1007º do CC.
Resulta, também, que as Partes regularam, por acordo, a forma da liquidação e partilha da sociedade, ao abrigo do disposto no artigo 1011º n.º 1 do CC: o Demandante poderia levar consigo os bens que havia trazido para a “sociedade”, ficando os restantes para a Demandada que continuaria, sozinha, a exploração do negócio.
Não foi invocada a existência de dívidas a terceiros que fosse necessário regularizar antes da partilha, pelo que nada há a apurar quanto a essa matéria.
Em consequência do acordo relativamente à liquidação e partilha, e tal como se provou, o Demandante deslocou-se à D, para ir buscar três veículos automóveis e diversos bens que já possuía antes de ter iniciado a exploração do estabelecimento comercial com a Demandada.
Dos bens que o Demandante alegou ter deixado no estabelecimento comercial, apenas se provou ter este deixado peças indeterminadas de 5 veículos automóveis que, conforme confessado pela Demandada, foram enviadas para a sucata aquando do encerramento do estabelecimento por, segundo disse, não terem qualquer valor comercial.
O direito do Demandante a esses bens resulta do acordo de liquidação e partilha da sociedade irregular que foi feito entre ambas as Partes, pelo que dúvidas não há de que a Demandada estava obrigada a entregá-los ao Demandante. Poderia discutir-se se a inércia do Demandante ao deixar tais bens no estabelecimento comercial durante um ano sem os levantar poderia qualificar-se como uma vontade deste de renunciar a tais bens, ou seja, de se despojar do seu direito de propriedade sobre os mesmos, o que se traduziria num abandono, causa extintiva do seu direito. Porém, não resultaram provados factos suficientes que permitam extrair essa conclusão. Diferente seria se a Demandada tivesse alegado (e provado) que tentou entregar os bens ao Demandante, ou que lhe impôs um prazo para o seu levantamento, e que este nada fez. Nada disso foi sequer alegado, pois na sua contestação a Demandada optou por negar que alguma vez o Demandante tivesse tido bens seus no estabelecimento – o que, como se viu, se revelou falso, como a mesma acabou por confessar (sendo que, não fosse a sua colaboração em sede de audiência, para a descoberta da verdade, se equacionaria a sua condenação como litigante de má-fé, atenta a contestação que apresentou).
Assim, e não havendo factos suficientes para se concluir pelo abandono dos bens, conclui-se que o Demandante tinha direito a obter a sua restituição, por parte da Demandada.
Porém, resultou da prova que tal prestação se tornou impossível, uma vez que a Demandada enviou os bens para a sucata aquando do encerramento do estabelecimento comercial.
Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação.” – cfr. artigo 801º n.º 1 do CC - sendo, por conseguinte, a Demandada responsável pelo prejuízo que causou ao credor – cfr. artigo 798º do CC.
O prejuízo do Demandante corresponderá, assim, ao valor de tais bens – cfr. artigo 566º n.º 1 do CC.
**
Ora, quanto a este ponto, não se apurou, em concreto, de que peças se tratava, com relação a cada um dos veículos, nem o estado em que se encontravam, muito menos o seu valor, sendo certo que o ónus da prova desses factos incumbia ao Demandante – cfr. o disposto no artigo 342º n.º 1 do CC.
Com efeito, o Demandante não juntou aos autos nenhum documento, nomeadamente uma fotografia, ou outro, de onde se pudesse retirar qual era o estado em que se encontravam os veículos, nem tão-pouco apresentou qualquer testemunha que com conhecimento na área (ou até sem ele) pudesse esclarecer o Tribunal sobre a mesma questão e ainda sobre o respectivo valor comercial, ou o valor das peças que estavam em causa. Assim, e por total ausência de prova produzida sobre tais factos, nada disso se provou.
Poderá equacionar-se se, estando provado o dano, deverá remeter-se para liquidação posterior o apuramento do seu valor, ao abrigo do disposto no artigo 609º n.º 2 do CPC.
Ora, atendendo a que aquilo que restou dos veículos em causa já foi enviado para uma sucata em Setembro de 2016, não se afigura possível apurar que peças em concreto estão em causa, nem tão-pouco, qual seria o seu exacto valor, em incidente de liquidação posterior.
Acresce, ainda, que, como se decidiu no AC STJ-2ª, de 13.1.2000: Sumários, 37º- 34:
II – A remissão para a execução de sentença não poderá ser em razão da falta de prova dos factos, mas antes por inexistência de factos provados, por não serem conhecidos ou estarem em evolução no momento em que é instaurada a acção ou no da decisão quanto à matéria de facto. III – Consentir-se no apuramento do crédito e do respectivo montante em execução de sentença, seria o mesmo que conceder uma segunda oportunidade ao autor para, na mesma acção, aperfeiçoar a petição. IV – Tal significaria também subverter princípios fundamentais em processo civil, permitindo uma intolerável intromissão da fase declarativa, numa situação em que ela é manifestamente inadmissível.” (sublinhado nosso).
No caso em análise, quando intentou a acção, o Demandante já sabia quais eram os bens que estavam em causa, bem como o respectivo valor. Tanto assim é que os descreveu no seu Requerimento Inicial, e lhes atribuiu um valor. Sucede, porém, que não só não provou que os bens eram aqueles que descreveu (uma vez que se provou que não se tratava de veículos automóveis “inteiros” mas de um aglomerado de peças destes), como não fez prova absolutamente nenhuma sobre qual seria o seu valor. E essa prova podia - e devia - ter sido feita nesta sede.
Neste mesmo sentido decidiu também o STJ no Acórdão de 24.2.2000: Sumários, 38º-45.:
I – Só nos casos em que, no momento da formulação do pedido ou da prolação da sentença, não haja elementos para fixar o objecto ou a quantidade do pedido, pode aplicar-se o n.º 2 do artigo 661º do CPC, proferindo-se condenação no que se liquidar em execução de sentença. II – Mas essa falta de elementos nunca poderá ser consequência da falta ou fracasso da prova na acção declarativa, mas antes, e apenas, por não serem conhecidos ainda, naqueles momentos, com rigor, as unidades que integram a universalidade ou por não se terem revelado, por estarem em evolução, todas as consequências. III – De contrário, corresponderia a sancionar uma forma de litigância que acabaria por redundar na concessão de uma segunda oportunidade para a produção de prova, com desrespeito manifesto pelas regras que estabelecem os momentos e lugares próprios para as diferentes fases processuais.” – sublinhado nosso.
Assim sendo, não se verificam os pressupostos necessários para que seja dada uma segunda oportunidade ao Demandante de apurar o valor dos danos em incidente de liquidação posterior.
Por outro lado, também não existem nos autos elementos que permitam fixar tal valor, mesmo com recurso à equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566º n.º 3 do CC, uma vez que nem sequer se apurou de que peças se trata em concreto, com relação a cada um dos veículos.
Face ao exposto, e atenta a ausência de prova sobre que peças, em concreto, restavam de cada um dos veículos automóveis, e seu respectivo valor, terá de se concluir pela improcedência da presente acção, na totalidade.
**
Responsabilidade tributária:
Atento o disposto no artigo 527º n.º 1 e 2 do CPC aplicável ex vi do artigo 63º da LJP, e porque o Demandante é parte vencida, deverão as custas ser suportadas pelo mesmo, sem prejuízo da dispensa de pagamento de que beneficia – cfr. fls. 20 e 21.
Deverá, assim, ser devolvida a quantia de € 35,00 à Demandada – cfr. artigos 1º, 2º, 8º, 9º e 10º da Portaria n.º 1456/2001 de 28 de Dezembro, alterada pela Portaria n.º 209/2005 de 24.02.
**
Dispositivo:
Julgo a presente acção totalmente improcedente por não provada e, em consequência disso, absolvo a Demandada do pedido.
Custas pelo Demandante.
**
Registe e notifique.
Bombarral, 07.06.2018

A Juíza de Paz

Carla Alves Teixeira
(que redigiu e reviu em computador – artigo 131º n.º 5 do CPC)