Sentença de Julgado de Paz
Processo: 101/2017-JPBBR
Relator: ELENA BURGOA
Descritores: CONTRATO DE COMODATO VERBAL. VIOLAÇÃO DEVERES DE CONSIDERAÇÃO COM A PESSOA E O PATRIMÓNIO DA OUTRA PARTE. PERDA DE CHANCE/POSSIBILIDADE
Data da sentença: 12/20/2018
Julgado de Paz de : OESTE
Decisão Texto Integral: Proc. nº 101/2017 JPACB
SENTENÇA

I - IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES

Demandante: A, NIF…, com domicílio na Rua …, nº…, Sapeiros, Alfeizerão;

Demandado: B, NIF…, declarado ausente, com último domicílio conhecido em Rua…, nº .., Casal da Areia, Coz.

II - OBJETO DO LITÍGIO e TRAMITAÇÃO

A Demandante veio propor, em 9.10.2017, contra o Demandante a presente ação declarativa possessória, enquadrada na al. e) do n.º 1 do art. 9º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, alterada pela Lei n.º 54/2013, de 31 de Julho, Lei dos Julgados de Paz (adiante LJP), pedindo que lhe seja restituída a posse e o pleno uso do seu imóvel e este fosse condenado a deixar o imóvel devoluto, ou em alternativa reverterem os bens constantes no imóvel a favor da Demandante, e a pagar-lhe a indemnização de €2.000,00, a título de danos patrimoniais, bem como no pagamento de €450,00 a título de danos não patrimoniais, totalizando a quantia de €2.450,00 (dois mil e quatrocentos e cinquenta euros) com todas as consequências legais.

Alegou, para tanto os factos constantes do Requerimento inicial de fls. 3 a 7, que aqui se dá por reproduzido. Juntou 16 documentos (fls. 8 a 30) que, igualmente, se dão por reproduzidos.

Tendo-se frustrado a citação do Demandado, por via postal e através de inúmeras diligências efetuadas, foi determinada a suspensão da instância, em 11.06.2018, ficando os autos a aguardar o impulso processual de parte. Tendo a Demandante colaborado positivamente na melhor identificação do Demandado, foram efetuadas as diligências previstas no art. 236º do CPC, e remetida nova carta de citação para a morada constante nos autos confirmada pelas entidades, que veio devolvida com a indicação “mudou-se” (fls. 47). Inexistindo possibilidade de citação do Demandado porque ele se colocou numa situação de ausência, tratando-se de processo com data de entrada neste Tribunal em 9/10/2017, e atento o Princípio da Celeridade, foi nomeada Ilustre Defensora para assegurar a defesa do ausente, em 27.08.2018 (fls. 103), de acordo com o disposto no art. 21º do Código de Processo Civil (CPC), dada a inexistência de representante do Ministério Público nos Julgados de Paz.

De facto, como refere o Tribunal Constitucional "'[...] o legislador tem de prever mecanismos para evitar que o processo fique parado indefinidamente, à espera de que o demandado seja localizado e chamado ao processo'. Há que conciliar e equilibrar os vários princípios e interesses em jogo, nomeadamente os do contraditório e da referida proibição da indefesa com aquele outro princípio da celeridade processual e ainda com os princípios da segurança e da paz jurídica, que são valores e princípios de igual relevância e constitucionalmente protegidos 'e não permitir que o processo se arraste indefinidamente […] o que poderia ter consequências desestabilizadoras e frustrar assim o alcance da justiça'”(Acórdão TC n.º 508/2002, também transcrito no Acórdão n.º 287/2003).

Deste modo, na impossibilidade de citar o Demandado, o Defensor Oficioso garante a legalidade e o princípio do contraditório (conexo com o princípio da igualdade das partes) que o Tribunal deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, uma vez que, como se sabe, não há Ministério Público junto dos Julgados de Paz. A doutrina (J. O. Cardona in Julgados de Paz- Organização, Competência e Funcionamento, Coimbra Editora, 2001, pág. 64) e a jurisprudência dos Julgados de Paz são, neste aspeto, unânimes e têm promovido uma cultura judiciária garantista.

Citado o Demandado, através da Defensora Oficiosa nomeada para o efeito, Dra. C, foi apresentada Contestação de fls. 106/109, impugnando a factualidade alegada e documentos juntos pela Demandante. Na presente ação, vem o Demandado também alegar a falta de citação, nos termos do disposto no artigo 188º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil (CPC), violando o Princípio do contraditório uma vez que entende que, nos Julgados de Paz, a parte Demandada deve ser pessoalmente citada (art. 233º nº 1 do C.P.C.), uma vez que não é admitida citação edital (art. 46º nº 2 da Lei 78/2001), entendendo-se como tal apenas e só a citação por contacto pessoal de funcionário ou por carta registada por aviso de receção. Defende que apenas, nestas situações, são admitidas: a citação efetuada em pessoa diversa do citando, apenas nos casos especiais previstos no art. 233º nº 4 do C.P.C., e na pessoa do mandatário constituído pelo citado, com poderes especiais para receber a citação; defende, ainda, que não foram esgotadas as possibilidades para determinar o paradeiro do Demandado, devendo as diligências ser impulsionadas pela Demandante, concluindo pela improcedência da ação.

Cumpre desde já, conhecer da supra referida questão.

Compulsados os autos, verifica-se que as cartas para citação do Demandado, remetidas para a morada indicada no requerimento inicial vieram devolvidas com a indicação de “não reclamada”. O mesmo sucedeu, após colaboração da Demandante no impulso processual e a realização das habituais diligências junto de entidades oficiais. De salientar que não foi possível obter registo do Demandado através da “Aplicação T-Menu” (base de dados de identificação civil) por falta de identificação (CC). Assim, foi determinada a citação do Demandado através de Defensor Oficioso por Despacho de folhas 99,e remetida cópia do requerimento inicial à Defensora nomeada do Demandado.

O que significa que com o referido Despacho deu-se cumprimento às normas previstas no artigo 45º, 46º, n.º2 e artigo 2º, n.º2 da Lei 78/2001, (Lei dos Julgados de Paz) conjugada com o artigo 21º do CPC, ex vi do artigo 63º da mesma, citando o Demandado em Defensora Oficiosa nomeada para o efeito. Refira-se que este procedimento em nada viola o artigo 20º da CRP, na medida em que só é feito “in extremis” quando a pessoa está ausente ou “se ausentou para o processo”, o que é o caso, conforme se referiu.

A Doutrina e Jurisprudência dos Julgados de Paz, conforme referido, são unânimes em considerar que não há violação do direito de defesa nem do contraditório, uma vez que o princípio de direito à defesa/contraditório fica assegurado através da citação feita em especialista do Direito, Advogado. De igual modo, o princípio a um processo justo também fica assegurado na medida em que para além do que se disse sobre o princípio do direito à defesa, existe igualdade de tratamento de partes.

Cumpre decidir:

Em consequência, julgo improcedente a arguição da nulidade de citação, considerando válida a citação efetuada no Ilustre Defensora Oficiosa nomeada, bem como todo o processado após a supra referida citação, bem como legítima a respetiva nomeação.

O Julgado de Paz é competente.

Não existem nulidades que invalidem todo o processado.

As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.

Não se verificam outras exceções dilatórias, nulidades ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento da causa, ou exceções perentórias que cumpra conhecer.

Com a resposta à contestação, veio a Demandante apresentar requerimento Ora, apenas se admite, na tramitação dos Julgados de Paz, excepcionalmente, a resposta à contestação (no caso previsto no nº 3, do art. 48º da LJP), caso haja reconvenção. Não é o caso. Assim sendo, determina-se o desentranhamento do articulado da Demandante, apresentado a fls.113 a 118 (resposta à contestação).

Aberta a audiência a 22.11.2018, verificou-se a presença do Demandante e da sua I. Mandatária, Dra. D, bem como da Defensora Oficiosa do Demandado, Dra. C, tendo decorrido a mesma, na observância do formalismo legal, como da respectiva ata se alcança. Tendo sido ouvida a testemunha apresentada pela Demandante.

O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do objeto, do território e do valor. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.

Valor da ação: € 2.450,00.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO- FACTOS PROVADOS:

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1 – A Demandante é dona e legítima proprietária do prédio sito na Rua …, Sapeiros, na freguesia de Alfeizerão, Concelho de Alcobaça, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … (docs. 1, a fls. 8);

2 – Por autorização e consentimento, prestado verbalmente, da Demandante o Demandado, prévia solicitação à Demandante, tem vindo a ocupar o pavilhão/armazém composto de r/chão com 2 divisões, destinadas a garagens e arrumos de artigos agrícolas e logradouro, com afetação para armazéns e atividade industrial (doc. 2, a fls. 9);

3- O Demandado tem vindo a ocupar, desde 14 ou 15 de março de 2016 até a atualidade, o armazém;

4- A Demandante emprestou o imóvel ao Demandado, gratuitamente, por um prazo não superior a dois meses, ficando estabelecida a sua devolução assim que lhe fosse comunicado;

5 – O Demandado era conhecido, morava perto e pediu o espaço à Demandante para guardar material de hotelaria que comprou numa falência com vista a fazer festas de casamentos e baptizados;

6- O Demandado encheu o espaço com bens móveis de diversa natureza e dimensão (doc. 3 a 12 de fls. 10 a 19;

7- Passado o tempo estabelecido o Demandado continuo a ocupar o imóvel, apesar do pedido da Demandante para que proceda à devolução do armazém, quer verbalmente, quer através da sua Mandatária por diversas vezes e formas;

8- Tendo o Demandado deixado de atender às chamadas, a Mandatária da Demandante procedeu à notificação extrajudicial do Demandando para entrega do imóvel e retirada dos bens móveis lá colocados, por meio de comunicação escrita, cartas registadas com aviso de recepção, datadas de agosto de 2017, dando-lhe o prazo até 30 agosto, sob pena dos bens serem colocados na rua, acompanhados de inventário e registo fotográfico, excluindo a partir dessa data de qualquer responsabilidade pela boa conservação e destino dos mesmos (doc. 14 e 15 de fls. 24/29);

9- As cartas vieram devolvidas (doc. 14 e 15 de fls. 24/29) e o Demandado não procedeu à entrega do armazém que ocupa, apenas tendo retirado algumas coisas de maior volume e valor;

10- Chegando a deixar, por vezes, o portão do armazém aberto (doc. 16 de fls. 30) o que causava preocupação e insegurança à Demandante, que mora no prédio confinante ao armazém (doc. 1 de fls. 8);

11- Há mais de dois anos e meio que o Demandado continua a servir-se e ocupar o imóvel com os seus bens (embora estes tenham diminuído em quantidade) contra a vontade da Demandante;

12- A ocupação do imóvel teve repercussões em termos patrimoniais para a Demandante, uma vez que com a evolução do sector agrícola e industrial na região Oeste, perdeu a possibilidade de obtenção de rendimentos através do arrendamento do seu imóvel, como era sua pretensão.

FACTOS NÃO PROVADOS:

Não se provaram quaisquer outros factos alegados pelas partes, com interesse para a decisão da causa.

MOTIVAÇÃO

A convicção probatória do Tribunal Jurisdicional, ficou a dever-se ao conjunto de prova produzida nos presentes autos, tendo sido tomadas em consideração as declarações da Demandante na audiência de julgamento, assim como os documentos juntos ao processo (de fls. 8 a 30) e o depoimento da testemunha inquirida, E, que, aos costumes, declarou ser industrial, cunhado da Demandante e conhecer o Demandado, não tendo a sua qualidade retirado credibilidade ao seu depoimento. Tendo conhecimento direto dos factos e com relevo para a causa, uma vez que conhece o Demandado, o local (armazém) em causa, e foi consultado pela sua cunhada, na altura, sobre o que achava do Sr. B. Referiu ter acompanhado toda a situação porque mora e trabalha perto, quer quando o Demandado colocou os bens dentro do armazém, tendo-se apercebido também quando o mesmo começou a levar/retirar as coisas de maior valor, já depois da Demandante ter pedido para sair do armazém. Tendo referido que o Demandado foi ter com a sua cunhada porque sabia que tinha o armazém livre, e pretendia guardar material de hotelaria comprado numa falência para usar em casamentos e baptizados. Que a Demandante tem vindo a pedir para sair mas que o Demandado continua a ter material no armazém, embora menos. Que viu o armazém aberto varias vezes e chegou a encostar a porta. Sabe que a Demandante quer arrendar o armazém, tendo dado, ele próprio, o contacto a um senhor das Caldas que estava interessado.

IV - O DIREITO

Nestes autos, a questão a decidir prende-se com o empréstimo/cedência de um imóvel para o armazenamento de bens - normal utilização do imóvel que, conforme resulta provado, se destinava à armazém e atividade industrial- e o contrato celebrado entre as partes e às obrigações daí decorrentes.

Os factos provados revelam, entre a Demandante e o Demandada foi celebrado um contrato de comodato. Qualificando juridicamente este facto tem de se concluir que o mesmo se subsume à previsão do art.º 1129.º do Código Civil (CC) o qual dispõe que: “Comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.

Não obsta a esta qualificação o facto de o contrato não ter sido celebrado por escrito, uma vez que tal forma não é legalmente obrigatória, podendo as respetivas declarações negociais ser feitas pela forma verbal ou mesmo tácita (arts 217.º e 219.º do CC).

Nos termos do disposto no art.º 1135.º do CC, o comodatário (o Demandado) tem, entre outras, a obrigação de guardar e conservar a coisa emprestada, de não a aplicar a fim diverso daquele a que a coisa se destina, de não fazer dela uma utilização imprudente e de restituir a coisa, findo o contrato.

O contrato de comodato cessa quando: a) findo o prazo certo convencionado; b) Não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que lhe foi concedido; e c) não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija (art.º 1137.º, do CC).

Neste caso, resulta provado que a cedência do imóvel se destinava a que o Demandado guardasse o material de hotelaria comprado numa falência por um tempo não superior a dois meses, devendo entregá-lo no final desse período. O Demandado não só não restituiu o imóvel imediatamente, no prazo certo convencionado, como, apesar de ter transcorrido mais de dois anos e medio, continua a ocupar ilegitimamente o armazém que é propriedade da Demandante e tem interpelado/exigido, insistentemente, o Demandado para entregar o imóvel, e até à presente data não o fez.

Ora bem, como salienta a doutrina e jurisprudência, o contrato de comodato é um contrato gratuito que se funda em razões de cortesia, de favor ou gentileza do comodante para com o comodatário. Como entende Ruggiero “a concessão é essencialmente gratuita, sendo feita para prestar a outrem um serviço e, assim, em regra, no interesse exclusivo de quem recebe”. Ou seja, daí que o comodato seja um daqueles contratos em que, nas relações normais da vida, menos se pensa que implique regras jurídicas, aparentando estar fora do campo do direito e ser mais dominado pelos costumes e pelos deveres de amizade. O que é o mesmo que dizer que inexistindo contrapartida do comodatário correspectiva da vantagem de que beneficia, o comodato constitui, pois, aparentemente, um favor prestado pelo comodante ao comodatário.

É por isso, que no caso em apreço, não se justifica a manutenção desta insustentável e censurável situação que configura grave violação da boa-fé que não pode deixar de ter consequências nas relações entre ele e o comodante, encarando o comodato como uma relação obrigacional complexa que se concretiza num conjunto ou num sistema de direitos subjectivos propriamente ditos e de deveres jurídicos, de direitos potestativos e de estados de sujeição, de excepções, de ónus e de expectativas jurídicas” (Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, 2011, p.49).

Com efeito, a doutrina é unânime a incluir entre os deveres jurídicos originados pelo contrato, os de prestação e os acessórios de conduta (laterais), correspondendo estes últimos a uma complementação do conteúdo obrigacional do contrato fundado no princípio da boa-fé e subdividindo-se estes em deveres de promoção do fim do contrato e em deveres de protecção.

Concretizando-se, por sua vez, este segundo grupo de deveres de protecção em deveres de lealdade, deveres de consideração, deveres de notificação e de informação (com verdade), deveres de cuidado e consideração com a pessoa e património da outra parte, cuja eficácia se reflecte nas relações entre comodante e comodatário mesmo no caso de a conduta violadora haver tido lugar nas relações com terceiros, de abstenção de actos que importem consequências danosas para o objecto da prestação ou para a esfera jurídica pessoal ou patrimonial da contraparte ou, mais genericamente, que envolvam qualquer perigo para a realização do fim contratual.

Nessa medida, a doutrina e jurisprudência realça que a sua matriz é a cláusula geral da boa-fé (arts. 239° e 762º Código Civil), ou seja, a regra de valoração da conduta das partes como honesta, correta, leal. Por conseguinte, volvendo ao caso concreto, se o comodatário há mais de dois anos e meio que continua a servir-se e ocupar o imóvel com os seus bens contra a vontade da Demandante cujo uso lhe foi cedido sem qualquer contrapartida, infringe estes deveres de consideração e de cuidado com os interesses da contraparte e frustra a confiança que está na base desse contrato gratuito.

No caso em apreço, foi convencionado prazo certo para a restituição ou para o uso da coisa (do armazém). E esse uso já findou. Dada a natureza do contrato, vem constituindo entendimento dominante que o uso só é determinado se delimitar, em termos temporais, a necessidade que o comodato visa satisfazer, ou seja, o uso determinado da coisa deve conter em si a definição do tempo de uso.

Como esclarece o Acórdão do TRP de 18.12.2013, o uso determinado da coisa “emprestada” deve estar expresso de modo claro, por forma a não ser confundível com outro tipo de realidades jurídicas que giram à sua volta, nomeadamente, com a doação. E, nesse caso, será devida a restituição, esgotado o período temporal estabelecido para esse uso, ou seja, utilizando os exemplos dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, empréstimo de um livro para figurar numa exposição bibliográfica, ou de um automóvel para certa viagem - logo que se esgote o tempo de duração da exposição e esta seja encerrada, ou a viagem termine.

Também o Acórdão do STJ de 15.12.2011 (Relator, Salazar Casanova), trata esta questão ao determinar que “quando a coisa é entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para um determinada finalidade, não a utilização da coisa em si. Emprestar a vivenda para a realização de uma festa constitui comodato para uso determinado, mas não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo da referida vivenda para habitação. Por isso, não será ao abrigo do uso determinado da coisa que ficará impedido o comodante de exigir a restituição ad nutum nos termos do artigo 1137.º/2 do Código Civil”. E, “o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que não se pode considerar como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai durar, ou seja, um uso genérico e abstracto que pode subsistir indefinidamente, pois que, de contrário, se atingiria a própria noção do contrato dada pelo artigo 1129 do Código Civil, de que faz parte a obrigação de restituir a coisa entregue, o que revela o carácter temporal do uso”.

Assim, a ocupação ilegítima do imóvel tão prolongada no tempo, quando foi estipulado um uso determinado e um tempo certo para a restituição do imóvel, teve repercussões em termos patrimoniais para a Demandante, uma vez que com a evolução do sector agrícola e industrial na região Oeste, perdeu a possibilidade de obtenção de rendimentos através do arrendamento do seu imóvel, como era sua pretensão.

Do que fica dito, desde logo resulta que a Demandante, ao peticionar a restituição do imóvel devoluto, isto é, a entregar o mesmo livre e devoluto e a atribuição de indemnização no valor de €2.000,00 a título de danos patrimoniais pela possibilidade de a Demandante ter obtido rendimentos, dada sua intenção de arrendar o imóvel em causa, e no valor de €450,00 a título de danos não patrimoniais, totalizando a quantia de €2.450,00, não excede os limites impostos pela boa-fé. O que acarreta a procedência do peticionado de exigir a cessação do contrato do comodato, ou seja, a entrega livre e devoluta do imóvel referido, assim como o montante pecuniário peticionado, quer a indemnização patrimonial, quer a não patrimonial.

A possibilidade de a Demandante ter podido obter rendimentos com o hipotético arrendamento do imóvel não constitui um mero sonho/ideia ou especulação, tem substância. A mesma se tornou impossível. Não é um dano presente, no sentido de estar concretizado no momento da fixação da indemnização, nem um dano futuro por não se enquadrar na definição do n.º 2 do art. 564º do Código Civil. A perda de chance/oportunidade só pode ser qualificada de dano futuro mas eventual ou hipotético e traduz-se no malogro da possibilidade de obter uma vantagem ou de evitar uma desvantagem. Assim, a mera possibilidade consubstancia um bem jurídico tutelável. Ora, como elucida o Acórdão do de 10.09.2013 do TRL, sem certezas ou verdades absolutas, não sendo possível averiguar o valor exato dos danos, o Tribunal julgará de acordo com a equidade (art. 566º, n.º 3 do CC), de acordo com a especificidade do caso concreto, para avaliar/quantificar em dinheiro a referida perda da possibilidade. A este propósito, o critério objetivo e valor avançado (€2.000,00) pela Demandante para fixar a indemnização ao caso, considera-se adequada e “razoável”.

Ma além da referia perda de chance, há ainda que considerar danos morais, por hoje ser pacífico serem também aplicáveis quando a responsabilidade é contratual, máxime numa situação como esta, gerada pelo Demandado, violando os deveres de lealdade, deveres de consideração com a pessoa e património da outra parte.

Ficou provado que a situação do imóvel causou uma grave preocupação e insegurança à Demandante, na medida do tempo convencionado se encontrar largamente ultrapassado, circunstâncias da ocupação, não tendo invocado qualquer facto justificativo para a não entrega, a conduta do comodatário e o facto do portão do armazém ficar, por vezes aberto, sendo o imóvel confinante ao prédio da sua residência. A doutrina e jurisprudência assumem, a este propósito que “devem considerar-se graves os que espelham uma dor, angústia, desgosto ou sofrimento em termos de resignação” (Ac. TRC de 5.06.1979). Trata-se de reparar mais do que indemnizar, e de reprovar a conduta do agente, nesta perspetiva Antunes Varela. Assim, considera-se adequada, nos termos do art. 496º e 494º do CC, a quantia peticionada pela Demandante a este título (€450,00).

Não tendo o Demandado cumprido a sua obrigação de restituição findo o prazo convencionado, largamente ultrapassado, nem tendo alegado qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito invocado pela Demandante, tem esta direito a exigir judicialmente a restituição da coisa emprestada (art. 1137º CC).

Conclui-se, assim, pela procedência da presente ação, na totalidade, no valor total peticionado (€2.450,00).


DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos invocados, julgando a presente ação totalmente procedente, porque provada, decido condenar o Demandado a:

1. Entregar completamente livre e devoluto, de pessoas e bens, o imóvel do prédio urbano sito na Rua …, Sapeiros, na freguesia de Alfeizerão, Concelho de Alcobaça, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …;

2. Pagar à Demandante a quantia de €2.450,00 (dois mil e quatrocentos e cinquenta euros) a título indemnizatório, relativa aos danos patrimoniais e danos não patrimoniais peticionados.

Custas do processo: €70, a suportar pelo Demandado.

Contudo, nos termos do art. 21º do CPC, ex vi do art. 63º da Lei nº78/2001, havendo Defensor Oficioso de ausente, trata-se de uma situação processualmente idêntica à da realizada por Magistrado do MP.

Assim, atento a alínea l) do nº1 do art. 4 do R.C.J aplicável a ausentes e incertos quando representados pelo Ministério Público ou por Defensor Oficioso, conclui-se pelo regime respetivo de isenção de custas.

Notifique o Ministério Público do teor da sentença, de acordo com o n.º 3 do Art. 60º da LJP.

Em relação à Demandante, proceda-se ao reembolso devido (art. 9º da Portaria nº 1456/2001, de 28 de dezembro).

Esta sentença foi proferida e notificada às partes nos termos do disposto no art. 60º da LJP.

Julgado de Paz do Oeste, Bombarral, 20 de Dezembro de 2018

(processado informaticamente pela signatária)

A Juíza de Paz


(Elena Burgoa)