Sentença de Julgado de Paz
Processo: 605/2017-JPSNT
Relator: SOFIA CAMPOS COELHO
Descritores: INCUMPRIMENTO CONTRATUAL - EMPREITADA - PAGAMENTO DE PREÇO
Data da sentença: 04/27/2018
Julgado de Paz de : SINTRA
Decisão Texto Integral: Demandante: A
Mandatário: Sr. Dr. B

Demandado: C.
Mandatário: Sr. Dr. D


RELATÓRIO:
A demandante, devidamente identificada nos autos, intentou contra o demandado, também identificado nos autos, a presente ação declarativa de condenação, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 11.622,28 (onze mil seiscentos e vinte e dois euros e vinte e oito cêntimos), acrescida de juros de mora. Para tanto, alegou os factos constantes do requerimento inicial, de folhas 1 a 4 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, alegando, em síntese, que o demandado a contratou para realizar obras de construção civil em imóvel seu, não tendo o demandado procedido ao pagamento de seis faturas (uma parcialmente paga), que junta aos autos, peticionando a condenação do demandado no seu pagamento. Alega ainda que o demandado “nunca cumpriu qualquer cláusula do contrato, quer fosse administrativa, quer fosse de compromisso, (…) incumprimento financeiro”. Juntou os documentos de fls. 5 a 13, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
***
Regularmente citado, o demandado contestou (de fls. 19 a 27 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas), aceitando a contratação da demandante para continuação de uma obra de construção de uma moradia unifamiliar, a qual a demandante não executou na totalidade, por ter abandonado a obra. Alega que a demandante faturou-lhe trabalhos não executados e que não lhe enviada os extratos de conta, apesar dos seus vários pedidos; alega ainda que em 11 de novembro de 2015 a demandante enviou-lhe uma comunicação eletrónica a referir encontrar-se em dívida a quantia de € 15.996,14, esclarecendo que a “este valor serão deduzidos os custos de faturação”, tendo o demandante pago a quantia total de € 7.500 (em 13, 17 e 18 de novembro de 2015), mas que nunca lhe foram reduzidos os referidos custos de faturação, nem foram emitidas notas de crédito. Por fim, alega que, por a demandante ter abandonado a obra, em 17 de fevereiro de 2017 rescindiu o contrato invocando justa causa. Termina formulando pedido reconvencional, de condenação da demandante no pagamento de indemnização no montante total de € 10.000 (dez mil euros), por incumprimento contratual. Juntou procuração forense e 10 documentos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
***
A demandante afastou a mediação, pelo que foi marcada data para realização da audiência de julgamento, tendo as partes, e mandatários, sido devidamente notificados.
***
Foram realizadas cinco sessões da audiência de julgamento, na presença das partes, e mandatários, tendo a Juíza de Paz procurado sempre conciliar as partes, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artº 26.º, da LJP, diligência que nunca foi bem sucedida.
Foram ouvidas as partes, nos termos do disposto no art.º 57.º da LJP, e realizada a audiência de julgamento, com observância do formalismo legal, como resulta das atas a fls. 61, 132 e 133, 179 a 182, 187 e 188 e 189 dos autos, tendo sido junto aos autos procuração forense e vários documentos e ouvidas as testemunhas apresentadas por ambas as partes.
Na sessão da audiência realizada em 21 de fevereiro de 2018, foi proferido despacho, pelo qual o tribunal, após dar a palavra à parte demandante para se pronunciar sobre o pedido reconvencional, não admitiu a reconvenção apresentada, por inadmissível (cfr. ata de fls. 132 a 133).
Na sessão da audiência realizada em 8 de março de 2018, foi proferido despacho a fixar à causa o valor de € 11.622,28 (onze mil seiscentos e vinte e dois euros e vinte e oito cêntimos) - (cfr. ata de fls. 179 a 182).
***
O Julgado de Paz é competente em razão do valor, da matéria e do território.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade jurídica e são legítimas.
Não existem nulidades ou exceções de que cumpra conhecer, nem questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
***
FUNDAMENTAÇÃO – MATÉRIA DE FACTO
Com interesse para a decisão da causa, ficou provado que:
1 – A demandante dedica-se à construção civil.
2 – Em data não apurada do ano de 2013 o demandado acordou com a demandante que continuasse os trabalhos de construção de uma moradia unifamiliar, sita na Rua XXXXXXX, Rio de Mouro, Concelho de Sintra, propriedade do demandado, obra que já tinha o Alvará de construção a fls. 65 dos autos e cuja construção já estava iniciada.
3 – Tendo sido a demandante que, já no decorrer do ano de 2013, diligenciou a prorrogação da licença de construção (Doc. fls. 69 a 83 dos autos).
4 – Os trabalhos de construção civil iniciaram-se em abril de 2014, tal como consta do plano de trabalhos efetuado pela demandante a fls. 68 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos do qual a obra terminaria em setembro de 2014.
5 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a factura n.º 1/19, de 1 de agosto de 2014, referente ao auto n.º 4 de trabalhos efetuados na obra em julho de 2014, no montante de € 9.320,28 (nove mil trezentos e vinte euros e vinte e dois cêntimos) – Doc. fls. 5.
6 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a factura n.º 1/31, de 5 de setembro de 2014, referente ao auto n.º 5 de trabalhos efetuados na obra em agosto de 2014, no montante de € 7.424,67 (sete mil quatrocentos e vinte e quatro euros e sessenta e sete cêntimos) – Doc. fls. 6.
7 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a factura n.º 1/34, de 1 de outubro de 2014, referente ao auto n.º 6 de trabalhos efetuados na obra em setembro de 2014, no montante de € 1.308,93 (mil trezentos e oito euros e noventa e três cêntimos) – Doc. fls. 7.
8 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a carta da demandante dirigida ao demandado, e por este recebida, datada de 27 de novembro de 2014, na qual a primeira acusa o segundo de incumprimento de diligências administrativas (entrega de documentação e material), responsabiliza-o pelas interrupções da obra, solicita elaboração de plano de pagamento, solicitando resposta urgente sob pena de ser obrigada a proceder em conformidade. – Docs. fls. 84 a 87.
9 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a comunicação do demandado de 9 de dezembro de 2014, a fls. 151 e 152 dos autos, respondendo à carta da demandante referida no número anterior, refutando os argumentos constantes dessa carta.
10 – Em dia não apurado a demandante abandona a obra, não mais nela comparecendo para ultimar os trabalhos de construção civil, sendo o último auto de medição da obra (o n.º 6) dos trabalhos efetuados em setembro de 2014, que foi faturado pela fatura a fls. 115 (fatura n.º XXXX), datada de 1 de outubro de 2014.
11 – A demandante deixou material vário na obra, nunca os tendo ido retirar.
12 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a factura n.º 1/59, de 22 de dezembro de 2014, referente à direção de obra nos meses de outubro, novembro e dezembro de 2014, no montante de € 922,50 (novecentos e vinte e dois euros e cinquenta cêntimos) – Doc. fls. 8.
13 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a factura n.º XXX, de 29 de janeiro de 2015, referente à direção de obra no mês de janeiro de 2015, no montante de € 307,50 (trezentos e sete euros e cinquenta cêntimos) – Doc. fls.9.
14 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a factura n.º 1/65, de 26 de janeiro de 2015, referente à direção de obra no mês de fevereiro de 2015, no montante de € 307,50 (trezentos e sete euros e cinquenta cêntimos) – Doc. fls.10.
15 – Em 11 de novembro de 2015 a demandante remete ao demandado a comunicação eletrónica a fls. 32 dos autos, que aqui por integralmente reproduzida, na qual refere que se “encontra em dívida a quantia de € 15.996,14 (…) a este valor serão deduzidos os custos de faturação existente respeitante à responsabilização da Empresa A, manutenção e trabalhos executados no âmbito da direção de obra correspondente a 6 meses, sendo que esta proporcionalidade resulta diretamente de seis meses de obra executada”.
16 – Dá-se aqui por integralmente reproduzido o documento a fls. 33 dos autos: transferência bancária efetuada em 13 de novembro de 2015 por E a favor da demandante no montante de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros), com o descritivo “sede nova E”.
17 – Dá-se aqui por integralmente reproduzido o documento a fls. 34 dos autos: transferência bancária efetuada em 17 de novembro de 2015 por E a favor da demandante no montante de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros), com o descritivo “sede E”.
18 – Dá-se aqui por integralmente reproduzido o documento a fls. 35 dos autos: transferência bancária efetuada em 18 de novembro de 2015 por E a favor da demandante no montante de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros), com o descritivo “A sede E”.
19 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a carta a fls. 37 dos autos, datada de 16 de fevereiro de 2017, remetida pelo demandado à demandante a resolver o contrato, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2017, com invocação de justa causa.
20 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a conta corrente elaborada pela demandante, junta aos autos pela mesma na audiência realizada em 21 de fevereiro de 2018 (Doc. fls. 96), bem como todas as faturas e notas de crédito de suporte à mesma, de fls. 97 a 103, 107 a 111, 113 a 116, 118 a 128 dos autos, emitidas a favor do demandado e datadas do período 1 de julho de 2013 e 5 de novembro de 2015, sendo, para nós de especial relevância a fatura a fls. 107, n.º 1/5, de 30 de abril de 2014, referente ao auto n.º 1 de trabalhos efetuados na obra em abril de 2014.
21 – Dá-se aqui por integralmente reproduzidas a faturas a fls. 112 e 117 dos autos, emitidas a favor de E, ª em 1 de julho de 2014 e 30 de dezembro de 2014, referente a trabalhos de preparação de escritório e oficina de trabalho e reparação de equipamentos.
22 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a conta corrente do demandado elaborada pela demandante, junta aos autos pela mesma em 7 de março de 2018 (Doc. fls. 141).
23 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a conta corrente de E elaborada pela demandante, junta aos autos pela mesma em 7 de março de 2018 (Doc. fls. 142).
24 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a conta corrente elaborada pelo demandado, junta aos autos pelo mesmo na audiência realizada em 8 de março de 2018 (Doc. fls. 175 e 176).
25 – Dá-se aqui por integralmente reproduzida a fatura a fls. 183 dos autos, emitida a favor E em 14 de dezembro de 2012, referente a trabalhos de pintura e manutenção elétrica.
26 – Dão-se aqui por integralmente reproduzidas as comunicações eletrónicas do demandado, a fls. 184, 185 e 186 dos autos, de 7 de janeiro de 2013 e 29 de abril de 2013, a primeira a solicitar emissão de fatura a favor da referida Eª e o segunda a solicitar emissão de nota de crédito da fatura referida no n.º 23 supra, “pois como sabes o senhorio vai fazer ele as obras, portanto não vou avançar com este trabalho”.
27 – Dão-se aqui por integralmente reproduzidas as fotografias de fls. 62 a 64 verso dos autos, e 154 a 161 dos autos, referentes ao estado da obra desde o momento em que a demandante iniciou os trabalhos em obra até ao momento que os findou, não se avalisando as datas apostas nesses documentos.
28 – As obras de construção da moradia unifamiliar foram concluída por outro empreiteiro.
Não ficou provado:
Não se provaram mais factos com interesse para a decisão da causa, designadamente:
1 – O demandado solicitou celeridade à demandante para iniciar a obra, por a licença de construção se encontrar perto do final do prazo concedido.
2 – A empreitada teve início em janeiro de 2013 ou em qualquer data anterior.
3 – A demandante solicitou ao demandado a assinatura de um contrato de empreitada, o qual este nunca entregou.
4 – Quais as clausulas negociadas, quer administrativas, quer financeiras.
5 – Desde a negociação da empreitada ficou estabelecido haver um adiantamento financeiro, que o demandado aceitou e nunca pagou.
6 – Todos os pagamentos foram sempre feitos após insistências da demandante.

Motivação da matéria de facto:
Para fixação da matéria fáctica dada como provada concorreram os factos admitidos (cfr. atas das audiências de julgamento realizadas em 21 de fevereiro, 8 de março e 3 de abril, de 2018), os documentos juntos aos autos, e o depoimento das testemunhas apresentadas por ambas as partes.
Cumpre esclarecer, que o depoimento das testemunhas apresentadas a este tribunal foi unânime em dois pontos: que a obra foi entregue à demandante já iniciada, sendo que a demandante iria acabar a obra, o que não aconteceu, pois abandonou a obra. Também foram unânimes a indicarem que o legal representante da demandante e o demandado se desentenderam, quanto ao modo como a obra estava a ser executada, bem como ao modo da sua faturação e trabalhos efetivamente executados. Já quanto a datas de execução da obra e razões do abandono, as testemunhas apresentada por cada uma das partes divergiam, cada uma aderindo à versão fática defendida pela parte que as apresentava.
Quanto à data fixada no ponto 2 de factos provados, a mesma resulta do documento a fls. 69 a 83 dos autos, do qual resulta que, pelo menos nesse ano, a demandante iniciou as diligências burocráticas para executar a obra.
Quanto à data fixada, no ponto 4 de factos provados, como data de início dos trabalhos, a mesma resulta do depoimento unânime das testemunhas apresentada pelo demandado e do plano de trabalhos da obra a fls. 68 dos autos, junto aos autos pela própria demandante, bem como a comunicação eletrónica da demandante a fls. 143 dos autos, pela qual, em 31 de março de 2014, o agendamento do início da obra. Esclareça-se que essa data só não foi corroborada pelas testemunhas da demandante F e G, os quais, porém, não nos apresentaram qualquer explicação/justificação da indicação de outra data.
Quanto à data fixada no ponto 10 de factos provados, a mesma resulta depoimento das testemunhas apresentadas pela demandante F e G e das testemunhas apresentadas pelo demandado H e I. Neste facto, foi também relevante para a criação da nossa convicção o teor do documento a fls. 115 (fatura n.XXX, de 1 de outubro de 2014, referente ao último auto – n.º 6 – dos trabalhos efetuados faturado nessa data).
Esclareça-se ainda, quanto ao depoimento da testemunha J, administrativo da demandante, que colocámos à testemunha várias questões sobre os extratos de contas correntes a fls. 141 e 142, não tendo o mesmo conseguido nos esclarecer das questões colocadas, referindo que, na altura da obra, quem emitia faturas e/ou recibos era a Arquiteta Rita, não a testemunha, não sabendo quem, na altura, enviou as faturas e/ou os recibos ao demandado. Sempre que perguntávamos à testemunha se determinado trabalho faturado tinha sido executado, a mesma não sabia, sabendo somente o que tinha sido faturado e pago, ou não, consoante resultasse da conta corrente a fls. 141. Qualquer pergunta adicional que lhe fazíamos sobre essa conta corrente, cuja resposta não resultasse da análise da mesma, respondia não saber. Também à pergunta como justifica a diferença entre o montante peticionado nos autos como em dívida (€ 11.622,28) e o montante em dívida na conta corrente do demandado a fls. 141 (€ 19.151,14) refere que devem ter sido descontos, não nos conseguindo dar qualquer explicação adicional – respondendo sempre não saber – designadamente a que descontos se referia, uma vez que dessa conta corrente constavam várias notas de crédito e se os descontos a que se referia eram os espelhados nessas notas de crédito.
Quanto à testemunha K, a mesma disse que na altura quem emitia as faturas, recibos e notas de crédito era a Arquiteta Rita. Quanto ao montante em dívida (que refere ser cerca de € 11.600), refere que “julga estarem refletidos na contabilidade da demandante”. Ao ser-lhe exibido a conta corrente a fls. 141 (da qual resulta um montante em dívida de cerca de € 19.000) referiu não saber explicar. Quanto à comunicação eletrónica a fls. 32, que subscreveu, referiu que, na altura, pediu ao legal representante da demandante que a informasse qual o montante em dívida, tendo o mesmo a informado do valor que colocou nesse mail; mais disse não saber em concreto o que é que demandante e demandado acordaram quanto aos seis meses de direção da obra, referido nesse mail. Confrontada com várias faturas juntas aos autos no montante de € 307,50, não nos conseguiu esclarecer as nossas questões – v.g. se os valores da direção de obra eram esses.
A testemunha da demandante F, trabalhador da demandante que trabalhou na obra, quando por nós inquirido sobre datas concretas de termo da obras ou duração da mesma, disse não saber, recordando-se somente que teve início depois da férias de 2012, não nos conseguindo explicar como sabe essa data e não as outras que o tribunal lhe perguntara.
A testemunha da demandante G, trabalhador da demandante que trabalhou na obra, disse que a obra teve início em 2012 e termo em agosto/setembro de 2014.
Não foram provados quaisquer outros factos alegados pelas partes, dada a ausência de mobilização probatória credível, que permitisse ao tribunal aferir da veracidade desses factos, após a análise dos documentos juntos aos autos e da audição das partes e das testemunhas apresentadas.
Os documentos a que não referimos acima não foram considerados na formação da nossa convicção, por se encontrarem descontextualizados, e para nós imperceptível a razão da sua junção aos autos, atentos os factos alegados.
***
FUNDAMENTAÇÃO – MATÉRIA DE DIREITO
A questão a resolver é daquelas que, se houvesse maior espírito de compreensão e tolerância, teria sido resolvida pela via conciliatória. Aliás, dúvidas não temos que a mediação e/ou conciliação teria sido o meio ideal para, no caso em apreço, se conseguir conciliar as partes e solucionar o litígio. Contudo, uma vez que as partes não perfilharam esse caminho há que apreciá-la sob o prisma da legalidade.
Debruçando-nos, assim, nesse prisma, sobre o caso em juízo.
Comecemos por relembrar que um dos princípios basilares da lei processual civil portuguesa é o princípio do dispositivo. O artigo 5.º do Código de Processo Civil, que corresponde com algumas alterações aos artigos 264.º e 664.º do anterior Código, define em sede de matéria de facto o que constitui o ónus de alegação das partes e como se delimitam os poderes de cognição do tribunal. Assim, nos termos do n.º 1 do citado art.º 5.º, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. Todavia, o n.º 2 acrescenta que além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. Resulta desta norma que o tribunal deve considerar na sentença factos não alegados pelas partes. Não se trata, contudo, de uma possibilidade sem limitações. Desde logo, não cabe ao juiz supor ou conceber factos que poderão ter relevo, é necessário que estejamos perante factos que resultem da instrução da causa, isto é, factos que se tenham aflorado no processo através dos meios de prova produzidos e, portanto, possuam já alguma consistência prática, não sejam meras conjeturas ou possibilidades abstratas. Por outro lado, o juiz só pode considerar factos instrumentais e, quanto aos factos essenciais, aqueles que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado. E isto é assim porque mesmo no novo Código de Processo Civil o objeto do processo continua a ser delimitado pela causa de pedir eleita pela parte (artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), 581.º e 615.º, n.º 1, alínea d), segunda parte) e subsistem ainda as limitações à alteração dessa causa de pedir (artigos 260.º, 264.º, 265.º). A grande diferença em relação ao anterior Código de Processo Civil é que a consideração dos factos essenciais que sejam complemento ou concretização dos alegados não depende já de requerimento da parte interessada nesse aproveitamento para que ele aconteça, como exigia o artigo 264.º, n.º 3, daquele diploma. Presentemente, o juiz pode considerá-los mesmo oficiosamente, sem requerimento de nenhuma das partes, bastando que a parte tenha tido a possibilidade de se pronunciar sobre tais factos.
Por outro lado, dos factos dados como provados retira-se que entre as partes foi celebrado uma modalidade do contrato de prestação de serviços, ou seja, um contrato de empreitada, “(…) o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço” (cfr. artigo 1207º, do Código Civil - C.C.), por via do qual a demandante obrigou-se a realizar as obras de construção do imóvel identificado no número 2 de factos provados, executando os inerentes trabalhos de construção civil, mediante o pagamento de um preço (cfr. artigos 1207º e 1211º do Código Civil). É obrigação do empreiteiro – aqui demandante – executar a obra em conformidade com o convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato (cfr. art.º 1.208º do Código Civil), sendo obrigação do dono da obra – aqui demandado – pagar o preço nos termos acordados. E, se a obra apresentar defeitos, o dono da obra tem o direito de exigir a eliminação dos defeitos (cfr artigo 1221.º do C.C.), assim como e de exigir indemnização pelos prejuízos causados (cfr artigo 1223.º do C.C.), para o que deve denunciar os defeitos dentro do prazo de 30 dias após o seu conhecimento (cfr. art.º 1220.º do Código Civil) e exercer o seu direito dentro do ano seguinte à denúncia (cfr. art.º 1224.º do mesmo Código). Dos factos provados resulta também que a obra acordada não foi concluída e, apesar de não terem ficar apuradas as razões do abandono da obra, a paragem dos trabalhos e o subsequente abandono da obra, tem que ser interpretado como manifestação da intenção de não cumprir a sua obrigação contratual, de não realização da prestação a que a demandante estava vinculada, consequentemente incumprindo o contrato, presumindo-se a sua culpa (cfr. art.º. 406º, 798.º e 799.º do Código Civil). Por outro lado, e apesar dos vários esforços da demandante no sentido de provar o preço acordado, a verdade é que o mesmo não foi apurado – se é que poderia ser, atento o disposto no art.º 5.º do C.P.C.
Aqui aportados, olhemos para o caso concreto:
Iniciemos a análise, explicando a razão do nosso esclarecimento inicial acima referido. Os factos articulados no requerimento inicial são parcos: a demandante alega que celebrou com o demandado um contrato de empreitada, que o demandado incumpriu, encontrando-se em dívida a quantia peticionada (€ 11.622,28), titulada pelas seis faturas identificadas no art.º 5.º do seu articulado. Ao ser notificado do teor da contestação, e no decorrer das várias sessões da audiência de julgamento, foi juntando aos autos vários documentos com vista a sanar a parca alegação fáctica do requerimento inicial. Juntou aos autos as faturas que alega ter emitido a favor do demandado e de sociedade terceira, bem como três extratos de conta, dois do demandado – a fls. 96 e, posteriormente, a fls. 141 – e um da sociedade terceira, a fls. 142 dos autos.
Esclareça-se desde já que a referida sociedade terceira (E) não se confunde com o demandado, mesmo na hipótese (que não admitimos, por ausência total de prova nesse sentido) de se tratar de sociedade da qual o demandado é/foi sócio e/ou gerente. São pessoas jurídicas diferentes. Por outro lado, não foi alegada a celebração de qualquer negócio com essa sociedade ou facto que impute à mesma qualquer responsabilidade na empreitada em análise.
Com a junção desses documentos aos autos, a demandante pretendia fazer prova do preço acordado para a empreitada ou, pelo menos, do preço faturado. Contudo não o logrou fazer. Quanto ao preço acordado nenhuma das partes o alegou, nem tão pouco foi produzida qualquer prova desse preço, já que nenhum documento junto aos autos se refere a esse preço, nem tão pouco nenhuma das testemunhas apresentadas depôs sobre esse facto.
Quanto ao preço faturado pela demandante, analisemos os documentos juntos aos autos:
Fazendo o somatório de todas as faturas juntas aos autos emitidas em nome do demandado, em concreto as a fls. 97 a 103, 107 a 111, 113 (repetida a fls. 5), 114 (repetida a fls. 6), 115 (repetida a fls. 7), 116 (repetida a fls. 8), 118 (repetida a fls. 9), 119 (repetida a fls. 10) e 120 a 127 dos autos, verificamos que o seu somatório ascende a € 56.156,18 (cinquenta e seis mil cento e cinquenta e seis euros e dezoito cêntimos), e descontando-se a nota de crédito a fls. 128 o seu somatório ascende a € 54.311,18 (cinquenta e quatro mil trezentos e onze euros e dezoito cêntimos).
Por outro lado, fazendo o somatório de todas as faturas juntas aos autos emitidas em nome da sociedade terceira (E), em concreto as a fls. 112, 117 e 183 dos autos, verificamos que o seu somatório ascende a € 23.799,17 (vinte e três mil setecentos e noventa e nove euros e dezassete cêntimos).
Assim, de acordo com as faturas juntas aos autos, teríamos um total faturado ao demandante e à referida sociedade terceira de € 79.955,35 (setenta e nove mil novecentos e cinquenta e cinco euros e trinta e cinco cêntimos), ou, considerando a supra referida nota de crédito, € 78.110,35 (setenta e oito mil cento e dez euros e trinta e cinco cêntimos).
Porém, não é nenhum desses montantes que resulta dos extratos de contas, ou contas correntes, que a demandante juntou aos autos. Vejamos:
A) Documento a fls. 96: montante total de faturação: € 70.224,79 (setenta mil duzentos e vinte e quatro euros e setenta e nove cêntimos). Total de pagamentos: € 58.602,51 (cinquenta e oito mil seiscentos e dois euros e cinquenta e um cêntimos).
B) Documento a fls. 141: montante total de faturação (descontando-se a nota de crédito aí referida): 53.696,18 (cinquenta e três mil seiscentos e noventa e seis euros e dezoito cêntimos). Total de pagamentos (descontando-se a nota de crédito aí referida): € 34.545,04 (trinta e quatro mil quinhentos e quarenta e cinco euros e quatro cêntimos).
C) Documento a fls. 142: montante total de faturação (descontando-se a nota de crédito aí referida): 23.799,17 (vinte e três mil setecentos e noventa e nove euros e dezassete cêntimos). Total de pagamentos (descontando-se a nota de crédito aí referida): € 23.799,17 (vinte e três mil setecentos e noventa e nove euros e dezassete cêntimos).
Daqui resulta que em 21 de fevereiro de 2018, data em que a demandante juntou aos autos o documento a fls. 96, a demandante veio declarar que o montante faturado ascendia a € 70.224,79 (setenta mil duzentos e vinte e quatro euros e setenta e nove cêntimos) e o pago a € 58.602,51 (cinquenta e oito mil seiscentos e dois euros e cinquenta e um cêntimos); porém, dias depois, a 8 de março de 2018, esses montantes já são diferentes (isto aceitando-se que as contas a fls. 141 e 142 dos autos se referem à mesma obra e o que fazemos somente para mero exercício aritmético): o montante faturado já ascendia a € 77.495,35 (já se imputando as notas de crédito aí referidas) e o pago a € 58.344,21 (também já se imputando as notas de crédito aí referidas).
Importa referir que o extrato de conta a fls. 141 dos autos inicia com uma saldo inicial do cliente no valor de € 9.913,86, referente às faturas X, X, X X, X e X, cuja soma ascende a € 10.528,86, sendo que este tribunal desconhece o teor da aí referida nota de crédito 5
E, mesmo se considerássemos irrelevante a existência de faturação a favor de duas entidades jurídicas diferentes, que não consideramos, a diferença dos valores declarados pela demandante nos autos como faturados é grande e deve-se, principalmente, à demandante faturar ao demandado e entidade terceira como se a mesma pessoa se tratasse, mas não só a esse facto, como resultas das somas acima realizadas.
Por outro lado, ao longo de todo o processo, e principalmente do decorrer das várias sessões da audiência de discussão e julgamentos, verificámos o reiterado intuito da demandante em provar os montantes faturados; já não do cumprimento da relação jurídica subjacente, ou seja, da efetiva realização da obra e inerentes trabalhos de construção civil, que justificavam, e legitimavam, a emissão das faturas. E esta questão ganha relevo quando a demandante aceita que abandonou a obra, não tendo consequentemente executando todos os trabalhos acordados, os quais também não foram alegados, nem provados.
E, analisando o extrato de conta elaborado pelo demandado, a fls. 175 e 176 dos autos, verificamos que para o demandado o montante faturado ascende a € 58.488,65 (cinquenta e oito mil quatrocentos e oitenta e oito euros e sessenta e cinco cêntimos) e o pago a € 58.602,51 (cinquenta e oito mil seiscentos e dois euros e cinquenta e um cêntimos). O montante pago é, assim, o mesmo do declarado pela demandante no documento a fls. 96 e aceite pela demandante (cfr ata da audiência de julgamento de dia 8 de março de 2018). Quanto ao montante faturado a grande diferença encontra-se no facto do demandado não contabilizar as faturas de direção de obra, a fls. 97 a 102 e 118 a 127 dos autos, e aceitar como referente à obra a fatura a fls. 117 dos autos, emitida a favor de sociedade terceira. Quanto à faturação dos serviços de direção de obra, dúvidas não temos que demandante e demandado acordaram o não pagamento desses durante o período correspondente a seis meses, como resulta do email de 11 de novembro de 2015, a fls. 32 dos autos, que corresponde à fatura a fls. 97 dos autos e nota de crédito a fls. 128. Mas quanto aos restantes meses faturados a esse título, já nada resultou provado.
E, aqui aportados, tendo ficado provado que a demandante faturou ao demandando a quantia de € 56.156,18 (cinquenta e seis mil cento e cinquenta e seis euros e dezoito cêntimos) – € 54.311,18 (cinquenta e quatro mil trezentos e onze euros e dezoito cêntimos) descontando-se a nota de crédito a fls. 128 – e tendo o demandado pago à demandante a quantia de € 58.602,51 (cinquenta e oito mil seiscentos e dois euros e cinquenta e um cêntimos), – resta-nos concluir pela improcedência do pedido.
Por último, cumpre analisar o pedido do demandado de condenação da demandante como litigante de má fé por, na sessão da audiência de julgamento realizada em 3 de abril de 2018, juntar aos autos documento que nada tem a ver com a obra objeto da petição inicial, por se referir a outra obra, a realizar da sede da empresa E. Mais alega que, conforme documento que juntou (fls. 185 e 186), pediu à demandada a emissão de uma nota de crédito dessa fatura, por essas obras irem ser realizadas pelo senhorio da empresa E.
O demandante pronunciou-se pela improcedência da condenação peticionada, por não ter sido indicada qualquer uma das causas dessa condenação previstas na previsão legal, alegando que a fatura então junta está emitida em nome da entidade que fez os pagamentos comprovados de fls. 33 a 35 dos autos. Mais disse que o legal representante da demandante desconhece o documento junto aos autos pelo demandado a fls. 185 e 186.
Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou, protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (art.º 542.º do Código de Processo Civil). Assim, a litigância de má fé é censurável se se deduzir de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não se devia ignorar e se se alterar a verdade dos factos ou omitir de factos relevantes para a descoberta da verdade (artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil). Por outro lado, é censurável por omissão grave do dever de cooperação, do uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem sério fundamento, o trânsito de julgado da decisão (artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas c) e d), Código de Processo Civil).
E, mesmo após a reforma processual de 1995 (que alargou o dolo no conceito de litigância de má-fé a condutas processuais gravemente negligentes) deve continuar-se a ser cauteloso, prudente e razoável na condenação por litigância de má fé, que só deverá ocorrer quando se demonstre de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com grave negligência, com o fito de impedir ou a entorpecer a ação da justiça.

Ora dos factos assentes resulta que efetivamente na sessão da audiência de julgamento realizada em 3 de abril de 2018, a demandante juntou aos autos a fatura a fls. 183 dos autos – datada de 14 de dezembro de 2012, o que é para nós incompreensível e imperceptível – alegando que, por lapso seu não a juntou na sessão anterior da audiência de julgamento, já que tal documento era referido no documento de fls. 142. -
É um facto que na sessão anterior da audiência de julgamento a demandante tinha junto aos autos as faturas referenciadas nesse documento, exceto a que, nessa sessão, estava a juntar. É um facto, ao qual já nos referimos várias vezes, que essa fatura está emitida em nome de sociedade terceira, mas também o é que as faturas a fls. 112 e 117 dos autos também os estão, e não foi pedida a condenação da demandante como litigante de má fé por as ter junto.
Contudo, nestes autos o comportamento inadmissível da demandante foi um só: querer provar factos não alegados, pretendendo suprir a falta de alegação com a junção de documentos aos autos. Esta sua conduta (da parte, não do mandatário) perturbou o normal decorrer dos trabalhos nas várias sessões da audiência de julgamento. Censuramos o comportamento da demandante, aqui ficando a advertência. Porém, entendemos que a sua conduta não foi praticada com negligência grave, e sim mero desconhecimento da lide forense, convencida de que tinha razão, pelo que improcede a pretensão de a condenar como litigante de má fé.

***
DECISÃO
Em face do exposto, julgo a presente ação improcedente, por não provada, e consequentemente absolvo o demandado do pedido e absolvo a demandante do pedido de condenação em litigância de má fé.
***
CUSTAS
Nos termos da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro, declaro a demandante parte vencida, indo condenada no pagamento das custas processuais, que ascendem a € 70 (setenta euros), devendo proceder ao pagamento dos € 35 (trinta e cinco euros) em falta, no Julgado de Paz, no prazo de três dias úteis, a contar da data da notificação desta sentença, sob pena do pagamento de uma sobretaxa diária de € 10 (dez euros) por cada dia de atraso.
Cumpra-se o disposto no número 9 da mesma portaria, em relação ao demandado. ---
***
A presente sentença (processada em computador, revista e impressa pela signatária - artº 18º da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho) foi proferida e notificada à demandante, nos termos do artigo 60º, da referida Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, que ficou ciente de tudo quanto antecede.
Notifique demandado e mandatários das partes.
Registe.
***
Julgado de Paz de Sintra, 27 de abril de 2018
A Juíza de Paz,
______________________________
(Sofia Campos Coelho)