Sentença de Julgado de Paz
Processo: 43/2017-JPFNC
Relator: LUÍSA ALMEIDA SOARES
Descritores: COMODATO
Data da sentença: 05/18/2018
Julgado de Paz de : FUNCHAL
Decisão Texto Integral: Processo n.º 43/2017-JP
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SENTENÇA
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I. RELATÓRIO
A) IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
Demandante: A, NIF ---------, titular do cartão de cidadão n.° --------------, residente no ------------ Funchal.

Demandado: B, titular do cartão de cidadão n.º -------------, residente no -------- Cano, Sousel, Portalegre.
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B) PEDIDO
A Demandante propôs contra o Demandado a presente ação declarativa enquadrada na alínea h) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 78/2001 de 13 de julho, peticionando a sua condenação no valor da reparação do ciclomotor no montante de €434,72 (quatrocentos e trinta e quatro euros e setenta e dois cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais.

Juntou 6 (seis) documentos.
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O Demandado foi declarado ausente, tendo-lhe sido nomeado Defensor Oficioso que citado contestou impugnando e deduzindo matéria de exceção que foi decidida na audiência de julgamento, antes da produção de prova.
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II- SANEAMENTO
Estão reunidos os pressupostos da estabilidade da instância: o Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do objeto, do território e do valor. O processo não enferma de nulidades que o invalidem na totalidade. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas. Não há exceções, nulidades ou quaisquer questões prévias que cumpra conhecer.
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III- VALOR DA AÇÃO
Fixa-se em € 434,72 (quatrocentos e trinta e quatro euros e setenta e dois cêntimos) o valor da presente causa (artigos 296.º, 297.º n.º 1 e 2, 299.º e 306.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 63.º da Lei 78/2001 de 13 de julho, com a redação da Lei 54/2013 de 31 de julho).
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IV- OBJETO DO LITIGIO
O objeto do litígio entre as partes circunscreve-se a apurar da celebração de um contrato de comodato, das condições do mesmo e do seu cumprimento.
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V – QUESTÕES A DECIDIR
Nos presentes autos importa apreciar da celebração de um contrato de comodato de um ciclomotor, em caso afirmativo, se o Demandado cumpriu a sua obrigação e na negativa, quais as consequências daí resultantes.
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VI- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com relevância para a decisão da causa, de acordo com a prova testemunhal e documental carreada para os autos, - sendo que para além dos documentos juntos com o requerimento inicial a Demandante juntou na audiência de julgamento um documento - resultaram os seguintes factos:
1. A Demandante é proprietária do ciclomotor de marca ------, modelo -----, com a matrícula LX, a gasolina, com data de primeira matrícula 24.03.1995.
2. O Demandado era amigo da filha da Demandante, C.
3. Em dezembro de 2015 o Demandado esteve na ilha da Madeira de férias, e uma vez que não tinha meio de transporte próprio pediu à Demandante que lhe emprestasse o ciclomotor referido em 1., ao que esta, pela amizade existente com a filha, acedeu entregando-lho de modo gratuito.
4. Foi acordado entre Demandante e Demandado que o ciclomotor referido em 1. seria por este restituído à Demandante no dia 03.01.2016, data em que aquele viajaria para o continente português.
5. Em data e local não apurados o Demandado sofreu uma queda enquanto conduzia o ciclomotor.
6. No dia 03.01.2016, pelas 20h20, vendo o ciclomotor danificado e uma vez que Demandado se recusava a pagar o arranjo, a Demandante solicitou a presença da polícia de segurança pública no ------- , Funchal, estando também presente o Demandado.
7. Consta do auto de notícia elaborado em 03.01.2016 que o Demandado confirmou ao agente da polícia de segurança publica que que tinha sofrido uma queda com o ciclomotor referido em 1. e que iria pagar os danos, tendo a Demandante proposto um prazo.
8. Em 24.03.2016, a Demandante solicitou um orçamento à oficina de D onde consta uma lista de material para reparação do ciclomotor referido em 1.: 1 carnagem de conta kms, 1 carnagem de trás, 1 vidro farol de trás, 1 pisca de trás direito, 1 pisca de trás esquerdo, 1 manete de travão, 1 punho direito, 1 matrícula, pintura da carnagem da frente e friso de trás direito, assim como 3 horas de mão-de-obra, no valor de €434,72 (quatrocentos e trinta e quatro euros e setenta e dois cêntimos).
9. A Demandante reparou o ciclomotor referido 1.
10. Por carta registada com aviso de receção datada de 04.01.2017 e enviada na mesma data, a Demandante interpelou o Demandado para proceder ao pagamento do valor referido em 8., no prazo máximo de 15 dias.
11. Por várias vezes a Demandante e a sua filha C interpelaram telefonicamente o Demandado para proceder ao pagamento da quantia referida em 8.
12. O Demandado até à data não procedeu ao pagamento da quantia referida em 8.

FACTOS NÃO PROVADOS
13. No dia 03.01.2016, na sequência de uma condução imprudente, o Demandado despistou-se com o ciclomotor da Demandante.
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Os factos dados como provados em 1 a 12 assim foram considerados atendendo à prova documental junta pela Demandante aos autos e à prova testemunhal por si apresentada, E, seu marido e C, sua filha.
Ouvida nos termos do n.º 1 do artigo 26.º da Lei 78/2001 de 13 de julho, a Demandante explicou que a pedido da sua filha C acedeu a emprestar ao Demandado o ciclomotor de que é proprietária para que este pudesse circular na ilha da Madeira enquanto estivesse de férias, o que sucedeu na época de natal, até ao dia 03.01.2016, tendo o Demandado viagem marcada para o continente português no dia seguinte. Que nessa data foi buscar o ciclomotor e que este apresentava muitos danos, sendo que inicialmente o Demandado se recusou a pagar mas que posteriormente, perante a polícia, acedeu a fazê-lo. Que ficou acordado a Demandante enviar o orçamento ao Demandado. Referiu que chegou a ligar-lhe várias vezes, a enviar-lhe carta registada, que falou com o pai do Demandado mas que até à data não lhe pagou qualquer quantia. Esclareceu que quando o ciclomotor lhe foi entregue estava sem matrícula, e se encontrava muito danificado, pelo que teve de ser reparado no mecânico cujo orçamento juntou aos autos e que hoje em dia o mesmo circula, apesar de não estar totalmente reparado por não existirem as peças todas.
Foi ouvido o marido da Demandante, sua testemunha, E que referiu que a mulher emprestou ao Demandado o ciclomotor de que é proprietária a pedido da filha desta, Vera. Segundo lhe foi dito, o Demandado caiu com o ciclomotor tendo-lhe causado vários danos que viu e cujo orçamento junto aos autos a fls. 8 lhe foi exibido e confirmou. Referiu que o ciclomotor precisava de mais material, mas sendo já antigo só seria possível obter as peças mandando-as fazer.
A testemunha, filha da Demandante, C referiu que o Demandado é ex-marido de uma sua amiga e que em dezembro de 2015 veio à Madeira passar cerca de um mês de férias. Que o Demandado pediu à Demandante o ciclomotor emprestado e que esta, por ser um seu amigo, acedeu a fazê-lo, sendo que quando o mesmo lhe foi entregue a depoente não estava na ilha. Referiu que, segundo lhe contaram o Demandado caiu com o ciclomotor à porta de um seu amigo, indo contra uma parede e que se negou a pagar a reparação. Explicou que a nível de chapa, segundo lhe disseram, o ciclomotor estava muito danificado, sobretudo na parte da frente e que não circulava. Que para poder circular a Demandante mandou reparar o ciclomotor na medida do possível uma vez que é o meio de transporte da depoente na ilha. Explicou que chegou a contactar o pai do Demandado, no Alentejo, para que procedesse ao pagamento dos danos mas que nada foi pago até ao momento. Confrontada com o documento de fls. 8, confirmou o orçamento onde estão descritas as peças de que o ciclomotor precisaria para ser reparado, sendo que algumas peças necessárias não estão orçamentadas porque não existiam, sendo que por causa disso uma parte do ciclomotor tem ainda hoje papel de alumínio.
O facto dado como não provado em 13. assim foi considerado atenta a falta de prova pela Demandante a quem ela incumbia. Apesar de se ter apurado que o Demandado sofreu uma queda com o ciclomotor da Demandante e lhe causou danos, não pode concretamente perceber-se se o sinistro ocorreu no dia 03.01.2016, ou se a queda se deveu a uma condução imprudente, atendendo a que nem a Demandante nem as testemunhas ouvidas presenciaram tal facto.
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VII – ENQUADRAMENTO JURÍDICO LEGAL
Com base na matéria de facto provada, cumpre apreciar os factos e aplicar o direito.
A Demandante peticiona a condenação do Demandado no pagamento do montante € 434,72 (quatrocentos e trinta e quatro euros e setenta e dois cêntimos) a título de indemnização por danos patrimoniais.
A presente ação funda-se no alegado incumprimento de uma obrigação por parte do Demandado, enquadrando-se, em termos de competência material deste Tribunal, na al. h), do n.º 1, do artigo 9.º, da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho.
A qualificação jurídica do contrato celebrado entre a Demandante e o Demandado é linear e não suscita dificuldades, tendo a matéria controvertida o seu abrigo legal no estatuído, desde logo, no artigo 1129.º do Código Civil, que dispõe comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir.
O comodato é um contrato que se analisa na entrega pelo comodante ao comodatário de uma coisa móvel ou imóvel, para que se sirva dela e a restitua, podendo ser limitado pelos fins e pelo tempo (prazo certo ou incerto) e tem a sua definição legal e respetiva disciplina nos artigos 1129.º a 1141.º do Código Civil.
Servir-se da coisa quer dizer para que a use; o comodato é um empréstimo para uso para determinado fim ou durante certo tempo, sendo suas caraterísticas essenciais a gratuitidade, precariedade, temporalidade e dever de restituição (neste sentido, entre outros, o Acórdão do STJ de 13.11.2007 (P.º 07A3580), em www.dgsi.pt).
Pinto Oliveira (Princípios de Direito dos Contratos, 2011, p. 49) entende o comodato como uma relação obrigacional complexa que se concretiza num conjunto ou num sistema de direitos subjectivos propriamente ditos e de deveres jurídicos, de direitos potestativos e de estados de sujeição, de excepções, de ónus e de expectativas jurídicas.
Trata-se de um contrato real na sua constituição, logo só se perfetibiliza com a entrega da coisa ao comodatário, assim o investindo no direito de a usar, com a obrigação de a restituir, findo o contrato, sendo um contrato bilateral imperfeito (não sinalagmático) conforme o artigo 1135.º Código Civil.
Segundo resultou provado, a Demandante, por razões de cortesia e de gentileza, de forma gratuita, no mês de dezembro de 2015, entregou ao Demandado o seu ciclomotor de marca -------, modelo -----, com a matrícula LX, a gasolina, com data de primeira matrícula 24.03.1995, tendo ficado acordado que o Demandado o restituiria no dia 03.01.2016, dia anterior à viagem que este tinha marcada para o continente.
O comodatário está obrigado a restituir a coisa no estado em que a recebeu – restitutio in integrum – só podendo eximir-se dessa obrigação na ocorrência de uma causa de exclusão da responsabilidade.
Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. II, 2ª edição, em anotação ao artigo 1135.º (nota 4)): (...) Apesar de gratuito, o comodato não deixa de ser em regra um contrato bilateral imperfeito: o contrato envolve obrigações, não só para o comodatário, mas também para o comodante. Não há, porém, entre umas e outras, a relação de interdependência e reciprocidade que, através do sinalagma, define os contratos bilaterais ou sinalagmáticos (perfeitos)...
De entre as obrigações do comodatário ressalta a alínea h) do artigo 1135.º do Código Civil, isto é, a de restituir a coisa ao comodante logo que findo o contrato.
Júlio Manuel Vieira Gomes, (Do contrato de Comodato, Cadernos de Direito Privado, Nº 17 (Jan-Março 2007), pág. 20, com citação de vários arrestos do Supremo Tribunal de Justiça), ensina que é da essência do comodato que dele resulta para o comodatário um direito de uso temporalmente limitado.
Resultou provado que ficou acordado entre Demandante e Demandado que o ciclomotor seria restituído no dia 03.01.2016. Resultou ainda dos factos provados que o Demandado sofreu uma queda que determinou danos no ciclomotor da Demandante e que constam do orçamento de fls. 8, pelo que não se tendo apurado qualquer causa de exclusão da responsabilidade, corre pelo comodatário/Demandado a deterioração e perda do objeto que lhe foi entregue pela Demandante, in casu o ciclomotor com a matrícula LX. Ora, atento o disposto nos artigos 1043.º n.º 1 do Código Civil , ex vi do n.º 3 do artigo 1137.º do mesmo Código, o comodatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, estando obrigado a guardar, a conservar e a fazer uso prudente do ciclomotor da Demandante, bem como a restituí-lo, findo o contrato, nos termos do artigo 1135.º, alíneas a), d) e h), do Código Civil.
Como ensinam P. de Lima e A. Varela, (in ob. cit., pág. 751) estando o comodatário vinculado ao dever de conservação, por via do qual lhe é imposto que mantenha o bem cedido no estado em que o recebeu, salvas as deteriorações inerentes a um uso prudente, e muito embora tal obrigação constitua objecto de prestação própria e não mero acto preparatório da obrigação de restituir não menos certo é que, na falta de convenção, incumbe ao comodatário a obrigação de restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as aludidas deteriorações, sendo até de presumir que a coisa lhe foi entregue em bom estado de manutenção, quando não exista documento bastante onde as partes tenham descrito o estado dela no momento da entrega.
Vigora assim in casu o princípio da restitutio in integrum, pelo que tendo o Demandado causado danos ao ciclomotor que lhe foi entregue pela Demandante, caímos no domínio da responsabilidade contratual, incumbindo ao comodatário/Demandado provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua nos termos dos artigos 799.º, n.º 1 e 1136.º do Código Civil. Prova essa que não fez, outrossim provando a Demandante que o ciclomotor lhe foi entregue pelo Demandado com danos (neste sentido na doutrina Meneses Leitão, in “Direito das Obrigações”, Vol. III, 2.ª ed., págs. 373 a 374 e 375 a 376 e na jurisprudência entre outros os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 23/02/2006 e 15/03/2007 e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 04/03/2010 e de 11/10/2012, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Tendo resultado provado que o Demandado causou danos no ciclomotor da Demandante deverá o comodatário/Demandado indemnizar a comodante/Demandante dos danos resultantes de não ter feito a devolução da coisa (ciclomotor) que esta lhe emprestou, no estado em que a recebeu. Pelo exposto, tem necessariamente de proceder a condenação do Demandado no pagamento do montante € 434,72 (quatrocentos e trinta e quatro euros e setenta e dois cêntimos) a título de indemnização por danos patrimoniais.
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VIII – RESPONSABILIDADE POR CUSTAS:
As custas serão suportadas pelo Demandado, que se declara parte vencida, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 8.º e 10.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28-12 (o n.º 10 com a redação dada pelo artigo único da Portaria n.º 209/2005, de 24-02), com custas totais €70,00 (setenta euros) a seu cargo, sem prejuízo da isenção de que beneficia por ter sido declarado ausente.
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IX- DISPOSITIVO
Nos termos e com os fundamentos invocados, julgo a presente ação totalmente procedente, e em consequência decido:
1. Condenar o Demandado a pagar à Demandante a quantia de €434,72 (quatrocentos e trinta e quatro euros e setenta e dois cêntimos);
2. Condenar o Demandado nas custas do processo.
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Em relação à Demandante A NIF --------, proceda-se em conformidade com o artigo 9.º da Portaria n.º 1456/2001 de 28/12, devolvendo-se a quantia de 35,00€ (trinta e cinco euros).
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Registe e notifique e após trânsito em julgado, arquive.
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Funchal, 18 de maio de 2018


A Juíza de Paz


Luísa Almeida Soares
(Processei e revi. Art.º 31 n.º 5 CPC/Art.º 18 LJP)