Sentença de Julgado de Paz
Processo: 174/2017-JPPRT
Relator: LUÍS FILIPE GUERRA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA; CONTRATO CELEBRADO À DISTÂNCIA
Data da sentença: 02/02/2018
Julgado de Paz de : PORTO
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

I. RELATÓRIO:
A, com os demais sinais identificativos nos autos, intentou a presente ação declarativa respeitante ao incumprimento contratual contra B, melhor identificada a fls. 2, pedindo que fosse anulado o negócio jurídico em causa nos autos, devendo a demandada ser condenada a pagar à demandante a quantia de 169,00 €, acrescida de juros vencidos no valor de 9,24 € e vincendos, bem como da quantia de 1.000,00 € a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Para tanto, a demandante alegou os factos constantes do requerimento inicial de fls. 2 a 9, que aqui se dá por reproduzido, tendo juntado ao mesmo cinco documentos.
Regularmente citada, a demandada apresentou a contestação de fls. 26, que aqui se dá por reproduzida, tendo, em síntese, reiterado a sua disponibilidade para chegar a acordo com a cliente, quer por via da troca dos equipamentos quer pela aceitação da devolução dos mesmos e reembolso do seu preço total, ressalvando que a aceitação da devolução estava sujeita à validação do estado dos artigos.
Não se realizou a sessão de pré-mediação, dado que a demandada faltou à mesma, afastando tacitamente essa possibilidade.
Foi, por isso, marcada e realizada a audiência de julgamento, segundo as regras legais.

II. SANEAMENTO DO PROCESSO:
Verificam-se os pressupostos de regularidade da instância, nomeadamente:
Este julgado de paz é competente em razão do objeto, do valor, da matéria e do território (cfr. artigos 6º, 8º, 9º nº 1 i) e 12º, nº 1 da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho).
As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não há outras nulidades, exceções ou outras questões prévias que seja necessário apreciar.
Isto posto, fixa-se o valor da ação em 1.178,24 €.
Assim, cabe apreciar e decidir:

III. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA:
Discutida a causa, ficaram provados os seguintes factos:
1. A demandada dedica-se à promoção e comercialização de diversos artigos e equipamentos.
2. A demandante teve conhecimento através de um panfleto da demandada de uma campanha promocional da mesma, com a denominação de X.
3. Essa campanha oferecia um smartphone na condição de o consumidor adquirir um tablet pelo valor de 99,00 €, acrescido de 19,00 € de portes de envio.
4. A demandante realizou a encomenda alusiva a essa campanha promocional.
5. A demandada teve um contacto telefónico com a demandante, tendo-lhe indicado condições mais vantajosas referentes a uma nova campanha.
6. Nesta nova campanha promocional, na compra de um tablet, pelo valor de 169,00 € (portes de envio incluídos), a demandada ofereceria uma capa com teclado para o tablet, um cachecol da Seleção Nacional e ainda um smartphone da marca C, desbloqueado e com seguro contra danos e roubo válido por um ano.
7. A demandante, antes de efetuar esta nova encomenda, questionou a outra parte sobre a existência de portes de envio e a possibilidade de devolução dos equipamentos, caso os mesmos não apresentassem as condições desejadas.
8. A demandante foi informada que teria um prazo experimental de 14 dias, podendo devolver o equipamento dentro desse prazo, caso não estivesse satisfeita com o mesmo.
9. A encomenda chegou no dia 16 de Junho de 2016, tendo sido levantada na agência dos D no dia seguinte e paga nessa altura.
10. A encomenda rececionada pela demandante não coincide com o que a mesma pensava ter adquirido, nomeadamente o Tablet tem menos memória RAM do que aquela que era mencionada no panfleto, o teclado da capa oferecida não funciona e o smartphone não ostenta a marca C.
11. A demandante expôs a ocorrência via telefónica, tendo-lhe sido dito que ocorrera um erro no armazém, pelo que lhe era concedida a possibilidade de efetuar a troca do equipamento.
12. Uma vez que ainda se encontrava em prazo para o efeito, a demandante decidiu devolver os equipamentos, tendo-se dirigido aos D para o efeito.
13. No momento em que se preparava para efetuar a devolução, a demandante tomou conhecimento de que para efetuar a mesma teria que suportar custos administrativos no valor de 50,00 €, acrescidos dos portes de envio, no valor de 19,90 €.
14. Após contacto telefónico com a demandada, esta confirmou as condições de devolução.
15. A demandante não retirou até ao momento qualquer fruição dos referidos equipamentos.
16. A demandante enviou, por intermédio da sua mandatária, uma carta registada com aviso de receção, em 29/06/2016, com vista à devolução dos equipamentos sem custos adicionais.
17. Esta situação causou à demandante transtorno e frustração.
18. A demandante nunca chegou a devolver os equipamentos.
19. A demandada remeteu à mandatária da demandante uma carta datada de 07/07/2016 a solicitar a devolução dos equipamentos.
20. O valor de 50,00 € aplicado na devolução é uma caução, sendo reembolsado ao cliente após validação dos equipamentos devolvidos pela área técnica da demandada.
21. A diferença de 70,00 € entre a primeira e a segunda oferta é motivada pela troca do tablet de 7 polegadas por outro de 8, o telemóvel bloqueado por outro da marca C desbloqueado e pela adesão ao Sistema de Garantia Plus para o tablet.
22. Nas condições de devolução que acompanharam os equipamentos aquando da sua compra, pode ler-se, entre outros, que “a devolução de qualquer artigo tem um custo administrativo de 50 euros sendo que os custos de envio do artigo para casa do cliente não são restituídos” e “depois de verificar o estado do artigo(s) devolvido, a B. procederá à devolução do valor em causa após a receção efetiva do pagamento feito pelo cliente (…)”.
Os factos provados sob os n.os 1 a 17 assentam primordialmente no acordo das partes, dado que a demandada não impugnou aqueles que se referem ao contrato de compra e venda à distância celebrado com a demandante nem a desconformidade dos bens com o contrato, mas apenas as condições de devolução dos equipamentos alegadamente transmitidas a esta.
Em qualquer caso, os factos n.os 4 e 8 foram ligeiramente corrigidos quanto a valores e prazo de devolução, por contraste com o folheto promocional apresentado pela demandante e para o qual remete.
De resto, foram também valorados os demais documentos apresentados pelas partes, designadamente fatura, carta de interpelação da ilustre mandatária da demandante à demandada, carta de resposta desta àquela e condições de devolução.
Além disso, foram também apreciados criticamente os depoimentos das testemunhas E, filha da demandante, F, namorado desta, e G, funcionária da demandada, tendo a primeira explicado que tratou de todo o processo de compra para a mãe, a qual pagou os equipamentos, bem como da tentativa de devolução, tendo sido ela quem foi aos correios para esse efeito e manteve os contactos telefónicos com a demandada, ficando com a ideia que tinha de pagar 50,00 € e os portes de envio para proceder à devolução, pelo que, não concordando com isso e temendo não ser reembolsada, reteve os equipamentos, dando ainda conta de que a demandante ficou afetada com esta situação, porque se sente burlada; por sua vez, o segundo referiu que estava com a namorada quando esta fez a encomenda dos equipamentos pelo telefone em nome da mãe, tendo confirmado que os artigos recebidos não coincidiam com os anunciados, sendo de gama inferior, e que também estava com ela quando foi aos correios para fazer a devolução, tendo então verificado por meio de folha informativa que estava dentro da caixa do tablet que tinham que pagar 50,00 € para fazer a devolução, referindo ainda o transtorno sofrido pela demandante com a situação, tanto mais que esteve ainda algum tempo até comprar outro telemóvel, apesar do seu já estar a dar problemas; e finalmente, a terceira confirmou a realização do negócio e a insatisfação da cliente, sem que esta tenha, contudo, devolvido os equipamentos até ao momento, tendo ainda explicado as condições de devolução, referindo que os custos administrativos e financeiros funcionam como caução relativamente ao bom estado dos equipamentos e que os portes de envio ficam sempre por conta do cliente.

IV. FUNDAMENTAÇÃO JURIDICA:
As partes celebraram entre si um contrato de compra e venda à distância, previsto e regulado pelo Decreto-Lei nº 24/2014, de 14 de fevereiro. Com efeito, o artigo 3º f) deste diploma legal estabelece que o «Contrato celebrado à distância» é um contrato celebrado entre o consumidor e o fornecedor de bens ou o prestador de serviços sem presença física simultânea de ambos, e integrado num sistema de venda ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância mediante a utilização exclusiva de uma ou mais técnicas de comunicação à distância até à celebração do contrato, incluindo a própria celebração.
Nos termos do artigo 4º do referido diploma legal, o vendedor está obrigado a facultar ao consumidor informação pré-contratual clara e compreensível, em tempo útil, nomeadamente quanto ao preço total, incluindo transportes ou despesas de envio ou entrega, ao modo de cálculo do mesmo, ao direito de livre resolução e respetivo prazo e condições, cabendo-lhe o ónus da prova do cumprimento da referida obrigação. Por outro lado, em caso de incumprimento do dever de informação quanto aos encargos suplementares ou outros custos de expedição ou entrega ou quanto aos custos de devolução dos bens, o consumidor fica desobrigado desses custos ou encargos (cfr. nº 4 do citado preceito legal).
Por outro lado, o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve confirmar a celebração do contrato à distância no prazo de cinco dias contados dessa celebração e, o mais tardar, no momento da entrega do bem ou antes do início da prestação do serviço, realizando essa confirmação com a entrega ao consumidor das informações pré-contratuais acima aludidas em suporte duradouro (cfr. artigo 6º, n.os 1 e 2 do mesmo diploma legal).
Por sua vez, o direito de livre resolução e as suas consequências para o fornecedor dos bens e o consumidor estão regulados nos artigos 10º a 13º do citado diploma legal, destacando-se que este dispõe do prazo de catorze dias para o seu exercício, sem quaisquer custos, salvo os da devolução dos bens, se isso constar da informação pré-contratual, devendo enviar os bens de volta no prazo de catorze dias após a comunicação da decisão de resolução, enquanto o primeiro deve reembolsar o outro do preço pago em prazo idêntico após a resolução contratual.
Neste caso, como se retira do folheto promocional da demandada, que constitui um convite a contratar, a demandada informou a demandante que os custos de envio dos equipamentos acresciam ao preço dos equipamentos, especificando o seu valor respetivo. Porém, na sequência do contacto telefónico estabelecido entre as partes, a demandada acabou por fazer uma atualização do objeto contratual e do seu preço, sem que tenha logrado provar que tivesse informado claramente como se decompunha o preço final da venda, mas apenas que comunicou que os portes de envio estavam incluídos no mesmo. Dessa forma, compaginando essa informação com o referido folheto promocional, era possível concluir que os portes de envio ascendiam a 19,00 €. Deste modo, a demandante não teria direito à restituição desse valor, mas apenas ao valor residual de 150,00 €, correspondente ao preço dos equipamentos.
Isto posto, colocava-se ainda a questão de saber quem teria de suportar os custos de devolução, bem como se eram devidos os referidos custos administrativos que a demandada alega que funcionavam como caução. Ora, em primeiro lugar, a este respeito, as condições de devolução previam efetivamente que os portes de envio ficavam a cargo do consumidor, mas a demandada não logrou provar que tivesse prestado essa informação previamente ao momento da conclusão do contrato. Aliás, a testemunha E referiu no seu depoimento que questionou a vendedora da demandada e que esta disse que não havia quaisquer custos associados à devolução, ficando esta com a convicção de que assim seria. Por outro lado, atendendo às normas dos artigos 236º a 238º do Código Civil, não se retira do enunciado das condições de devolução que os custos administrativos sejam, na verdade, uma caução nem que esse valor ficaria retido por conta do preço já recebido. Na verdade, um custo não é o mesmo que uma caução e a expressão “devolução do valor em causa após a receção efetiva do pagamento feito pelo cliente” induz a pensar que se está a referir ao preço total pago e não à parcela de 50,00 €. Ou seja, nos moldes em que está redigida essa condição contratual, a mesma é claramente nula, por constituir, na prática, uma penalização incidente sobre o direito de livre resolução (cfr. artigo 11º, nº 7 do referido diploma legal).
No entanto, a nulidade desta cláusula não justificava a retenção dos equipamentos por parte da demandante, atento o disposto no artigo 13º, nº 1 do mesmo diploma legal. Ainda assim, a lei não faz depender a eficácia da resolução contratual da devolução dos equipamentos, se a mesma tiver sido comunicada por outra via. Com efeito, a resolução contratual considera-se inequívoca sempre que o consumidor comunica, por palavras suas, a decisão de resolver o contrato designadamente por carta, por contacto telefónico, pela devolução do bem ou por outro meio suscetível de prova, nos termos gerais (cfr. artigo 11º, nº 2 do citado decreto-lei). E, neste caso, a demandada reconhece que a demandante manifestou a sua intenção de resolução contratual dentro do período de 14 dias previstos na lei, faltando apenas devolver os equipamentos. Deste modo, a mora na devolução dos equipamentos poderia originar eventual responsabilidade contratual da demandante, com a obrigação de ressarcimento dos prejuízos da demandada (cfr. artigo 798º do Código Civil), mas essa questão não se discute nestes autos nem prejudica a resolução contratual. Não obstante, atento o disposto nos artigos 289º, nº 1 e 433º do Código Civil, a restituição recíproca das prestações das partes deve ser simultânea.
Face ao exposto, a demandante tem direito à devolução de 169,00 € e pode devolver os equipamentos sem ter que suportar quaisquer custos adicionais, nomeadamente a título de caução ou portes de envio, (cfr. artigo 13º, nº 2 b) do citado decreto-lei), por exemplo remetendo-os à cobrança. Além disso, a demandante tem ainda direito aos juros moratórios, à taxa legal anual de 4%, contados desde o termo do prazo para o reembolso do preço até ao efetivo e integral pagamento (cfr. artigos 804º, 805º, nº 2 a) e 806º, n.os 1 e 2 do Código Civil).
Nessa medida, fica prejudicada a alegação da demandante quanto à anulabilidade do contrato por vício da vontade, tanto mais que o juiz não está sujeito ao enquadramento jurídico que as partes fazem da questão controvertida (cfr. artigo 5º, nº 3 do CPC).
De resto, dá a ideia, face aos contornos da situação - nomeadamente tendo em conta a admissão da desconformidade dos bens com o contrato por parte da demandada -, que não estava em causa um erro sobre o objeto do negócio, mas sim um cumprimento defeituoso do contrato, cuja regulação cabia no regime do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, na sua redação atual, por estar em causa uma relação jurídica de consumo. Porém, nesse caso, parece que a demandante teria, em primeira instância, direito à substituição dos bens e que a resolução do contrato seria abusiva, sem que a demandada tivesse negado aquela (cfr. artigo 4º, n.os 1 e 5 do referido diploma legal).
Finalmente, no que respeita à pretensão indemnizatória da demandante, provou-se apenas que a mesma sofreu transtornos e frustração. Ora, por um lado, os danos não patrimoniais só são passíveis de compensação pecuniária se tiverem gravidade suficiente para merecer a tutela do direito (cfr. artigo 496º, nº 1 do Código Civil), o que não é o caso. E, por outro, a demandante optou por exercer o direito de livre resolução, em vez de exigir a substituição dos bens, pelo que a privação do uso dos bens teve o seu concurso, afastando o eventual dever de indemnização (cfr. artigo 570º, nº 1 do Código Civil).

V. DECISÃO:
Nestes termos, julgo a presente ação parcialmente procedente e provada e, consequentemente, condeno a demandada a restituir à demandante a quantia de 169,00 €, contra a devolução dos equipamentos, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, vencidos até à data da propositura da ação no montante de 9,24 € e vincendos desde aí até ao efetivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
Custas por demandante e demandada na proporção do respetivo decaimento, fixando as mesmas em 85% para a primeira e 15% para a segunda (cfr. artigos 607º, nº 6 do CPC e 8º da Portaria nº 1456/2001, de 28 de Dezembro).
Registe e notifique.
Porto, 2 de Fevereiro de 2018

O Juiz de Paz,

(Luís Filipe Guerra)