Sentença de Julgado de Paz
Processo: 78/2017-JPBBR
Relator: CRISTINA EUSÉBIO
Descritores: RESOLUÇÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA
OBRIGAÇÕES ACESSÓRIAS - DOCUMENTOS DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
MORA
RETROACTIVADADE DA RESOLUÇÃO
Data da sentença: 01/26/2018
Julgado de Paz de : BOMBARRAL-OESTE
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
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RELATÓRIO:
A, identificado a fls. 1 e 5 propôs em 18 de Setembro de 2017, contra B, melhor identificado, também, a fls. 1 e 7 a presente ação declarativa de condenação, pedindo que este seja condenado a restituir-lhe o valor de 3000,00€ correspondente ao preço que pagou pela compra de um veículo automóvel ao demandado. Pretende ver resolvido o contrato, por incumprimento do demandado na assinatura de documento necessário ao registo da viatura que adquiriu e que se destinava à venda a terceiro.
Mais alega ter procedido a reparações no valor de 1.300,00€ cujo pagamento igualmente requer.
Para tanto, alegou os factos constantes do seu Requerimento Inicial de fls. 2 que se se dá por reproduzido
Juntou 7 documentos (fls. 3 a 11) que, igualmente, se dão por reproduzidos.
Regularmente citado, veio o demandado apresentar a sua douta contestação alegando em suma que entregou todos os documentos da viatura em causa, inclusivamente uma declaração de venda preenchida e assinada, confirmando ter recebido o preço. Mais alega que o demandante não pagou o imposto único de circulação e taxas de portagens bem assim como coimas aplicadas no valor de 339,35€ cujo pagamento requer. Alega ter efectuado diligencias no sentido de que o demandante assumisse os pagamentos sem sucesso, e que perante o silencio daquele mandou apreender e cancelar a matricula do veiculo em 2015. Requer a condenação do demandante como litigante de má-fe. Juntou 12 documentos (fls. 33 a 43).
Realizada sessão de mediação em 4 de Dezembro de 2017, as partes não chegaram a acordo.
Realizou-se audiência de julgamento em 16 de Janeiro de 2018, com cumprimento das formalidade legais conforme da respectiva acta melhor se alcança.
No início da Audiência de Julgamento, foi o demandante convidado a aperfeiçoar o seu requerimento inicial, nos termos do disposto no art. 43 n.º 5 da LJP, tendo esclarecido que pretende a resolução do contrato, mediante a entrega da viatura ao demandado e restituição do preço pago.
Dada a palavra ao Ilustre Mandatário do demandado, e em face do aperfeiçoamento, exerceu o seu direito de contraditório invocando a caducidade do direito á resolução, bem como a excepção dilatória da ilegitimidade do demandante. Mais alega que não foi convencionado entre as partes qualquer garantia.
O Demandante pronunciou-se sobre as invocadas exceções, pugnando pela sua improcedência, esclarecendo que não vendeu o veiculo a terceiro, que se mantém na sua posse e que o valor peticionado de reparação se prende com o facto de ter valorizado o bem que ora pretende devolver – enriquecimento sem causa.
Após a produção da prova, e devido à necessidade de ponderação, foi a audiência suspensa e designada, desde logo, a presente data para a sua continuação, com prolação de sentença.
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Cabe a este tribunal decidir, se em face dos factos que vierem a considerar-se provados, tem o demandante o direito a resolução do contrato de compra e venda.

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QUESTÕES PRÉVIAS
Da admissibilidade da reconvenção
Nos termos do disposto no art. 48º da LJP, a reconvenção apenas se admite em duas situações a saber: quando o demandado pretender obter compensação ou tornar efectivo o direito a benfeitorias e despesas relativas á coisa cuja entrega lhe é pedida.
Ora interpretando a norma à luz do art. 9º do Código Civil, sendo certo que o valor peticionado diz respeito a despesas com o veículo automóvel que por efeito da resolução peticionada poderá vir a ser restituído, admite-se a reconvenção.

Da ilegitimidade activa
Dispõe o Art.º 26.º do Cód. Proc. Civil o seguinte:
“1. – O autor é parte legitima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legitima quando tem interesse directo em contradizer.
2. – O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3. – Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como ela é configurada pelo autor.». ---
Para além do mais, a legitimidade haverá de ser aferida pela causa de pedir e o pedido do demandante. “
Verifica-se que a causa de pedir nos presentes autos é um contrato de compra e venda celebrado entre as partes e que o demandante pretende ver resolvido. Não nos restam dúvidas que estão nos autos as partes que celebraram o referido contrato, pelo que ambas são legitimas nos termos legais, independentemente de direitos de terceiros.

Da caducidade do direito de resolução
Invoca o demandado que o direito de resolução por cumprimento defeituoso da obrigação caduca no prazo de seis meses nos termos do disposto nos art. 2º e 5º do Dec-Lei n.º 67/2003 de 8 de Abril. – (regime da venda de bens de consumo e das garantias a elas relativa)
Ora, o demandante alicerça o seu pedido de resolução, não no cumprimento defeituoso da obrigação, mas sim no incumprimento derivado do facto de não ter sido devidamente preenchido documento necessário ao registo. (incumprimento de obrigação acessória essencial á perfeição do negócio)
Assim, os referidos normativos legais, não se aplicam ao caso em apreço, regendo-se a relação controvertida pelo disposto nos art.432º e ss e 790º e seguintes do Código Civil .
Motivo pelo qual improcede também a excepção invocada.
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Estando reunidos os pressupostos de estabilidade da instância, cumpre apreciar e decidir:
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO
A convicção probatória do tribunal, ficou a dever-se ao conjunto de prova produzida nos presentes autos, tendo sido tomadas em consideração as declarações de parte do demandante e demandado, bem assim como os documentos juntos aos autos, e que não foram impugnados.
Ponderou-se o depoimento da testemunha apresentada pelo demandante – C– que, aos costumes, declarou ser esposa do demandante confirmando terem existido diversos contactos entre as partes.
A sua especial qualidade não retirou credibilidade ao seu depoimento, no qual revelou conhecimento direto dos factos sobre os quais recaiu, sendo isento e credível.
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Com interesse para a decisão da causa ficaram provados os seguintes factos:
1. O Demandante dedica-se à atividade compra e venda de veículos automóveis, sem actividade comercial;
2. O demandado colocou anúncio para vender a viatura de sua propriedade, X com caixa isotérmica, com a matricula QN, do ano de 2000, pelo valor de 5000,00€
3. O demandante contactou o demandado dando-lhe conta que tinha interesse na aquisição da viatura.
4. No dia 28 de Agosto de 2012, demandante e demandado encontraram-se um parque de estacionamento junto ao um restaurante, com vista á celebração do negócio.
5. O demandante verificou a viatura e o estado em que esta se encontrava, motivo pelo qual ofereceu ao demandado o valor de 2000,00€.
6. Após negociação aceitaram as partes o preço de 3.000,00€, que o demandado recebeu.
7. O preço foi pago por cheque, que foi levantado na presença de demandante e demandado, numa instituição bancária em Vendas Novas.
8. O demandado entregou ao demandante a viatura na data referida em 4, bem assim como fotocópia do cartão de cidadão, documento único automóvel e requerimento de registo automóvel incorrectamente preenchido.
9. No requerimento de registo automóvel apenas consta o nome do demandado abaixo de “Sujeito activo”, escrito pelo seu punho e não se encontra assinado ou preenchido.
10. O demandante não liquidou taxa de portagem de 27/8/2012, no valor de 20,91€
11. O demandante não pagou o imposto único automóvel dos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015 e coimas aplicadas no valor de 298,44€.
12. O demandado enviou ao demandante, carta registada juntando cópia das despesas efectuadas, em 5/2/2013.
13. Demandante e demandado realizaram contactos telefónicos, - combinando um encontro que nunca ocorreu -, com vista ao pagamento das despesas por parte do demandante e à emissão de documento de registo automóvel por parte do demandado.
14. Em 13 de Fevereiro de 2015, o demandado solicitou a apreensão dos documentos do veículo em causa nos presentes autos.
15. Em 17 de Agosto de 2015, o demandado procedeu ao cancelamento da matrícula junto da Direcção Regional de Mobilidade e Transportes.
Não resultaram provados quaisquer outros factos, alegados pelas partes, ou instrumentais, com interesse para a decisão.
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FUNDAMENTAÇÃO – MATÉRIA DE DIREITO
A relação material controvertida circunscreve-se ao incumprimento do contrato celebrado entre as partes e às obrigações daí decorrentes.
Entre o Demandante e a Demandada foi celebrado um contrato de compra e venda de um veículo automóvel que o demandante pretendia vender a terceiro.
Ora, dispõe o Art.º 874.º do Código Civil que “Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.”
São efeitos essenciais do contrato de compra e venda: a) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) A obrigação de entregar a coisa e c) A obrigação de pagar o preço (cfr. Art.º 879.º do Código Civil).
A transmissão da propriedade dá-se por mero efeito do contrato, tendo o vendedor a obrigação de pagar a coisa
Por sua vez o art. 882 n.º 2 do Código Civil que a obrigação da entrega da coisa que impende sobre o vendedor, abrange, a entrega dos documentos relativos á coisa ou ao direito. Trata-se de obrigação acessória que deriva dos deveres secundários de conduta.
Como refere o Acórdão do STJ de 23/3/2006 in CJ-STJ, tomo 1 pág. 150/153:”
Na verdade, constitui dever acessório do vendedor a emissão por escrito de declaração de venda, necessária para que o comprador possa inscrever no registo automóvel a aquisição do direito de propriedade.”
Assim incumbia ao demandado proceder ao preenchimento e assinatura da declaração de venda, o que não sucedeu.
Apesar de ter ficado na convicção de que assinou devidamente o formulário, o que é certo é que resultou provado que apenas apôs o seu nome, erradamente onde consta “Sujeito activo”.
Ora com tal documento, indevidamente preenchido e não assinado, não poderia o comprador proceder ao registo, necessário à posterior transmissão a terceiro inviabilizando o fim para que o veículo havia sido adquirido.
Incumbia, pois ao demandado proceder à correcta entrega dos documentos necessários ao registo da viatura, obrigação que o mesmo não cumpriu, entrando em situação de mora, porquanto interpelado para tal.
O demandado logrou provar que efectuou diversas diligências junto do demandante, no sentido de regularizar a situação, sem que tenham logrado fazê-lo. No entanto, quando mandou apreender a viatura e cancelar a matricula, tornou-se então definitivo o seu incumprimento, porquanto são actos reveladores da sua vontade de não cumprir.
Podemos questionar, no entanto, se o demandante não terá contribuído para o incumprimento do demandado?
Na verdade, sendo pessoa que negoceia veículos automóveis, com experiência no ramo, como o próprio declarou, competia-lhe certificar-se de que os documentos entregues estavam correctamente preenchidos aquando das negociações da venda.
Também se lhe exigia que fosse diligente no sentido de praticar os actos necessários para que fosse emitido o documento, nomeadamente pagando os valores que lhe estavam a ser exigidos pelo demandante e que eram devidos.
É que na realidade, a propriedade transmitiu-se, bastando proceder à regularização registal.
O demandante, com a sua conduta, contribuiu também para o incumprimento do demandado, o que não pode deixar de sopesar, atenuando a responsabilidade deste.
As exigências da boa-fé são recíprocas. Os direitos subjectivos, por definição, são direitos a prestações e implicam relações intersubjectivas de cooperação.
Assim, pese embora o demandante tenha direito à resolução do contrato, como ensina o Prof. Vaz Serra in BMJ, 102º-168 : “No caso de resolução por não cumprimento, baseada na lei, a eficácia retroactiva resulta de que, não cumprida a obrigação de uma das partes fica sem razão de ser a obrigação da outra, devendo, por isso, ser restituído o que esta já tenha prestado e podendo também o contraente faltoso recusar a sua prestação ou equivalente a exigir a restituição do que tenha prestado, pois havendo, nos contratos bilaterais, reciprocidade de prestações dir-se-ia, de contrário, um locupletamento da outra parte. Não pode, porém, exagerar-se o alcance da retroactividade. A retroactividade da resolução só tem lugar até onde a finalidade desta o justificar: as coisas não podem passar-se inteiramente como se nunca tivesse existido contrato, pois este existiu de facto e dele podem ter surgido obrigações, direitos e situações não abrangidas pela razão de ser da resolução e que esta não elimina, subsistindo, não obstante ela.”.
Assim, desde logo, são devidos pelo demandante os valores de imposto único de circulação, taxas de portagens e coimas do período em que este manteve o veículo em seu poder.
Por outro lado, o contrato de compra e venda realizou-se em 2012, pelo que será entregue o veículo ao demandado, mais de 6 anos após, sabendo nós que a desvalorização dos veículos pelo decurso do tempo é um facto notório, que não necessita de alegação nem de prova - art. 412º do CPC. Tempo que, como referimos decorreu pela inoperância de ambas as partes - mora do devedor – demandado - mas também mora do credor - demandante (art. 815º), até ao incumprimento definitivo e após este até à propositura da acção.
A restituição desta desvalorização não será possível em espécie, devendo ser avaliada em dinheiro e que computamos em 1.000,00€, conforme valores de mercado.
No valor a restituir pelo demandado não se computará o valor das reparações ou beneficiações do veículo, porquanto o demandante não logrou provar que despendeu, efectivamente a quantia de 1300,00€ a esse título.
Em face da procedência parcial dos pedidos, não se vislumbra ter existido litigância de má-fé por parte do demandante.
DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos invocados, julgando a presente ação parcialmente procedente, porque parcialmente provada, determino a resolução do contrato de compra e venda do veículo X de matricula QN e em consequência;
- Condeno o demandado a restituir ao demandante a quantia de 2.000,00€ mediante a entrega da viatura QN.
- Condeno o demandante a pagar ao demandado a quantia de 319,25€ a título de despesas com a viatura.
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As custas serão suportadas pelo demandante e demandado na proporção de 61% e 39% respectivamente (Art.º 8.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro).
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Bombarral, 26 de Janeiro de 2018
(Juíza de Paz que redigiu e reviu pelos meios informáticos – Art.º 131.º/5 do C.P.C.)

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(Cristina Eusébio)