Sentença de Julgado de Paz
Processo: 112/2014-JP
Relator: FILOMENA MATOS
Descritores: USUCAPIÃO
Data da sentença: 02/20/2015
Julgado de Paz de : CANTANHEDE
Decisão Texto Integral:
SENTENÇA

Processo nº 112/2014 – JP/CNT
Identificação das partes
Demandantes: A e mulher, B.
Mandatário: C, Advogado, com escritório em Coimbra.
Demandados:
D, e mulher, E.
F, e mulher, G.
H, e mulher, I
J e marido, L
M, e marido, N
O, empresa com sede em x.
Mandatária: P, Advogada, com escritório em São Domingos de Rana.

OBJETO DO LITÍGIO
Os Demandantes propuseram contra os Demandados a presente ação declarativa, pedindo que se declare que são legítimos possuidores e únicos proprietários do prédio rústico com a área de 968m2, sito em x, freguesia de x, que confronta do norte com O e Q, do sul com R, do nascente com caminho, e do Poente com O e R, a autonomizar do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo X da freguesia de x, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cantanhede sob o nº x, o qual tem a área global de 4637m2, alegando para o efeito, o instituto de usucapião.
Adicionalmente pedem, a condenação da O no pagamento da quantia de €5.000,00 pela área expropriada aos Demandantes no identificado prédio.

Tramitação e Saneamento
Os Demandados foram regularmente citados e a O contestou nos termos plasmados a fls 98 a 102 dos Autos.
O Julgado de Paz é competente para julgar a presente causa (cfr. artigo 9.º, n.º 1, alínea e) e artigo 11.º, n.º 1, ambos da LJP).
Não existem exceções que cumpram conhecer-se ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito da causa.
A Audiência de Julgamento realizou-se com observância das formalidades legais, conforme da respetiva ata se alcança, na qual o requerimento inicial foi objeto de aperfeiçoamento, e obtido acordo parcial entre os demandantes e a demandada O, que foi imediatamente homologado.

FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
Com base e fundamento nos Autos, julgam-se provados os seguintes factos, com interesse para o exame e decisão da causa:
1-Os Demandantes são donos e legítimos proprietários de metade do artigo matricial rústico n.º x da freguesia de x, Concelho de Cantanhede, descrito na CRP sob o nº x da freguesia supra identificada, cfr. Doc. Junto a fls. 132 e 11 e 12, respetivamente.
2-O prédio rústico na totalidade, era composto por vinha com 2 Oliveiras, 1 Tancha, 1 figueira, pinhal e mato com 3 Oliveiras, cfr. Doc. Junto a fls. 132 e 11 e 12.
3-O imóvel situa-se no x, freguesia de x, Concelho de Cantanhede, e tem a área global de 4637m2 conforme do levantamento topográfico elaborado nos termos do artigo 28.º-C do Código de Registo Predial, cfr. Doc. Junto a fls. 16 a 19.
4-Os Demandantes estão na posse do dito prédio por lhes ter sido doado, de acordo com o registo desde 27/08/1992, cfr. Doc. Junto a ffs. 11 e 12.
5-O referido imóvel foi objeto de expropriação no Diário da República n.º 142, II série, de 21 de Junho de 2001, cfr. Doc. Junto a fls. 20 a 24.
6-Pese embora, R conste, na inscrição predial como proprietário de 1/2 do referido imóvel, aquele faleceu em 03/10/2002, sendo os Demandados os seus herdeiros, cfr. Doc. Junto a fls. 133 e 134.
7-A Demandada O não liquidou qualquer quantia a título de preço pela referida expropriação do referido imóvel, alegando, que a área do mesmo ainda não foi corrigida.
8-O prédio está dividido em três partes, a área expropriada por O e não paga; a área que é propriedade dos Demandantes e a área que é propriedade dos demais Demandados.
9-Sendo que a área ocupada por O e não paga corresponde a 2510 m2, cfr. Doc. Junto a fls. 20 a 24.
10-E a área remanescente do prédio, corresponde a 2127m2, na proporção de 968m2 propriedade dos Demandantes, e 1158m2 propriedade dos demais Demandados.
11-Isto porque, aos Demandantes foi expropriada uma área de 1433m2, enquanto aos demais Demandados foi expropriada uma área de 1077m2.
12-Em data anterior à expropriação, Demandantes e os demais Demandados (com exceção de O) tinham a posse de forma exclusiva e individual, sobre uma parcela do terreno.
13-Cada um deles, e respetivos cônjuges, desde há mais de 20 anos que lavram e cuidam do respetivo prédio, nele semeando e plantando pequenos legumes, apanhando os frutos nele gerados, limpando e fresando o terreno, regando as suas culturas.
14-Todos os atos foram praticados individualmente, sobre cada uma das suas respetivas parcelas conforme a divisão descrita supra.
15-O que sempre fizeram de forma pública, pacífica, sem oposição de terceiros, contínua e ininterrupta, de boa-fé e sem prejuízo para ninguém.
16-A parcela dos demandantes, é composta de pinhal, com a área de 968 m2, (após expropriação) e confronta do norte com a O e Q, do Sul com herdeiros de R, do Nascente com Caminho e do Poente com O e herdeiros de R.
17-O seu prédio está delimitado de forma perfeitamente visível dos prédios confinantes, bem como, da parcela dos demandados.
18-Após a expropriação da área acima referida por O, e autonomização da área correspondente à parcela dos Demandantes, a área sobrante de 1158m2 é pertença dos Demandados.

Factos não provados: não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a causa.

Fundamentação fáctica:
A convicção do Tribunal para a factualidade dada como provada foi adquirida, fundamentalmente com base na apreciação crítica e conjugada das declarações das partes presente, depoimentos das testemunhas, acordo das partes e teor dos documentos juntos aos autos.
Assim, os factos assentes em, 7,8,10,11,12, consideram-se admitidos por acordo nos termos do nº2, do art. 574º, do C.P.C.
Os elencados sob os números, 1 a 6 e 9, resultaram do teor do suporte documental elencado nos mesmos.
Para os restantes factos a convicção do tribunal baseou-se nos depoimentos das testemunhas inquiridas que demonstraram isenção, credibilidade e conhecimento direto dos factos por si relatados.
R e S, pessoas já de idade, e conhecedoras do prédio em apreço, após a sua autonomização e delimitação do prédio na globalidade, há mais de 40 anos, bem como, dos atos de posse praticados em exclusividade quer pelos antepossuidores, quer pelos demandantes.

O DIREITO
Como sabemos, aquele que invoca um direito, cabe a prova dos factos constitutivos do direito alegado, neste caso a posse sobre a coisa – artigo 342.º nº 1 do Código Civil.
Refere o artigo 1316.º “o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei”. São, pois, estes os modos de aquisição da propriedade das coisas, sejam móveis ou imóveis.
Vejamos então se os Demandantes trouxeram ao tribunal prova, e se foi suficiente para obter sucesso na sua pretensão, ou seja na aquisição do prédio, que em termos matriciais, integra o prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo matricial x, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cantanhede sob o nº x, através do instituto de usucapião
Esta forma de aquisição invocada, a usucapião, é uma das formas de aquisição originária dos direitos (reais de gozo, e nomeadamente do direito propriedade), cuja verificação depende de dois elementos: a posse (corpus/animus) e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características da posse (cfr., nomeadamente, artºs 1251.º e ss, 1256.º e ss, 1287.º e 1294.º e ss).
No que concerne àquele primeiro elemento, a posse traduz-se na prática, além do mais, reiterada, de atos materiais correspondentes ao direito que se reclama ou se reivindica.
Como elementos da posse fazem parte o corpus, que, como elemento externo, se identifica com o exercício de certos poderes de facto sobre o objeto, de modo contínuo e estável, e o animus, que, como elemento interno, se traduz na intenção do autor da prática de tais atos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente aos atos realizados.
Assim, e porque se exige a presença simultânea desses dois elementos, para que a sequência da prática reiterada e contínua de atos materiais de posse, leve à aquisição da propriedade por via da usucapião, é que, existindo unicamente o corpus, a situação configura apenas uma mera detenção (precária), insuscetível de conduzir ao direito real de gozo que se reclama (cfr. artigo 1253.º do C.C.).
Ora a lei, atenta a dificuldade de demonstrar a posse em nome próprio, o animus, estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum) do mesmo a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presume-se que quem tem o corpus tem também o animus (cfr. artigo 1252.º, n.º 2 do C.C. e assento, hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, do STJ de 14/5/96, in "DR, II S, de 24/6/96, e ainda acórdãos do STJ de 9/1/97 e de 2/5/99, respetivamente, in "CJ/STJ, T5 - 37" e "CJ/ST J, T2 -126").
Podem assim, adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for elidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.
Daqui decorre que, sendo necessário o “corpus” e o “animus”, o exercício daquele faz presumir a existência deste.
Contudo “o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título” (cfr. artigo 1406.º, n.º 2 do Código Civil).
“Para que possa adquirir a propriedade singular e exclusiva sobre parte determinada e autónoma daquele imóvel terá de ocorrer então inversão do título de posse…” “…Tal inversão do título pressupõe, nos termos do artigo 1265.º do mesmo Código, que, designadamente, esse comproprietário manifeste inequivocamente perante os demais comproprietários do imóvel a sua intenção de passar a deter em nome próprio essa parte específica e individualizada do imóvel e que se opõe ao direito de que eles são titulares.” (cf. Ac. do TRC de 28/09/2010, processo n º 172/09.9TBTMR.C1, in www.dgsi.pt), foi o que os demandantes fizeram perante os demandados, sem que estes, de alguma forma se opusessem.
Conforme refere o Ac. do STJ de 9/10/2008, no processo n º 08B1914, in www.dgsi.pt), “Tal significa que na compropriedade, a unidade predial pode parcelar-se por usucapião desde que os comproprietários passem a utilizar partes distintas do prédio como se estivesse materialmente dividido em fracções, ocupando cada um sua fracção, perfeitamente delimitada e circunscrita, sem oposição, de modo exclusivo, à vista de toda a gente, sem violência, na convicção de exercer um direito próprio, como se seu verdadeiro dono fosse, sem invasão de parcelas alheias.”
Quanto ao decurso do tempo em que a posse foi exercida, ficou provado que os Demandantes, pacífica e publicamente, o fazem há mais de 40 anos, encontrando-se assim satisfeito o requisito da antiguidade máximo exigido na lei - artigo 1296.º, do Código Civil.
Por outro lado, a posse conducente à usucapião tem necessariamente duas características – ser pública e pacífica – uma vez que os restantes caracteres – boa ou má-fé, justo título, registo da mera posse – apenas influem na determinação do prazo para operar a usucapião.
Ora, ficou provado que a posse do prédio em causa tem sido exercida por parte dos Demandantes de forma pacífica e pública, nos termos dos artigos 1261.º e 1262.º, ambos do Código Civil.
E que se trata de uma posse adquirida de boa-fé, por ter sido elidida a presunção do nº 2, do artigo 1260.º do Código Civil, uma vez que os possuidores, “ignoravam ao adquiri-la, que lesavam o direito de outrem”.
Quanto ao modo de aquisição, esta posse é uma posse não titulada, pois, pese embora os Demandantes disponham de título, este, não reflete a realidade jurídico-possessória, há muitos anos existente.
O objeto material da posse sobre o prédio está, há mais de vinte anos, completamente delimitado e identificado com as confrontações definidas nos factos dados como provados.
Nestes termos, encontra-se amplamente preenchido o requisito temporal máximo de vinte anos para operar o efeito útil da usucapião de acordo com o exigido pelo disposto no artigo 1296.º do Código Civil.
Por consequência e em conformidade, os Demandantes são titulares do poder jurídico que nestas circunstâncias o artigo 1287.º lhes confere, com os efeitos previstos no artigo 1288.º, ambos do Código Civil.
Assim, e em conformidade, os pedidos formulados pelos Demandantes porque provados, tem de proceder.

Decisão
Face ao que antecede e às disposições legais aplicáveis, julgo a presente ação totalmente procedente por provada e em consequência:
a)Declaro que o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo x da freguesia de Ançã, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cantanhede sob o nº x, tem a área real global de 4637m2, ordenando-se a respetiva correção matricial e predial.
b)Declaro que o prédio rústico, sito em x, freguesia de x, com a área de 968m2, que confronta do norte com O e Q, do sul com herdeiros de R, do nascente com caminho, e do Poente com a O e herdeiros de R, pertence em exclusivo aos Demandantes, por se ter autonomizado por via da usucapião, passando a ser um prédio autónomo e distinto do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo x da freguesia de x, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cantanhede sob o nº x.
c)Condeno os Demandados no reconhecimento e aceitação da constituição e existência do prédio descrito na alínea b), como autónomo e distinto, assim como o descrito direito de propriedade dos Demandantes sobre o mesmo, cessando a compropriedade que detinham no prédio supra descrito.

Custas:
Em partes iguais (que já se encontram pagas) face, à transação efetuada com a demandada O.

Reembolse a Demandada J, do valor pago pela taxa de justiça.

Esta sentença foi proferida e notificada às partes presentes nos termos do art. 60.º, n.º 2, da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, na redação da Lei 54/2013 de 13 de julho, ficando as mesmas cientes de tudo quanto antecede, tendo-lhes sido entregue cópia.
Notifique os ausentes.

Cantanhede, em 20 de fevereiro de 2015


A Juíza de Paz


(Filomena Matos)


Processado por meios informáticos e revisto pela signatária. Verso em branco.
(Art. 131.º, n.º 5 do CPC)