Sentença de Julgado de Paz
Processo: 2/2018 - JPCRS
Relator: ELISA FLORES
Descritores: INCUMPRIMENTO CONTRATUAL
EXCETO CONTRATO DE TRABALHO E ARRENDAMENTO RURA
Data da sentença: 05/29/2018
Julgado de Paz de : CARREGAL DO SAL
Decisão Texto Integral:
IV ATA DE
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Aos vinte e nove dias do mês de maio de dois mil e dezoito, pelas 14:45 horas, realizou-se no Julgado de Paz de Carregal do Sal, a continuação da Audiência de Julgamento do Processo n.º2/2018 - JPCSal, em que são partes:
Demandante: A; Demandada: B.
Realizada a chamada verificou-se que ninguém se encontrava presente.
Aberta a audiência a Srª Juíza de Paz proferiu a sentença anexa à presente ata e que dela faz parte integrante e depositou-a na secretaria.
Nada mais havendo a salientar a Sra. Juíza de Paz deu como encerrada a Audiência.
Para constar se lavrou esta Ata que vai ser devidamente assinada.
A Juíza de Paz, Elisa Flores
O Técnico de Apoio Administrativo, Miguel Alberto Baptista Mendes
SENTENÇA
RELATÓRIO
A, propôs contra B, ambas melhor identificadas nos autos, a presente ação declarativa enquadrada na alínea i) do nº 1 do artigo 9.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, pedindo que se declare nulo o contrato de mútuo celebrado entre ambas e ser a demandada condenada a restituir-lhe a quantia de €14 000,00 (catorze mil euros), acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para o efeito alegou os factos constantes do requerimento inicial de fls. 4 a 7 e juntou ao longo do processo 9 documentos, que aqui se dão por reproduzidos.
A demandada apresentou contestação, nos termos constantes de fls. 22 a 31 dos autos, impugnando os factos alegados pela demandante e, sem prescindir e por cautela de patrocínio, suscitar o incidente de intervenção provocada do seu ex-marido. Mais peticionou a condenação da demandante por litigância de má-fé.
Juntou ao longo do processo 3 documentos, que aqui também se dão por reproduzidos.
Nos termos do artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil (CPC) foi concedido prazo para o exercício do contraditório quanto ao pedido de condenação em litigância de má-fé e ao incidente de intervenção provocada, tendo a demandante se pronunciado e contestado o pedido da sua condenação por litigância de má-fé, nos termos constantes de fls. 71 a 75.
Por despacho de 1 de março de 2018 foi indeferido o pedido incidental, de intervenção provocada do ex-marido da demandada, com os fundamentos constantes de fls. 143 e 144.
O litígio não foi submetido a mediação.
A Audiência de julgamento teve três sessões, com depoimentos de parte, e ambas as partes apresentaram prova testemunhal.
Valor da ação: Fixo em € 14 000,00 (catorze mil euros).
O artigo 60º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, na sua alínea c), prescreve que do conteúdo da sentença proferida pelo juiz de paz faça parte uma sucinta fundamentação. Assim:

FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
Consideram-se provados para os presentes efeitos os seguintes factos:
1.º- Em fevereiro de 2008 a demandante entregou à demandada o Cheque nº 00000000, da sua conta da X0000000000000100, no valor de €14 000,00 (catorze mil euros), datado de 15 de fevereiro de 2008, à ordem da demandada;
2.º- Entre ambas existia uma relação de amizade;
3.º- E uma relação de afinidade, uma vez que a demandada era àquela data casada com C, sobrinho da demandante;
4.º- À data a demandada, entidade não empregadora, apresentava dívida de contribuições à Segurança Social no valor global de € 991,63 (novecentos e noventa e um euros e sessenta e três cêntimos), dívida que foi presentemente considerada prescrita;
5.º- O referido cheque nº 00000000, no mesmo dia 15 de fevereiro, foi depositado pela demandada no Balcão da Y na conta solidária nº 000000100 titulada pela demandada e o então marido, o referido C;
6.º- A demandante é solteira, não tem filhos, tem atualmente 82 anos, é reformada, viveu numa casa do então casal e tem uma reforma que ultrapassa os €1 000,00 (mil euros) mensais;
7.º- Conhecia a vida do casal e tinha conhecimento dos esforços económicos que o casal fazia para fazer face às necessidades diárias do agregado familiar;
8.º- No ano de 2008 o casal adquiriu uma viatura de marca Renault Laguna com a matrícula 00-FZ-00, que, em virtude de ter sido comprada em nome da filha D, portadora de deficiência, viria a custar um preço inferior ao de mercado, sendo que entregaram ainda um veículo próprio para abatimento no valor daquele;
9.º- Em 8 de julho de 2008 a demandante, e a sua irmã E, celebrou com a X um contrato de mútuo, caucionado, no valor de €17 000,00 (dezassete mil euros);
10.º- O registo da referida viatura de marca Renault Laguna foi efetuado em 05/08/2008 em nome da filha D;
11.º- Pelo menos a partir de 5 de março de 2010 e até 07-12-2011 foram efetuados depósitos e transferências mensais pelo então marido da demandada na conta da demandante nº 0000000000000100 da X;
12.º- E em 16/12/2013 a referida viatura Renault Laguna com a matrícula 00-FZ-00 foi registada em nome do então marido da demandada, C);
13.º- O casamento entre este e a demandada foi entretanto dissolvido por divórcio por mútuo consentimento, cujo acordo foi homologado por decisão que transitou em julgado em 08/09/0000;
14.º- O ex-casal tem andado em permanente clima de conflitualidade por causa de desentendimentos na partilha dos bens comuns;
15.º- Por carta datada de 25 de julho de 2017, subscrita pela advogada da demandante esta exigia à demandada “…o pagamento integral da quantia mutuada e não paga, que se apura na data de hoje num total de 19.104,44€…”, que incluía juros vencidos a partir de 15 de junho de 2008;
16.º- Carta que a demandada recebeu mas a que não deu qualquer importância.

Motivação dos factos provados:
O ponto 1.º supra foi desde logo aceite pela demandada e a restante factualidade dada como provada resultou da conjugação dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados, e dos que, tendo-o sido, foram corroborados por outra prova, dos esclarecimentos prestados ao Tribunal pela Y, das declarações e depoimentos das partes, e da prova testemunhal, tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 607º, nº 5 do Código de Processo Civil (CPC) e no artigo 396º do Código Civil (doravante designado simplesmente C.Civ).
Quanto aos depoimentos de parte, que constam em Ata (nº 2, a fls. 256), foram pouco relevantes porquanto no essencial as partes mantiveram as respetivas versões.
Relativamente à prova testemunhal, as partes apresentaram quatro testemunhas cada, em comum, e a demandante ainda a testemunha própria C, seu sobrinho e ex-marido da demandada.
Por outro lado, de todas as testemunhas apresentadas só F, não tem, nem teve, qualquer relação familiar ou de afinidade com as partes.
Compreende-se, por estarmos em presença de situações de âmbito familiar mas que, porque entretanto se verificou um divórcio e situações de conflitos alegadamente originadas pela divisão de bens, com familiares de uma e outra parte a tomar posição por um ou por outro e o consequente corte de relações da (ou com a) outra parte, têm os seus depoimentos, naturalmente emotivos e comprometidos, de ser valorados com reserva. Assim:
- E, irmã da demandante e ex-sogra da demandada com quem está de relações cortadas, sobre o objeto dos autos só sabe o que a irmã, ora demandante, lhe contou. Não se lembrava de ter contraído e assinado o contrato de mútuo com a Caixa Geral de Depósitos que celebraram em 2018 mas justificou que a conta era da irmã, que ela “só lá tem o nome”; Confirmou que as partes se davam antes muito bem;
- O referido C, arrolado apenas pela demandante está de relações cortadas com a demandada, ex-mulher; Depôs que só em 2017 teve conhecimento da entrega do cheque em causa nos autos àquela e do depósito na conta comum, que não mexia (nem a demandada na sua conta própria do Z), e que não sabe em que foi gasto o dinheiro;
Confirmou em tudo a versão da demandante mas tem interesse direto na causa, porquanto a demandada alega que o valor do cheque em causa se destinava ao ex-casal para fazer face a despesas do agregado familiar e ajuda na compra de um carro;
- G, casada com um irmão da demandada, H; Depôs que esteve zangada com o ex-casal há uns quinze anos e que em 2000 e pouco já falava com a demandada às escondidas do ex-cunhado, a testemunha anterior, com quem continua de relações cortadas;
Também só sabe o que lhe contou a demandada e a sogra, a testemunha E, e que o ex-casal tinha dificuldades financeiras.
- I, mãe da demandada, e que referiu que a demandante é que está de relações cortadas consigo.
Depôs que assistiu à entrega de um cheque, que refere ter sabido depois ser no valor de 14.000,00, em dia indeterminado numa hora de almoço na cozinha do café do ex-casal e na presença de ambos, que a demandante deu ao casal, que lhe terá agradecido. Circunstâncias e lugar que, a referir-se ao cheque objeto dos autos, não coincidem com a narrativa de nenhuma das partes.
Após a sua inquirição a demandante requereu a sua acareação com a testemunha C, seu ex-genro, presente nas instalações do Tribunal, e não havendo da parte contrária oposição, procedeu-se à mesma. Não teve, contudo, qualquer relevância probatória por terem ambos mantido as suas versões/depoimentos;
- F, que referiu ser amiga de ambas as partes, e que mora perto do café explorado pela demandada; Depôs que frequenta este café e aí se encontrava frequentemente com a demandante para tomar café e fazer renda, há data dos factos e enquanto a mesma vivia numa casa por trás, então do ex-casal; Depôs ainda que, em data que não sabe precisar, mas que foi quando a D. A ainda morava nesta casa, esta lhe disse que “…tinha ajudado os sobrinhos e que lhes tinha dado um cheque de €14 000,00 para a ajuda da casa …”; Que não lhe disse quando deu o cheque, em que condições e quem estava presente; E que a D. A nunca lhe falou de outros cheques ou quaisquer empréstimos, só daquele; Mas, questionada, reiterou que a D. A e a D. B lhe disseram que tinha sido dado ao casal, também para ajudar com a saúde da D.
O depoimento desta testemunha, arrolada por ambas as partes, revelou-se isento e credível.
Mais foram tidos em conta, nos termos das alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 5º do C P C, factos instrumentais e factos que complementam ou concretizam os que as partes alegaram e resultaram da instrução e discussão da causa, e relativamente aos quais ambas as partes tiveram a possibilidade de se pronunciar.

Factos não provados e respetiva motivação:
Não se provaram quaisquer outros factos alegados pelas partes, com interesse para a decisão da causa, por prova em contrário ou falta ou insuficiente mobilidade probatória, nomeadamente que:
- A demandante viveu durante cerca de 8 anos (entre 2007 e 2015) com o agora ex-casal;
- Se tratou de um empréstimo à demandada;
- A demandada queria este dinheiro para regularizar uma dívida que tinha para com a Segurança Social;
- O ex-marido da demandada desconhecia a entrega do cheque à demandada e o depósito na conta comum do casal;
- Os €17 000,00 que a X emprestou à demandante se destinavam e foram aplicados na compra de uma viatura nova pelo ex-casal;
- A que se referiam os depósitos e transferências efetuados pelo então marido da demandada na conta da demandante;
- O ex-marido da demandada continua na posse da referida viatura (00-FZ-00), usando-a e circulando com ela desde o divórcio.
- Os desentendimentos entre o ex-casal já deram, inclusivamente, origem a processos crimes que correm termos no Tribunal Judicial de Santa Comba Dão.

Fundamentação de direito:
Alegando a existência de um mútuo de €14 000,00 celebrado oralmente com a demandada -, sem qualquer formalidade, para proveito próprio e com desconhecimento do então marido, com a obrigação de pagamento passados 3 meses-, a demandante vem requerer se declare o mesmo nulo, e se condene a demandada a restituir-lhe essa quantia.
As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (cf. artigo 341º do C. Civ).
Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 342º, do C.Civ: “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, ou seja, era sobre a demandante que recaía o ónus da prova, competindo-lhe provar os factos constitutivos do direito que alega ter. No caso, e desde logo, não só da entrega do dinheiro mas também da respetiva obrigação de restituição. Mas quanto a esta última a demandante não o logrou fazer.
Do conjunto da prova produzida não foi possível concluir inequivocamente que se tratou de um mútuo, nomeadamente pelo facto de em outras circunstâncias, e posteriormente a este, a demandante exigir e estar a ser pago pelo seu sobrinho um empréstimo em prestações mensais, e ainda pelo facto de só após o divórcio este valor ter sido formalmente exigido à demandada.
O depoimento da testemunha F, amiga e apresentada por ambas as partes, as dificuldades financeiras do casal e a compra de um veículo ainda no primeiro semestre de 2008, põe também em crise a fundamentação de que se tratou de um mútuo e que o valor do cheque se destinava apenas à demandada, com o desconhecimento do seu ex-marido, sobrinho da demandante: o cheque foi depositado na conta comum do então casal a que o marido poderia aceder sempre que quisesse, e a dívida à Segurança Social era mínima (e acabou por prescrever).
De referir, contudo, que o facto de o Tribunal ter considerado não provado tal não corresponde à prova do facto contrário.
Não tendo ficado provado que se tratou de um empréstimo à demandada não poderá proceder o pedido principal de declarar o contrato de mútuo nulo por preterição de formalidades essenciais, nem poderão também merecer provimento os pedidos dele dependentes: ser a demandada condenada a restituir o valor mutuado, com juros de mora.
Atento o exposto, e em conclusão, julgo os pedidos formulados pela demandante, improcedentes.
- Quanto ao pedido de condenação da demandante em litigância de má-fé:
Trata-se de um instituto previsto no artigo 542º e seg.s do C.P.C. que tem subjacente a boa-fé que deverá sempre nortear a atividade das partes de modo a que estas, conscientemente, não formulem pedidos ou deduzam oposição, cuja falta de fundamento não deviam ignorar, não articulem factos contrários à verdade, ou omitam factos relevantes para a decisão da causa e/ou não requeiram diligências meramente dilatórias, tudo em violação do princípio de cooperação das partes e dos deveres que lhe são inerentes, e com o objetivo ilegal de impedir a descoberta da verdade e a ação da justiça. -E é sobre os alegantes que recai o ónus da prova, competindo-lhes provar os factos constitutivos do direito que alegam ter à indemnização, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 342º do Código Civil.
Na situação dos autos, a demandada vem na sua contestação requerer a condenação da demandante em multa e em indemnização a seu favor, a fixar a final ou a liquidar em execução de sentença, alegando, em síntese, que a mesma com dolo, de forma maliciosa e abusiva, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não ignora.
Ora, não basta para a condenação como litigante de má-fé, não ter provado ter razão.
Este instituto pretende incutir aos utilizadores da justiça uma maior responsabilização, nomeadamente a observância de deveres de cuidado a quem intenta ações.
Contudo, a violação desses deveres só deverá ser sancionada, se se provar que resultou de uma conduta dolosa ou gravemente negligente, sendo que o julgador deverá ser especialmente prudente “….sabendo-se que a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico” – cfr. Ac. STJ de 11/12/2003, proc. nº 03B3893, in www.dgsi.pt.
O princípio da licitude do exercício dos meios processuais está, assim, limitado pela ordem jurídica, que impõe que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão (cf. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pág. 261 e Ac. Trib Rel Coimbra de 05/07/2005, processo nº 2475/05, in www.dgsi.pt), o que o Tribunal entende se verificou no caso concreto.
Assim, julgo o pedido de condenação da demandante por litigância de má-fé também improcedente.

Decisão:
Em face do exposto, julgo a ação improcedente, e em consequência:
- Absolvo a demandada, B, dos pedidos formulados pela demandante;
- Absolvo a demandante, A, do pedido de condenação em litigância de má-fé.
Custas por ambas as partes, na proporção do decaimento, que se fixam em 50% para cada uma (cf. artigo 8º, 9º e 10º da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de dezembro), que já se encontram pagas.
Registe e notifique.
Carregal do Sal, 29 de maio de 2018
A Juíza de Paz, Elisa Flores) Processado por computador (art.º 131º, nº 5 do C P C)