Sentença de Julgado de Paz
Processo: 99/2014-JP
Relator: FILOMENA MATOS
Descritores: GARANTIA - NULA
Data da sentença: 01/30/2015
Julgado de Paz de : MIRANDA DO CORVO
Decisão Texto Integral:

SENTENÇA


Processo nº99/2014-JPMCV

1-Relatório
Demandante: A, Lda., com o NIPC 000, e sede na Estrada n.º xx, em Miranda do Corvo.
Demandado: PL, com o NIF 111 e residente na Urbanização xxxx. N.ºx, em Condeixa-a-Velha.

Objecto do litígio:
A Demandante peticiona a condenação do demandado, no pagamento do valor de €590,40, acrescido de juros de mora vencidos contabilizados até à data da entrada da acção no valor € 39,53 e vincendos até integral pagamento, bem como nas custas do processo.
Para tanto, alegou os factos constantes do Requerimento Inicial de fls. 1 a 3, cujo teor se dá por reproduzido e juntou 3 documentos.

O demandado foi regularmente citado, e apresentou a contestação constante de fls. 22 e 23, impugnando a factualidade alegada pela demandante e pedindo a sua condenação em litigância de má fé.

Não existem excepções, que cumpram conhecer ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito da causa.

A audiência de julgamento realizou-se com observância das formalidades legais, conforme se alcança da ata que antecede.

2-Fundamentação
Factos provados:
Com base e fundamento nos autos, julgam-se provados os seguintes factos, com interesse para o exame e decisão da causa:
1-A demandante é uma sociedade por quotas que tem por actividade compra, venda, reparações, peças e acessórios de automóveis e velocípedes novos e usados, bem como, prestação de serviços por meio de veículos de pronto socorro, cfr. doc. junto a fls. 4 a 7, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
2-A demandante tinha a designação de A, Lda., contudo, face às alterações efetuadas ao contrato da sociedade em y/y/201y, a mesma passou a ter a designação de AD, Lda, cfr. doc. junto a fls. 4 a 7, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
3-Em i/i/201i o Demandado comprou à Demandante uma viatura de marca MP GLS com a matrícula 00-00-MM.
4-Comprou-a no pressuposto que se encontrava em perfeitas condições de utilização.
5-No dia seguinte à entrega da mesma, quando circulava na via pública o veículo parou repentinamente.
6-Após alguma insistência do Demandado voltou a funcionar, mas, parou passado instantes.
7-Face ao sucedido o Demandado, contactou VS funcionário da Demandante, para que fosse, buscar a viatura e resolver o problema.
8-A Demandante foi buscar a viatura, tendo-a devolvido uma semana depois, sem que a avaria fosse reparada.
9-O Demandado voltou a contactar a demandante para esse efeito, tendo esta, recolhido pela segunda vez a viatura para reparação.
10-Uma semana depois, a Demandante entregou a viatura ao Demandado, referindo que teria sido substituída a bomba injectora, porque se encontrava avariada.
11-Após a intervenção supra identificada, a viatura não apresentou mais problemas.
12-Face ao exposto, a confiança do Demandado na demandante ficou abalada, não tendo por isso, concretizado um segundo negócio com a Demandante para aquisição de outra viatura.
13-A Demandante prestou serviços no veículo pertença do demandado, discriminados na sua quantidade, qualidade e valor na fatura n.º 1/111-1, junta a fls. 8.
14-Os serviços prestados pela demandante ao demandado importaram a quantia global de € 590.40 (quinhentos e noventa e quarenta cêntimos),cfr doc. junto a fls. 8.
15-O demandado, foi instado por telefone e carta registada com aviso de receção para proceder o pagamento do valor em divida cfr. documento junto aos autos a fls. 11.
16-O aviso de receção não se encontra assinado pelo Demandado ou por qualquer outra pessoa em seu nome, cfr. documento junto aos autos a fls. 11.
17-O demandado não apresentou qualquer reclamação ou reparo sobre o serviço efetuado pela demandante ou sobre o valor do mesmo.
18-O Demandado face ao ocorrido, contactou o anterior proprietário da identificada viatura, informando-o que, quando vendeu a viatura à Demandante, já se encontrava avariada, com problemas na bomba injetora, e que tinha alertado para tal facto.
19-A venda do veículo pela demandante ao demandado foi realizada no estado e uso em que se encontrava, sem garantia, cfr. doc. junto a fls. 38.

Factos não provados
1-Face à desistência do Demandado relativamente à realização de um segundo negócio com a demandante, esta, faturou reparação da bomba injetora no valor de € 590,40.

3 - FUNDAMENTAÇÃO
A convicção do Tribunal para a factualidade dada como provada, foi adquirida, fundamentalmente, com base na apreciação crítica, conjugada das declarações das partes, documentos juntos e depoimentos das testemunhas apresentadas.
Os factos assentes em 3, 4 a 11, 17, consideram-se admitidos por acordo nos termos do art. 574º, nº2 do C.P.C.
Os factos enumerados em, 1,2,13,14,15,16 e 19,resultaram do teor dos documentos juntos, conforme elencado nos factos provados.
A factualidade elencada sob o nº4, 7 e 15, resultou do depoimento da testemunha apresentada pela demandante, à data dos factos seu colaborador, VS, cujo depoimento se revelou de certa forma vago, mas, isento e credível relativamente aos factos sobre os quais depôs.
Referindo ter sido o vendedor, do veículo em apreço, e que foi acordado pelas partes que a venda estava isenta de garantia. Que o veiculo estava bom. Que falou com o demandado dizendo-lhe que a demandante ia faturar a reparação do veiculo.
O facto referido em 12, resultou das declarações do demandado
Finalmente o facto enumerado em 18, resultou do depoimento de FB, cujo depoimento se revelou isento e credível. Era o antigo proprietário do veículo, e confirmou que quando o vendeu à demandante alertou o V, para o facto do veiculo ter um problema na bomba injectora, solucionável com cento e poucos euros.

Factos não provados: não se provaram outros factos, por ausência de prova apresentada.

A questão a decidir por este tribunal, resulta do direito da Demandante em receber do demandado a quantia peticionada, originada com a empreitada discriminada na factura.

3 - O DIREITO
Demandante celebrou com o Demandado, um contrato de compra e venda de um veículo automóvel usado, de marca MP, GLS, de matrícula 00-00-MM.
Com a presente ação, a demandante pretende que o Demandado seja condenado no pagamento da quantia peticionada, relativamente à realização de uma empreitada no veículo do demandado, em concreto a reparação de uma bomba injectora.
O demandado, defende-se por excepção alegando que nada tem de pagar, pois a reparação foi efectuada pela demandante, sem estar sujeita a qualquer custo.
A demandante, face ao defeito detectado no veículo, por duas vezes, o recolheu para proceder à sua reparação do mesmo resultante da compra efectuada pelo demandado.
A demandante nunca informou o demandado, antes da entrega do veiculo reparado, que não assumiria o custo da reparação, em que consistia a mesma e qual o seu valor.
No caso, estamos perante um contrato (de compra e venda – arts. 874.º, segs. do CC) de consumo ao qual é aplicável, designadamente, a Lei n.º 24/96, de 31-07 (Lei de Defesa dos Consumidores - LDC), e o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08-04 (alterado pelo DL n.º 84/2008, de 21-05), e mais recentemente pela ( Lei 47/2014 de 28 de julho de 20149, que a alterou e complementou certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas.
Com efeito, o Demandado é considerado “consumidor”, porquanto lhe foi vendido um bem destinado a uso não profissional, por pessoa que exerce com carácter profissional uma atividade económica que visa a obtenção de benefícios, como é o caso da Demandante (art.º 2.º, n.º 1 da LDC).
Ora, os bens destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor (art.º 4.º da LDC, na redação dada pelo art.º 13.º do Dec.-Lei n.º 67/2003).
Dispõe o n.º 1 do artigo 4.º do supra citado D.L. que “em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”, clarificando o n.º 5 do mesmo artigo que “o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais”.
Verifica-se, assim, um concurso eletivo dos vários remédios de que o comprador pode lançar mão, sendo-lhe dada “a possibilidade de escolher, indistintamente, entre um ou outro direito previsto na lei”.
Face à matéria de facto dada como provada, importa agora verificar se o demandante tem ou não que pagar o valor peticionado pela demandante.
Dispõe o n.º 1 do artigo 2º do D.L. n.º 67/2003 que “o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”, presumindo-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se, entre outros, se verificar que os bens não apresentam “as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem (…)” (alínea d) do nº 2 do mesmo artigo).
Em consequência, o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue, presumindo-se, existentes já nessa data as faltas de conformidade que se manifestem no prazo de garantia (art. 3.º do DL 67/2003, já referido).
Ora, resultou provado que a reparação efetuada no P do demandado, era imprescindível para permitir a circulação do veículo, objectivo do demandado ao adquiri-lo.
Por sua vez, e pese embora a versão apresentada pela Demandante, ou seja, que o veiculo foi por si vendido sem garantia, (razão pela qual, reduziu o preço) não alegou e provou que a causa do defeito fosse imputável ao comprador, a terceiro ou devida a caso fortuito, ou ainda ocasionado por mau uso do demandado, razão pelo qual, iremos pronunciarmo-nos se a venda de bens sem garantia é permitida por lei.
A garantia legal é, em princípio de dois anos, podendo ser reduzida para um ano, no caso de bens móveis usados e quando as partes tenham acordado tal redução, a contar da data da entrega da coisa móvel corpórea, como é o caso de veículo automóvel (art. 5.º, n. os 1 e 2 do DL 67/2003).
Mais resulta dos normativos específicos relativos à proteção do consumidor: em caso de celebração de acordo de renúncia à garantia ou parte desta, prescreve o art.º 10.º do DL n.º 67/2003, de 8 de abril, que “é nulo o acordo ou cláusula contratual pelo qual antes da denúncia da falta de conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os direitos do consumidor previstos neste diploma”, o que pode ser declarado oficiosamente pelo tribunal (art. 286.º do Cod. Civil), nulidade que, se declara para todos os efeitos legais. Quanto a esta matéria a lei é imperativa. Razão pelo qual, face ao prescrito nas normas de proteção do consumidor, a venda de um veículo usado, não permite ao demandante ignorar que a renúncia às garantias é inválida.
Ou seja, o documento junto aos autos a fls. 40 (titulado de declaração de isenção de garantia, no qual se refere" …prescindindo por sua livre vontade, de quaisquer tipo de garantias…”) consubstancia uma renúncia nula, pois é um direito não disponível.
A lei civil prescreve também no artigo 227.º, no seu n.º 1 “Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.

Assim e pelo exposto, o valor peticionado pela demandante pela reparação no veiculo do demandado, não é legalmente devido, devendo ser suportado na integra por aquela, face à venda com defeito do veiculo em apreço.
Por tudo o que antecede, o pedido da Demandante improcede, e em conformidade absolve-se o demandado dos pedidos contra si deduzidos.

Do pedido de condenação de litigância de má-fé da demandante
Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d)Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou, protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
O conceito de litigância de má-fé, que pressupunha o dolo foi alargado, pela reforma processual de 1995, passou a abarcar as condutas processuais gravemente negligentes, pretendendo-se assim com o novo modelo processual de responsabilização e cooperação inter-subjectiva, a tipificar aqueles comportamentos processuais passíveis de obter um juízo de reprovação, das quais fazem parte as condutas dolosas, como também as gravemente negligentes, que determinam lesões na esfera jurídica das partes, bem como violadoras dos interesses públicos.
A condenação por litigância de má-fé não viola o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional, pois não é limitativa do direito de acção nem do direito ao processo, não envolvendo privação ou limitação do direito de defesa do particular.
A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos, sendo indiferente que, no caso concreto, o litigante tenha ou não razão, em um e outro caso gozam dos mesmos poderes processuais.
O direito de acção é um direito subjectivo autónomo, consagrado constitucionalmente – art. 20 CRP, mas uma coisa é o direito abstracto de acção ou de defesa, e outra, é o direito concreto de exercer a actividade processual.
O primeiro não tem limites, é um direito inerente à personalidade humana; o segundo sofre limitações impostas pela ordem jurídica, nomeadamente numa exigência de ordem moral, ou seja, é necessário que o litigante esteja de boa-fé ou suponha ter razão.
Se a parte agiu de boa-fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a sua conduta é lícita, suportando o encargo das custas, consequência do risco inerente no caso a sua pretensão não vingar.
Ao invés, se agiu de má-fé ou com culpa, se tinha consciência de que não tinha razão ou se não ponderou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta é ilícita, impondo o art. 542º C.P.C. que seja condenada em multa e numa indemnização à parte contrária se esta o pedir.
Efectivamente, não se verificaram os pressupostos exigidos para a condenação da demandante em litigante de má-fé, pois ficamos convencidos de que, a demandante desconhecia a letra da lei, no que diz respeito às garantias dos bens, além de que, no comércio de veículos é habitual o procedimento levado a cabo por esta, errado, como se vê.
Assim e sem necessidade de mais considerandos, este pedido improcede.

4 - DECISÃO
Em face do exposto e das disposições legais aplicáveis, julga-se a presente acção totalmente improcedente por não provada e em consequência:
- absolvo o demandado dos pedidos contra si deduzidos pela demandante,
- absolvo a demandante do pedido de condenação em litigância de má-fé, deduzido pelo demandado.

Custas:
O cargo da Demandante, que se declara parte vencida, nos termos e para os efeitos do n.o 8º da Portaria n.º 1456/2001, de 28-12.
Que deverão ser pagas, no Julgado de Paz, no prazo de 3 (três) dias úteis a contar da notificação desta sentença, sob pena do pagamento de uma sobretaxa diária de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no efectivo cumprimento dessa obrigação (n.os10 da Port. n.º 1456/2001, de 28-12; com a redacção dada pelo art. único da Port. n.º 209/2005, de 24-02).
Em relação ao Demandado, cumpra o disposto no n.º 9 da mesma portaria, com restituição da quantia de €35,00 anteriormente paga.

A sentença (processada em computador, revista e impressa pela signatária, foi proferida e notificada às partes presentes, nos termos do artigo 60º, da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, alterada pela Lei 54/2013 de 31 de Julho, ficando as mesmas cientes de tudo quanto antecede.

Registe.

Miranda do Corvo, 30 de Janeiro de 2015.

A Juíza de Paz,

(Filomena Matos)
Processado por meios informáticos.
(Art. 131.º, n.º 5 do CPC)
Revisto pela signatária. Verso em branco.