Sentença de Julgado de Paz
Processo: 246/2017-JPPRT
Relator: LUÍS FILIPE GUERRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
Data da sentença: 01/08/2018
Julgado de Paz de : PORTO
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

I. RELATÓRIO:
A, com os demais sinais identificativos nos autos, intentou a presente ação declarativa destinada a efetivar o cumprimento de obrigações contra B, melhor identificada a fls. 147, pedindo a condenação da mesma a pagar-lhe a quantia global de 14.278,00 €, sendo 13.048,00 € referente aos trabalhos preparatórios e de consolidação do solo descritos no orçamento com a referência 0000 e 1.230,00 € referente ao parecer técnico solicitado pelo demandante.
Para tanto, o demandante alegou os factos constantes do requerimento inicial de fls. 3 a 6, que aqui se dá por reproduzido, tendo juntado ao mesmo, documentos.
Regularmente citada, a demandada apresentou a contestação de fls. 127 a 130, que aqui se dá por reproduzida, invocando a exceção de litispendência e pugnando pela improcedência da ação.
Não se realizou a sessão de pré-mediação, dado que a demandada afastou expressamente essa possibilidade.
Posto isso, foi ordenada a apensação a estes autos do processo com o nº 0000, pendente entre as mesmas partes, no qual o demandante pede a condenação da demandada a pagar-lhe a quantia de 14.917,00 €, referente aos trabalhos de construção civil e redes de águas pluviais descritos no orçamento com a referência 0000.
Para tanto, o demandante alegou os factos constantes do requerimento inicial de fls. 3 a 6 desses autos, que aqui se dá por reproduzido, tendo juntado ao mesmo documentos.
Regulamente citada, a demandada apresentou a contestação de fls. … a … desses autos, que aqui se dá por reproduzida, pugnando pela improcedência da ação.
Neste caso, também não se realizou a sessão de pré-mediação, dado que a demandada afastou expressamente essa possibilidade.
Foi, por isso, marcada e realizada a audiência de julgamento, segundo as regras legais.
Entretanto, o demandante respondeu à exceção de litispendência deduzida pela demandada, pugnando pela sua improcedência, por entender não haver identidade dos pedidos.

II. SANEAMENTO DO PROCESSO:
Verificam-se os pressupostos de regularidade da instância, nomeadamente:
Este julgado de paz é competente em razão do objeto, do valor, da matéria e do território (cfr. artigos 6º nº 1, 8º, 9º nº 1 b) e 12º nº 1 da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas, sem prejuízo do esclarecimento quanto à identidade da demandada que é necessário fazer desde já: no requerimento inicial de cada um dos processos acima referenciados, o demandante identificou a demandada do seguinte modo: B, com sede na Rua X, Porto. Não obstante, na ação principal, a demandada contestou a ação como B, enquanto no processo apenso apresentou contestação como B, sem que tenha em nenhum dos casos arguido a sua ilegitimidade passiva. Ora, como é do conhecimento deste julgador, em virtude do exercício das suas funções (cfr. Proc. nº 596/2016), cada uma das referidas firmas corresponde a pessoas jurídicas diversas, embora inseridas no mesmo grupo empresarial. Porém, como decorre da sua própria denominação, cada uma destas sociedades comerciais exerce a sua atividade seguradora num ramo específico, a segunda no âmbito dos seguros de vida e a primeira no domínio dos demais tipos de seguros. Neste caso, em ambos os processos, a causa de pedir assenta num contrato de seguro multirriscos habitação, em que o objeto seguro é o prédio urbano sito na Avenida X, onde o demandante reside. Por outro lado, a sociedade comercial B tem a sua sede na cidade de Lisboa, enquanto a outra sociedade comercial está precisamente sediada na Rua X, Porto. Deste modo, tudo ponderado, não há dúvida que o demandante pretendeu propor a ação contra a B, tendo certamente incorrido em mero erro de escrita, o qual se releva, considerando os princípios orientadores dos processos dos julgados de paz (cfr. artigo 2º, nº 2 da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho e artigos 6º, nº 1 e 146º, nº 1 do CPC). Nessa medida, é esta sociedade comercial que tem legitimidade para ser demandada, por ter interesse direto em contradizer, considerando o objeto da ação. De resto, a mesma não manifestou dúvidas sobre a sua legitimidade, contestando nos mesmos termos por impugnação num e noutro processo, apesar de ter assumido identidades diversas, certamente por ter sido induzida em erro pelo introito do requerimento inicial que lhe foi remetido.
Não há nulidades ou outras questões prévias de que cumpra conhecer, salvo no que respeita à exceção de litispendência suscitada pela demandada no processo apenso, que se passa a apreciar desde já: como resulta dos artigos 580º, nº 1 e 581º do CPC, existe litispendência se houver repetição de uma causa, estando a anterior ainda em curso, sendo certo que a repetição pressupõe a identidade dos sujeitos processuais, da causa de pedir e do pedido. Neste caso, não há dúvidas sobre a identidade dos sujeitos e da causa de pedir. A questão controvertida reside na identidade ou não do pedido, havendo esta quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. Na situação em apreço, os pedidos são genericamente idênticos, porque se referem a uma pretensão indemnizatória emergente do mesmo facto jurídico, mas concretamente distintos, porque os respetivos valores diferem e respeitam a rubricas orçamentais - e, portanto, a despesas suportadas pelo demandante – diversas. Ora, “para sabermos se há ou não repetição da ação, deve atender-se não só ao critério formal (assente na tríplice identidade dos elementos que definem a ação) fixado e desenvolvido no artigo 581º, mas também à diretriz substancial traçada no nº 2 do artigo 580º, onde se afirma que a exceção da litispendência (tal como a do caso julgado) tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora. Manual de Processo Civil, 2ª edição. Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pág. 302, sendo da nossa responsabilidade a atualização da numeração dos artigos citados, por efeito da reforma introduzida no Código de Processo Civil pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho). Assim sendo, considerando a referida diretriz substancial e tendo em conta que não há neste caso risco de contradição de julgados, atendendo nomeadamente à apensação de ambas as ações e à diversidade concreta dos pedidos, considero não haver litispendência, julgando improcedente a exceção deduzida pela demandada.
Isto posto, fixo o valor da ação principal em 14.278,00 € e o do processo apenso em 14.917,00 €, sendo certo que os valores de ambos não se somam, por manterem cada um a sua autonomia processual, apesar da tramitação e apreciação conjunta, por efeito da apensação.

III. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA:
Discutida a causa, ficaram provados os seguintes factos:
1. O demandante contratou com a demandada um seguro multirriscos, titulado pela apólice nº 000, referente à sua habitação sita na Avenida X, na cidade do Porto, de que o mesmo é proprietário.
2. No final de Janeiro de 2017, ocorreu uma derrocada ao nível dos pisos do rés-do-chão e cave da habitação do demandante, num período de fortes e constantes chuvas na cidade do Porto.
3. A apólice de seguro acima identificada apresenta, entre outras, as seguintes coberturas/garantias: tempestades, inundações, danos por água e aluimento de terras.
4. O demandante procedeu à participação do sinistro em 26/01/2017, data em que ocorreu a derrocada de terra.
5. A demandada enviou um perito ao local.
6. Em 29/03/2017, o demandante recebeu a resposta da demandada, decidindo declinar a sua responsabilidade, por considerar que os prejuízos estão excluídos do contrato.
7. O artigo 39º das condições gerais do referido contrato de seguro estabelece, sob a epígrafe “Aluimentos de terras” que: “1. Esta cobertura garante os danos sofridos pelos bens seguros em consequência de aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundamentos de terrenos; e 2. Exclusões: Para além das exclusões previstas no artº 6º, ficam ainda expressamente excluídas do âmbito desta cobertura os danos: a) resultantes de colapso total ou parcial das estruturas seguras, não relacionadas com os riscos geológicos garantidos; (…) e d) em bens seguros que estejam sujeitos a ação contínua da erosão e da ação das águas, salvo se o segurado fizer prova de que os danos não têm qualquer relação com aqueles fenómenos”.
8. A demandada não facultou ao demandante cópia do relatório de peritagem por se tratar de “um documento interno da Companhia”, conforme aquela lhe comunicou por correio eletrónico.
9. O demandante solicitou e suportou os custos de um parecer técnico acerca do sinistro, no total de 1.230,00 €.
10. Nesse parecer, o seu autor conclui que “apesar de a profundidade do aluimento ser de aproximadamente 3,00 metros, da inspeção visual e superficial que se efetuou no local, não se constatou qualquer cedência de outros elementos estruturais, fissuração ou descolamento de revestimentos, levantamento de cerâmicos ou qualquer outro sinal visível que evidencie danos severos no interior do imóvel ou na sua estrutura de suporte”.
11. Os danos por água estão cobertos, nos termos da referida apólice de seguro, quando os mesmos (além do seu caráter súbito e imprevisto) provenham de rotura, defeito, entupimento ou transbordamento da rede interna de distribuição de água e de esgotos do edifício.
12. No caso de danos por água, há uma franquia de 75,00 € a cargo do segurado.
13. O demandante despendeu a quantia global de 21.615,87 €, IVA incluído, pelos trabalhos de reabilitação da sua habitação, nomeadamente trabalhos preparatórios e de consolidação do solo e trabalhos de construção civil e redes de águas pluviais.
Os factos provados assentam, por um lado, no acordo das partes (n.os 1 e 3 a 8) e, por outro, nos documentos constantes dos autos (n.os 9, 10, 11, 12 e 13), nomeadamente parecer técnico e justificativo, bem como respetiva nota de honorários e comprovativos do seu pagamento; apólice de seguro; e, por último, orçamento, faturas e respetivos comprovativos de pagamento.
Foram ainda valorados os depoimentos das testemunhas C, engenheiro civil, autor do parecer técnico e justificativo acima aludido; D, gerente da empresa que procedeu aos trabalhos de construção civil tendentes a reabilitar a casa de habitação do demandante; E, filha do demandante e com ele residente; A, filho do demandante que acompanhou as diligências posteriores ao sinistro para resolver a situação; F, perito que se deslocou ao local a pedido da demandada; e G, profissional de seguros, do conjunto dos quais se pôde concluir que ocorreu a ruína parcial da casa de habitação do demandante, por efeito de aluimento ou afundamento das terras que serviam de sustentação à fundação do pilar da varanda, arrastando a queda deste e da estrutura por este suportada, e que o mesmo procedeu à reparação do bem imóvel seguro, tendo despendido com isso a quantia de 21.615,87 €, além de ter solicitado um parecer técnico, em face da posição da demandada, pelo qual pagou a quantia de 1.230,00 €. No geral, a primeira e penúltima testemunha concordaram que o sinistro não se ficou a dever à chuva caída naquele inverno, divergindo quanto ao papel que a precipitação pode haver tido ao longo do tempo e da interferência ou não de um veio subterrâneo, tendo o tribunal dado crédito ao parecer elaborado pela primeira e corroborado pela mesma na audiência de julgamento, dada a forma sustentada como o mesmo foi apresentado. Por outro lado, na medida em que não se detetou sinais de fissuração da estrutura do edifício, nomeadamente nos outros pilares, não se encontrou sustentação para a tese da ruína por falta de conservação ou por exposição direta à erosão contínua da água da chuva.
Finalmente, esclarece-se que o facto nº 13 resultou da discussão da causa, tendo sido considerado ao abrigo do artigo 5º, nº 2 do CPC, dado o seu caráter complementar e concretizador da causa de pedir.

IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
O artigo 1º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, estipula que por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, enquanto o tomador do seguro se obriga a pagar o prémio correspondente.
Por outro lado, o sinistro corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato, devendo ser participado pelo tomador do seguro ou segurado à seguradora, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento do sinistro (cfr. artigos 99º e 100º, nº 1 do mesmo diploma legal).
Ora, além da prova do prejuízo sofrido, o tomador ou o beneficiário do seguro tem de provar a ocorrência do sinistro, nos termos gerais (cfr. Pedro Romano Martinez. Direito dos Seguros. Lisboa, Principia, 2006, pág. 101), incluindo a sua cobertura pela respetiva apólice. De facto, o artigo 342º, nº 1 do Código Civil faz recair a prova dos factos constitutivos do direito alegado sobre aquele que o invoca. Por sua vez, cabe à seguradora o ónus da prova da verificação das exclusões previstas no contrato de seguro (cfr. nº 2 do mesmo preceito legal). Por outro lado, não se pode esquecer que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova se resolve contra a parte a quem o facto aproveita (cfr. artigo 414º do Código de Processo Civil).
Neste caso, o demandante logrou demonstrar que ocorreu a ruína parcial da sua casa de habitação por efeito do aluimento das terras que sustentavam o pilar de suporte de uma varanda. Com efeito, a testemunha C, que elaborou o parecer técnico e justificativo de fls. 48 a 54 dos autos principais, concluiu no mesmo que o sinistro “se deveu a um aluimento de terras, provocado pelo colapso de uma galeria subterrânea, criada pela circulação descontrolada de água de nível freático a profundidades de 3 a 6 metros, que foi influenciada e alterada pelas construções sucessivas que foram executadas nos terrenos vizinhos ao longo dos últimos anos”. Em apoio desta tese, esta testemunha escreveu no seu parecer que, sem dúvida, “estamos na presença de uma situação de cedência cumulativa de solos, fundações de pilares, muros de suporte e, por fim, de pavimentos por efeito de correntes de água livre a grandes profundidades. (…) Por se tratar de um processo cumulativo de progressão acelerada com o tempo, só quando a cavidade subterrânea atingiu uma dimensão crítica é que foi possível constatar a sua existência à superfície, sendo, no entanto, tarde demais para evitar as suas consequências”. Ou seja, sem a formação de uma cavidade subterrânea, por ação de veios subterrâneos de água, que levou ao colapso por arrastamento de todo o estrato superior e, consequentemente, de todas as estruturas que nele se apoiavam, não teria ocorrido a queda do referido pilar e da estrutura por ele sustentada. De resto, a queda do pilar e da referida estrutura foi acompanhada da formação de uma cratera no solo, por afundamento das terras.
Deste modo, a discussão da causa centra-se basicamente em saber se ocorreu alguma das exclusões tipificadas nas condições gerais do contrato de seguro, nomeadamente no artigo 39º, nº 2 das mesmas. De facto, a demandada procurou sustentar que se verificavam as exclusões previstas nas alíneas a) e/ou d) daquela disposição contratual. No primeiro caso, é bom de ver que a mesma não se verificou, uma vez que o colapso parcial do edifício seguro esteve relacionado com os riscos geológicos garantidos, nomeadamente os aluimentos, derrocadas e afundamento de terrenos. A segunda exclusão merece outra ponderação, mas, ainda assim, entendemos que a mesma não se demonstrou. Com efeito, a testemunha F, em cujo relatório de peritagem a demandada se ampara, depôs no sentido de ter sido a erosão ao longo do tempo que fez deslocar o solo da fundação. Esta testemunha sustentou que as chuvas do inverno de 2017 não eram suficientes para produzir o enfraquecimento da base de suporte que causou a derrocada, mas entendeu que o efeito prolongado das mesmas teria causado a erosão causadora do sinistro. Porém, se bem interpretamos a referida disposição contratual, nos termos dos artigos 236º a 238º do Código Civil, a erosão ou a ação das águas só é causa de exclusão se as mesmas incidirem diretamente sobre os bens seguros. Ou seja, neste caso, se o bem seguro tivesse colapsado por estar exposto à ação direta da erosão ou ação das águas, mas não foi esse o caso, uma vez que se deu a cavitação subterrânea do solo e foi esse fenómeno geológico que determinou o afundamento das terras em que se apoiavam as fundações do pilar que ruiu.
Deste modo, fica demonstrado não só o enquadramento do sinistro na apólice de seguro contratada como também a inexistência de exclusões à sua aplicação ao sinistro em causa.
Nessa medida, a demandada tem que indemnizar o demandante no valor dos trabalhos necessários para repor o bem seguro no estado em que estaria se não tivesse ocorrido o evento danoso. Para esse efeito, o demandante despendeu a quantia de 21.615,87 €, pelo que será esse o montante indemnizatório devido pela demandada. Na verdade, o preço da reconstrução da rede de águas pluviais circunscreve-se à parte da mesma que foi danificada por efeito do sinistro, como resulta do respetivo orçamento, pelo que o demandante deve ser ressarcido da mesma. Por contraste, a despesa relativa ao parecer técnico e justificativo pedido pelo demandante não está coberto pela apólice de seguro nem constitui um efeito direto e necessário do facto danoso (cfr. artigo 103º, nº 4 das condições gerais do contrato de seguro), pelo que não é da responsabilidade da demandada.

V. DECISÃO:
Nestes termos, julgo as presentes ações parcialmente procedentes e provadas e, consequentemente, condeno a demandada a pagar ao demandante a quantia indemnizatória global de 21.615,87 € (vinte e um mil seiscentos e quinze euros e oitenta e sete cêntimos), absolvendo-a do demais peticionado.
Custas por demandante e demandada na proporção do respetivo vencimento, fixando as mesmas em 25% para o primeiro e 75% para a segunda em cada um dos processos (cfr. artigos 607º, nº 6 do CPC e 8º da Portaria nº 1456/2001, de 28 de Dezembro).
Registe e notifique.
Porto, 8 de Janeiro de 2018

O Juiz de Paz,


(Luís Filipe Guerra)