Sentença de Julgado de Paz
Processo: 294/2016-JPCBR
Relator: MARGARIDA SIMPLICIO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Data da sentença: 12/22/2017
Julgado de Paz de : COIMBRA
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
RELATÓRIO:

O demandante, A, NIF. xxxx, residente no xxx, Bloco d-2, 4º Esq., em Coimbra.

Requerimento Inicial: Alega em suma que, no dia 1/06/2016 apanhou o comboio regional em Coimbra com destino ao Entroncamento, mas como não teve tempo para ir á bilheteira, perguntou ao maquinista se era possível ir no comboio, que lhe respondeu fale com o revisor, fechando a porta da cabine. O revisor abordou o cliente, ora demandante, antes da estação de Taveiro, como não tinha dinheiro perguntou se era possível pagar com multibanco. O revisor reagiu de forma inusitada, dirigindo-se á porta do comboio, incitou o demandante a sair e levantar dinheiro, ao que perguntou onde era o multibanco, respondendo-lhe que estava no edifício em frente. O demandante, embora não conhecesse o local, acabou por sair, deparando-se com silvas em redor do tal edifício, entretanto o comboio partiu, sem que tivesse tempo para mais. Perante tal facto, sentiu-se humilhado pelo revisor perante os outros passageiros que estavam no comboio, pois tornou-se evidente que no local não havia nenhum multibanco e que o revisor tinha conhecimento desse facto, sabendo que o comboio não estaria parado tempo suficiente para levantar dinheiro, pretendia fazer o “número de exercício de poder” humilhando-o e escorraçando-o do comboio. O demandante ficou apeado na estação de Taveiro, tendo de esperar que passasse outro comboio regional para Coimbra, pois já não conseguia fazer o que tinha programado para esse dia. A C.P. enquanto empresa pública tem a obrigação de prestar um serviço público, tratando o utente com dignidade, o que não aconteceu. O revisor devia ter apresentado alternativa ao utente, sem prejudicar a C.P., nomeadamente que teria de compara bilhete na estação, caso não pudesse pagar em numerário. Em último caso deve abordar o utente com educação e respeito, esclarecendo que teria de abandonar o comboio na próxima paragem. O demandante apresentou nesse dia reclamação junto da C.P., solicitando uma audiência, de forma a ser reposta a dignidade do utente, porém obteve como resposta não ter conhecimento de qualquer comportamento incorreto do revisor, não marcando audiência e encerrando o assunto. Conclui pedindo: deve a demandada ser condenada a pagar uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 15.000€. Junta 4 documentos.

MATERIA: Responsabilidade civil extracontratual, enquadrada no art.º 9, n.º 1 alínea H) da L.J.P.

OBJETO: Indemnização por danos não patrimoniais.

VALOR DA AÇÃO: 15.000€.

A demandada, B- xxx de Portugal- E.P.E., NIPC. xxxx com sede na Av. xxxx, n.º 20, em Lisboa, devidamente representada por mandatário.

Contestação: Alega a incompetência material do Julgado, pois não existe uma obrigação contratual, não se enquadrando o pedido nas matérias ínsitas no art.º 9. A demandada tem como objetivo a prestação de serviços de transporte rodoviário de passageiros e mercadorias, atividade que se encontra regulamentada pelo D.L. 58/2008 de 26/03. O demandante confessou que no dia 1/06/2016 entrou no comboio regional sem se munir do respetivo titulo de transporte e sem a quantia necessária em numerário, bem sabendo que o devia fazer antes de iniciar a viagem. Mesmo assim, entrou e abordou o ORV, questionando se podia adquirir bilhete a bordo, o que lhe foi respondido que sim, mas já devia estar munido do mesmo. Em andamento o demandante quis adquiri o bilhete, mas como não tinha dinheiro queria pagar com multibanco, pelo que foi informado que tinha de sair na estação seguinte, pois só podia efetuar o pagamento em numerário, de acordo com o regulamento que está disponível e acessível ao público. Ao chegar á estação de Taveiro, foi-lhe o indicado a caixa multibanco onde se devia dirigir para pagar o bilhete. O OPV facilitou o embarque no pressuposto que lhe venderia o titulo, por ter condições para efetuar a aquisição, desconhecendo que o demandante não tinha dinheiro para o pagar, e pretendi faze-lo por meio de multibanco, pois se tivesse conhecimento disso não teria embarcado, pois é do conhecimento público que os utentes são obrigados a munirem-se de titulo de transporte antes de efetuar a viagem. Os factos alegados não podem ser imputados á demandada, pois o demandante até cliente habitual, como refere, logo não pode desconhecer que deve adquirir o titulo de transporte na bilheteira, ou por outro meio antes de efetuar a viagem. Para além disso, deve conferir os dados constantes do titulo no ato da compra, e pedir antecipadamente o NIF na fatura, qualquer reclamação deve ser realizada no ato da compra, e o pagamento é feito em meda corrente ou outro meio aceite pela C.P. Para além disso, a aquisição de bilhetes a bordo só é permitida caso a venda não esteja disponível no local do embarque ou na área circundante á estação, nesse caso o utente deve dirigir-se ao agente da C.P. para solicita a aquisição do titulo, pagando-o em numerário, sob pena de ser considerado passageiro sem bilhete. Desconhece qual o compromisso que naquele dia levou o demandante a não adquirir o bilhete, algo que ele sabia que devia fazer. Quanto aos danos não patrimoniais, não aceita qualquer responsabilidade, além de ser exageradíssimo o valor do pedido. Uma vez que não há culpa, não deve recair sobre a demandada qualquer obrigação de indemnizar. Conclui pela improcedência da ação. Junta 2 documentos.

TRAMITAÇÃO:

Realizou-se sessão de mediação sem obtenção de acordo.

As partes são legitimas e dispões de capacidade judiciária.

O Tribunal é competente em razão do valor e território.

Os autos estão isentos de qualquer irregularidade que o invalidem na sua totalidade.

AUDIENCIA DE JULGAMENTO:

Foi iniciada dando cumprimento ao disposto no art.º 57, n.º 1 da L.J.P., sem obter consenso das partes, pelo que se seguiu para produção de prova, terminando com breves alegações, conforme ata de fls. 57 e 58.

-FUNDAMENTÇÃO-

I-DOS FACTOS ASSENTES (Por Acordo):

A) No dia 1/06/2016, o demandante entrou no comboio regional em Coimbra.

B) O demandante não tinha titulo de transporte.

C) O demandante, no interior do comboio, abordou o operador de revisão e venda para adquirir o bilhete.

D)Sendo-lhe respondido que sim.

E) O demandante no decurso da viagem pretendeu efetuar o pagamento do bilhete com multibanco.

F) O ORV indicou que na estação de Taveiro havia multibanco.

G) E, que tinha de sair para levantar dinheiro e pagar o bilhete.

H) O demandante saiu do comboio.

I) O comboio prosseguiu viagem.

II-FACTOS PROVADOS:

1)O demandante apresentou reclamação no dia 1/06/2016.

2)A demandada respondeu via email á reclamação do demandante.

3)Informando que não tinha conhecimento de procedimento incorreto da parte do revisor.

MOTIVAÇÃO:

Por ausência de prova testemunhal, apenas relevou as declarações do demandante (art.º 57, n.º 1 da L.J.P) conjugadas com a prova documental e as regras da experiência comum.

Os factos considerados como provados resultam dos documentos n.º 1, 2 e 3, juntos de fls. 4 a 6.

Os factos que não se encontram dados como provados, resultam da total ausência de prova.

III-DO DIREITO:

Questão previa:

A demandada, alegou a falta de competência em razão da matéria.

Estamos face a uma questão de natureza processual, exceção dilatória (art.º 577, alínea a) do C.P.C.) que precede a apreciação do mérito da ação, pois.A LJP regula as matérias que são da competência dos Julgados de Paz no art.º 9.Entre outras destaca-se, o constante na alínea H), que inclui as ações respeitantes à responsabilidade civil contratual e extracontratual. No âmbito desta alínea inclui-se uma panóplia de situações. A responsabilidade contratual, embora se possa enquadrar noutras alíneas, possui aqui um sentido mais abrangente, referindo-se a qualquer situação em que se pretenda apurar a responsabilidade de uma das partes numa relação contratual. A responsabilidade extracontratual, pressupõe uma indemnização por danos (patrimoniais ou não patrimoniais) decorrestes de facto ilícito ou de risco.No caso em apreço o demandante formula um pedido de indemnização, por danos não patrimoniais, a qual tem por base não o contrato de transporte, o qual admite não se ter realizado, mas sim no comportamento de um funcionário da demandada, apresentando assim a sua versão dos factos. É por esta que se afere a natureza do litigio em questão, ou seja, pelo conjunto do pedido e causa de pedir, tal como são formulados no r.i.Assim, entendo que a presente ação enquadra-se na alínea supra citada, nomeadamente na responsabilidade extracontratual, sendo esta uma das matérias que os Julgados de Paz podem apreciar.

Acresce a este, o teor do art.º 31 do Dec. Lei 58/2008 de 26/03 com as alterações do Dec. Lei 35/2015 de 6/03, que regula as condições de realização e utilização do transporte de passageiro por caminho de ferro, que inclusive prevê a possibilidade dos conflitos entre os passageiros e os operadores poderem ser resolvidos por recurso a meios alternativos de resolução de conflitos, no que se inclui os Julgados de Paz, enquanto Tribunais com caraterísticas especiais. O que a demandante refere é algo diferente, pois o pedido tem de se alicerçar em factos, os quais devem preencher os requisitos legais da responsabilidade civil. A analise e verificação dos requisitos legais da responsabilidade civil (contratual ou extracontratual) enquadra-se na apreciação do mérito da ação e não na analise da competência material. Perante o exposto, terei de indeferir a exceção dilatória deduzida, considerando o Julgado de Paz de Coimbra competente, em razão da matéria, para apreciar os presentes autos. No que diz respeito á matéria em questão, o demandante alegou sentir-se humilhado pela forma como foi tratado pelo revisor, sendo este o motivo pelo qual pede ser indemnizado. O princípio geral que rege a matéria da responsabilidade civil é o consignado no artigo 483° do C.C. segundo o qual “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”, incumbindo ao lesado provar a culpa do autor da lesão, de acordo com o disposto no art.º 487, nº1, do C.C.Constituem pressupostos do dever de reparação resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos: a existência de um facto voluntário do agente e não de um facto natural causador de danos; a ilicitude desse facto; a existência de um nexo de imputação do facto ao lesante; que da violação do direito subjetivo ou da lei resulte um dano; que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima de forma a poder concluir-se que este resulta daquela, in Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I Vol., 1986, 477/478.Neste instituto, no que concerne á culpa, a regra geral é que pertence ao lesado efetuar a prova (art.º 487, n.º 1 do C.C.), salvo se existir presunção de culpa do lesante, o que implica a inversão do ónus probatório (art.º 350, n.1 do C.C.).Atente-se, ainda, ao disposto no art.º 800, n.º 1 do C.C. nos termos do qual o devedor é responsável pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize, como se tais actos fossem praticados pelo próprio.Assim, como o conteúdo do art.º 496, n.º 1 do C.C., nos termos do qual a fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito. De acordo com os factos dados como assentes, o demandante pretendia celebrar com a demandada um contrato de transporte ferroviário.O contrato de transporte é uma convenção pela qual uma das partes (transportador) se obriga perante a outra (expedidor/interessado), tendencialmente, mediante retribuição, a deslocar pessoa ou coisa, de um local para outro.Este tipo de contrato, enquanto modalidade especifica do contrato de prestação de serviço, pressupõe o pagamento de um preço, ou seja, o bilhete (titulo) correspondente á viagem que se pretende realizar (art.º 1154 do C.C. e art.º 7 do Dec. Lei 58/2008 de 26/03).E, sem o titulo inexiste a obrigação do prestador de realizar o serviço pretendido pelo utente, na medida em que este é um contrato oneroso, e sinalagmático, quer isto dizer que existe uma correlação entre a obrigação do utente de pagar a viagem (preço) com a obrigação do prestador de serviço, de possibilitar a utilização daquele meio de transporte para o destino pretendido pelo utente.Para o efeito, o operador está obrigado a disponibilizar a aquisição de títulos de transporte, nomeadamente através de bilheteiras de atendimento ao público ou de máquinas de venda automática de títulos de transporte, ou por terminal Multibanco, e caso seja possível através da Internet ou qualquer outra tecnologia de informação generalizadamente acessível.Porém, quando na estação de embarque não exista bilheteira ou máquina de venda automática de títulos de transporte, o operador obriga-se a permitir ao passageiro a aquisição do respetivo título em trânsito.Ora não foi isto que sucedeu, pois de acordo com o demandante não tinha tempo para ir á bilheteira comprar o bilhete, veja-se o que afirma no 2º paragrafo do r.i.Quer isto dizer que, em primeiro lugar havia a obrigação do demandante de, previamente adquirir o bilhete na estação, não sendo a falta de tempo (sem se perceber em que é que esta consistia), motivo legal para o desonerar dessa obrigação.Não obstante, entrou no comboio, e nele pretendia fazer viagem até ao respetivo destino, o que se depreende do contexto geral dos factos que expos.Ao ser questionado pelo revisor (ORV) no decurso da viagem, o demandante pretendeu pagar a bordo, mediante a utilização de cartão de débito, multibanco.Ora, não existe nada na lei que obrigue aqueles profissionais a estarem munidos de tal equipamento, sendo que este meio de pagamento está acessível nas estações (art.º 4, n.º 5 do Dec. Lei 58/2008 de 26/03).Quanto á forma como o demandante foi convidado a sair do comboio, não há qualquer prova de que o profissional tenha proferido alguma palavra injuriosa, aliás o demandante apenas afirma que foi incitado para levantar dinheiro. E, quanto a este facto não constituiu qualquer motivo legal de censura, já que este seria o único modo que o demandante teria para cumprir com a sua obrigação. Note-se que em caso de incumprimento pelos passageiros dos deveres que lhes incumbem, nomeadamente no caso de interfir com a boa ordem do serviço de transporte, os operadores encarregues da fiscalização (ORV) podem determinar a respetiva saída do comboio, recorrendo à força de segurança pública competente em caso de incumprimento dessa determinação, facto que presumo não ter sucedido, já que nenhuma das partes o referiu.E, acrescente-se que qualquer passageiro sem título de transporte válido fica sujeito às sanções previstas na Lei n.º 28/2006, de 4/07, que regula as condições de utilização do título de transporte, válido nos transportes coletivos, como é o caso dos comboios.

É natural que, o demandante, ao sair daquele meio de transporte, naquelas circunstancias, e estando outros passageiros no mesmo local que, eventualmente possam ter presenciado a situação, tenha-se sentido, como refere, humilhado, ou mesmo, rebaixado.

Não obstante, para que o acto praticado pelo revisor possa ser passível de censura jurídica teria que preencher os requisitos legais do art.º 483 do C.C., nomeadamente a violação de um direito do demandante ou de alguma disposição legal.

Do conjunto dos factos assentes e provados, nada indicia que aquele o tivesse feito, pelo que sem este requisito legal, não faz sentido verificar o apuramento de mais nenhum requisito legal, já que se tratam de requisitos cumulativos.

DECISÃO:

Nos termos expostos julga-se a ação improcedente, absolvendo-se a demandada do pedido.

CUSTAS:

São da responsabilidade do demandante, devendo proceder ao pagamento da quantia de no prazo de 3 dias úteis, sob pena de lhe ser aplicado a sobretaxa na quantia de 10€ (dez euros) diários nos termos da Portaria n.º 1456/2001 com as alterações da Portaria 209/2005 de.

Em relação à demandada, proceda-se em conformidade com o art.º 9 da Portaria n.º 1456/2001 de 28/12.

Proferida e notificada nos termos do art.º 60, n.º 2 da L.J.P.

Coimbra, 22 de dezembro de 2017

A Juíza de Paz

(redigido pela signatária, art.º 131, n.º5 do C.P.C.)

Margarida Simplício