Sentença de Julgado de Paz
Processo: 216/2017-JPCSC
Relator: MARIA ASCENSÃO ARRIAGA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
REMISSÃO PARCIAL DE DÍVIDA
Data da sentença: 03/07/2018
Julgado de Paz de : CASCAIS
Decisão Texto Integral: --- SENTENÇA ----
I - RELATÓRIO (PARTES E OBJETO DA AÇÃO)
A aqui Demandante, Maria, com o NIF 000, propôs a presente ação contra Sandra, com o NIF, 000 e Paulo, com o NIF 000, casados entre si e aqui Demandados, pedindo a condenação destes a pagarem-lhe €15.000 referentes a um contrato de mútuo celebrado entre Francisco, pai da aqui Demandante, e a Demandada.
Alega, em resumo, que, em janeiro.2012, a Demandante, o seu pai e a Demandada reuniram-se, a pedido desta, em casa da primeira para que a Demandada pedisse um empréstimo de €25.000 a Francisco, já falecido, tio e padrinho da Demandada. O pai da Demandante aceitou o pedido da Demandada e em 19.janeiro.2012, foi transferida da conta bancária do pai da Demandante para a conta da Demandada a indicada quantia. Ficou acordado que a Demandada restituiria o valor mutuado no espaço de um ano. A Demandada nada restituiu. O pai da Demandante faleceu em 16.outubro.2013, tendo-lhe sucedido a Demandante, sua filha e única herdeira. Mantendo a expectativa de reaver a quantia mutuada, a Demandante, no Natal de 2013, ofereceu €5.000 a cada um dos aqui Demandados para que fossem descontados ao valor do empréstimo, ficando desta forma, a dever-lhe apenas o remanescente de €15.000. Pretende ver declarado nulo o contrato de mútuo aqui em apreço por inobservância de forma e a devolução do montante de €15.000. Junta seis documentos (de fls. 5 a 16) e procuração forense.
Regularmente citados, os Demandados contestaram na qual confessam que o pai da Demandante emprestou à Demandada Sandra, a seu pedido e por motivo de dificuldades financeiras, a quantia de €25.000, para que esta a devolvesse quando pudesse. Em fevereiro.2013 foi agendada nova reunião em casa da Demandante para que a Demandada pudesse apresentar a razão pela qual os Demandados ainda não tinham procedido ao pagamento do valor de €25.000. Acabada a reunião, o tio e padrinho da Demandada, Francisco e a Demandada saíram juntos de casa da Demandante e ficaram a falar na entrada do prédio altura em que o seu tio lhe disse que esta não precisava mais de devolver-lhe o dinheiro o qual passaria, a partir daquele momento, a ser uma oferta. Esta doação teria, no entanto, e a pedido do tio e padrinho, de ser mantida em segredo da aqui Demandante, sua filha. Confessam a oferta de €5.000, a cada um, efetuada pela Demandante alegando que interpretaram esse gesto como consequência de esta desconhecer o ato de doação de seu pai. Concluem pela improcedência da ação por falta de prova da existência do contrato de mútuo em apreço. Juntam um documento (fls. 61/62 - junto com a contestação original) e procuração forense.
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A Demandante requereu a junção de 2 documentos (cf. fls. 67 a 69) sobre os quais os Demandados se pronunciaram a fls. 72 a 74.
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Os Demandados afastaram, na contestação, a fase de mediação.
A audiência de discussão e julgamento compreendeu duas sessões, incluindo a presente, para prolação de sentença, nas quais foi tentada a conciliação das partes, inquiridas três testemunhas e produzidas alegações orais.
Cumpre apreciar e decidir, atenta a competência deste Julgado de Paz (artigo 7º da Lei 78/2001, de 13.07 alterada pela Lei 54/2013, de 31.07).
Está em causa saber se a Demandante tem direito à devolução do montante de €15.000, correspondentes ao mútuo celebrado entre o seu pai e a Demandada menos o valor de €10.000 inerentes à oferta feita pela Demandante aos Demandados. Para tal, releva saber, por um lado, se o contrato de mútuo existe e se, existindo, é válido e, por outro, se efectivamente ocorreu uma conversão do contrato de mútuo para uma doação.

II- ENQUADRAMENTO DE FACTO
Factos provados
Não obstante a alegação de diversa factualidade, resultou da discussão em audiência de julgamento que os factos relevantes para a decisão da causa, porque provados, são os seguintes:
1. Em janeiro.2012 a Demandada, em casa da Demandante e na sua presença, pediu emprestada a Francisco, pai da Demandante e tio e padrinho da Demandada, a quantia de €25.000 (vinte e cinco mil euros);
2. O pai da Demandante aceitou emprestar à Demandada a indicada quantia e no dia 19.janeiro.2012, foi feita uma transferência bancária, no valor de €25.000, da conta do pai da Demandante para a conta da Demandada, com o NIB 00 (cf. doc. 1 do requerimento Inicial (RI) a fls. 5 dos autos);
3. A Demandada comprometeu-se a devolver essa quantia ao seu falecido tio e padrinho;
4. O empréstimo não foi feito com o intuito de ajudar os Demandados com a compra de uma habitação (cf. doc.1 da contestação a fls. 61/62 dos autos);
5. Passado um ano da celebração do contrato de mútuo e até à data de hoje, os Demandados não procederam ao pagamento do valor mutuado;
6. Em fevereiro.2013, perto do Carnaval, houve uma nova reunião em casa da Demandante com o seu pai e a Demandada, a pedido desta, no sentido de se perceber o porquê de não ter sido feita a restituição do valor mutuado;
7. Nessa conversa a Demandada não apresentou qualquer solução ou proposta de pagamento;
8. O pai da Demandante ficou apreensivo com a falta de pagamento e de solução;
9. Em 16.outubro.2013, Francisco , pai da Demandante e tio e padrinho da Demandada, faleceu (cf. doc. 3 do RI a fls. 7 dos autos);
10. A aqui Demandante é filha e única herdeira de Francisco (cf. cópia de escritura de habilitação de herdeiros instruída com testamento que constitui o doc. 4 junto com o RI a fls. 8/13 dos autos);
11. No Natal.2013 a Demandante ofereceu €5.000 a cada um dos Demandados para que estes pudessem abater ao valor mutuado o que o Demandado marido agradeceu pessoalmente à Demandante;
12. Em 12.abril.2017 a Demandante enviou aos Demandados, por correio registado com aviso de receção, uma carta, que estes receberam, na qual lhes pedia a devolução do dinheiro mutuado (cf. doc. 6 e 7 do RI a fls. 15/16 dos autos);
13. Os Demandados não responderam à carta da Demandante (docs. De fls. 15 e 16);
14. As conversas de janeiro.2012 e de fevereiro.2013 ocorreram em casa da Demandante, a pedido da Demandada porque esta sempre quis manter a prima e madrinha ao corrente de todas as situações.
Factos não provados
Não se consideram provados os factos alegados que estejam em contradição com os supra elencados não relevando, para o efeito, as conclusões e juízos formulados pelas partes nos articulados.
Em particular, não ficaram provados os seguintes factos:
A. Após a segunda reunião em casa da Demandante, a Demandada e o seu tio e padrinho saíram juntos e ficaram a conversar na entrada do prédio;
B. Durante essa conversa, o tio e padrinho da Demandada disse-lhe que esta não mais precisava de lhe devolver o valor mutuado;
C. Ainda no seguimento desta conversa, o tio e padrinho pediu à Demandada que mantivesse esta doação em segredo, particularmente da sua filha e aqui Demandante, por estes não terem a melhor das relações.
Motivação dos factos provados e não provados
O tribunal ponderou a documentação junta aos autos, as confissões das partes que resultam dos articulados e as suas declarações em audiência de julgamento na parte em que foram coincidentes, mormente a confirmação, pelos Demandados, de um empréstimo de €25.000, feito pelo pai da Demandante à Demandada; a realização de duas reuniões em casa da Demandante e a oferta de €5.000 a cada um dos Demandados por parte da Demandante. Disseram ambos os Demandados que atribuíram ao gesto da Demandante – entrega de um cartão de €5.000 com uns dizeres que não conseguiram precisar - a intenção de “abater esse valor à dívida de €25.000” afirmando, embora, que era uma dívida que a prima pensava existir e que só eles sabiam que já não existia. Foram relevantes os depoimentos testemunhais os quais se afiguraram verdadeiros, imparciais e isentos. A testemunha Maria Filomena, amiga da Demandante há cerca de 20 anos e com a mesma profissão e que conhecia mal a Demandada, disse saber que o pai da Demandante tinha emprestado €25.000 a esta e que ficou a saber disso porque em fevereiro.2013, numa tarde em que havia combinado trabalhar com a Demandante por serem ambas professoras, chegou a casa desta e deparou-se com o Sr. Francisco e a sua filha bastante “consternados e abatidos”. Disse que o próprio Francisco lhe confidenciou que havia emprestado €25.000 à sua sobrinha e afilhada Sandra para ela lhe devolver no prazo de um ano e que agora se encontrava bastante desiludido com ela por esta não lhe ter pago nada e não ter sequer feito uma proposta de pagamento. Confirmou ser do seu conhecimento, através da Demandante, que esta presenteou os Demandados, no Natal de 2013, com um total de €10.000 no sentido de lhes facilitar o pagamento da dívida. Por fim, depois de ter sido questionada sobre qual a altura em que tomou conhecimento da existência do empréstimo, apesar de não ter conseguido apresentar uma data com total exactidão, referiu que foi pouco antes de ter sido submetida a uma intervenção cirúrgica em março de 2013 e que, depois de ter conhecimento do caso a Demandante passou a conversar com ela sobre o assunto.
No respeitante aos depoimentos das testemunhas apresentadas pelos Demandados, não obstante o facto de se terem afigurado verdadeiros e não tendenciosos, não criaram neste Tribunal a convicção necessária para dar como provada a alegação de ter sido “perdoada” ou “doada” à Demandada Sandra, por seu tio, a quantia que lhe havia sido emprestada, já que apenas reproduziram o que a Demandada lhes havia contado e, quando questionados sobre a altura em que tomaram conhecimento dos factos objecto do litígio, não conseguiram precisar uma data, não ficando assim claro para o presente Tribunal se este conhecimento ocorreu aquando do decorrer dos factos, ou se já na pendência desta ação. Os factos atinentes à extinção do empréstimo, por serem favoráveis aos Demandados, não se podem dar por provados apenas através das suas próprias declarações uma vez que não são coincidentes com as da Demandante. Acresce que, no circunstancialismo que foi apurado, se afigurou inverosímil ao tribunal que o falecido tivesse pretendido ocultar de sua filha a pretensa doação/perdão da dívida à prima desta ou que as relações entre pai e filha não fossem boas ou que este não cuidasse de proteger o património hereditário a favor de sua filha já que, depois do seu segundo casamento, veio a separar-se pessoalmente de pessoas e bens como decorre da certidão de óbito junta sob doc. 3 com o RI (cf. fls.7). Também os demais factos não provados decorrem da ausência, ou insuficiência, de prova que ampare convicção de veracidade.

III - ENQUADRAMENTO DE DIREITO
A factualidade apurada evidencia a celebração de um contrato de mútuo, nos termos do qual o pai da Demandante emprestou à Demandada €25.000 e esta assumiu a obrigação de lhe devolver igual quantia no prazo de um ano.
Trata-se de um contrato típico, previsto e regulado nos artigos 1142º a 1151º do Código Civil (diploma ao qual pertencerão as normas doravante citadas salvo indicação diferente).
Dispõe o artigo 1143º, que o contrato de mútuo cujo valor seja superior a €25.000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado.
Por se tratar de uma norma imperativa, a inobservância de forma tem como consequência a nulidade do contrato.
A declaração de nulidade tem efeito retroativo e importa a restituição de tudo o que tiver sido prestado (cf. nº1 do artigo 289º do Código Civil).
No caso em apreço, resulta dos autos, mormente das confissões das partes, que este contrato foi celebrado verbalmente tendo sido meramente anotado num bloco de notas, aparentemente pelo tio da Demandada, o NIB da conta para o qual devia ser feita a transferência, isto é, a conta da Demandada e o nome completo da mesma (doc. de fls. 6).
Assim o contrato de mútuo é nulo e impende sobre os Demandados a obrigação de restituição da quantia mutuada, salvo o que adiante se refere.
Na verdade, os Demandados não lograram provar, como era seu ónus à luz do nº2 do artigo 342º do Código Civil, que até à data do óbito de Francisco, ocorreu qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito de crédito invocado pela Demandante. Concretamente, in casu, cabia aos Demandados provar que, posteriormente ao mútuo, o falecido mutuante havia perdoado, ou remitido, a dívida ou declarado à Demandada que se tratava de uma doação.
A remissão de dívida é uma forma de extinção das obrigações e vem disciplinada nos artigos 863º e seguintes, assumindo a natureza de contrato com o devedor e, quando tenha caráter de liberalidade, é considerada doação. No último caso, reger-se-á pelos artigos 940º e segs. afigurando-se-nos que, na situação sob apreciação, por se tratar de modificação de um contrato pré-existente e não ser acompanhada da tradição da coisa, sempre teria de ser reduzida a escrito (cf. nº2 do artigo 947º). Também esta alegada doação teria de ser declarada nula por lhe faltar o requisito de forma.
Resta, por fim, analisar a confessada oferta da aqui Demandante, no valor de €10.000, aos Demandados.
Ficou claro para este Tribunal, em resultado da instrução do processo, que se trata de uma remissão, ou perdão, parcial de dívida com carácter de liberalidade. Quer isto dizer que a Demandante, a título totalmente gratuito, à custa do seu património e com a intenção de diminuição do passivo dos Demandados, os dispensou da obrigação de devolução de €10.000.
Como já referido, a remissão com caráter de liberalidade é havida como doação e, quando não é acompanhada de tradição da coisa – como não foi –, deve ser reduzida a escrito (cf. artigos 863º e 914º e seg., em especial, artigo 947º).
No caso, é de admitir que a doação foi efetuada por escrito, materializado em dois cartões de Natal, cujo teor preciso as partes não recordavam mas que, todas, sabiam ter o sentido de realizar uma doação de €5.000 a cada um dos Demandados para abater na dívida.
Conclui-se, assim, que deve ser subtraído ao valor de €25.000, respeitantes ao contrato de mútuo, o valor da doação supraindicada como a Demandante pede.

IV – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos julgo a ação totalmente procedente e, em consequência, condeno os Demandados a pagar à Demandante a quantia de €15.000 (quinze mil euros).
Custas:
Declaro a parte Demandada responsável pelas custas do processo (artigo 8º da Portaria 1456/2001, de 28.12).
Custas do processo: €70.
A Demandante tem direito ao reembolso de custas de €35.
Estão em dívida €35.
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Os Demandados deverão efetuar o pagamento das custas no valor de €70, no prazo de três dias úteis a contar da notificação desta decisão sob pena de incorrer numa penalização de €10 por cada dia de atraso e até um máximo de €140 (cf. n.º 10 da Portaria 1456/2001, na redação dada pela Portaria 209/2005 de 14.02). Decorridos quinze dias sobre o termo do prazo supra referido sem que se mostre efetuado o pagamento, será extraída e remetida ao Ministério Público da Comarca de Lisboa Oeste – Cascais certidão das custas e penalidades em dívida (€175) para eventual execução.
Registe e dê cópia.
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Da sentença que antecede foram todos os presentes notificados.
Para constar se lavrou a presente ata, por meios informáticos, que, depois de revista e achada conforme, vai assinada, sendo entregue uma cópia da mesma a cada uma das partes.
Cascais, Julgado de Paz,
07 de março de 2018.


A Técnica do Serviço de Atendimento
A Juíza de Paz