Sentença de Julgado de Paz
Processo: 258/2017-JPCNT
Relator: ISABEL BELÉM
Descritores: POSSE - USUCAPIÃO - AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
Data da sentença: 01/23/2018
Julgado de Paz de : CANTANHEDE
Decisão Texto Integral: I - IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
Demandante: A, solteiro, maior.
Demandados: B e mulher, C.

II- OBJECTO DO LITÍGIO
O demandante propôs contra os demandados a presente ação declarativa, pedindo, em suma, a declaração de que o prédio rústico que melhor identifica lhe pertence exclusivamente, por se ter autonomizado, por via da usucapião, do prédio descrito nos artigos 1º e 2º do requerimento inicial, passando a ser um prédio autónomo e distinto do prédio originário, ordenando-se o registo da aludida parcela a seu favor. Mais pediu a condenação dos demandados no reconhecimento do respetivo direito de propriedade.
Para tanto, alegou os factos constantes do Requerimento Inicial (fls. 1 a 6- que se dá por reproduzido), e juntou os documentos de fls. 7 a 33 (certidão da Conservatória do Registo Predial, certidão matricial, levantamentos topográficos, escritura de doação e procedimento simplificado de partilha – documentos cujo teor se dá igualmente por reproduzido).
Os Demandados, regularmente citados, não apresentaram contestação.
Considerando o tipo de ação em causa, não houve lugar à fase de mediação.
Na sessão da audiência de julgamento, o demandante requereu a retificação do requerimento inicial, o que foi admitido.
Valor: €70,02
Cumpre apreciar e decidir

III - FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Da discussão da causa, resultaram os seguintes
A - Factos provados:
A) Encontra-se descrito na conservatória do Registo Predial de Cantanhede, sob o nº -----/-----------, o prédio rústico, sito em -----, da União das Freguesias de Cantanhede e Pocariça, composto de terra de cultura com onze oliveiras, um poço e dez fruteiras, com a área de 3.570m2, a confrontar do norte com D, de Sul com E, de nascente com Estrada e Urbano do mesmo e de Poente com F, inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo xxxx;
B) Sobre o prédio identificado no número anterior incidem as seguinte inscrições: AP. xxxx de 2015/05/28 – Aquisição de ½ a favor de G, solteiro, maior, por doação de H; AP yyyy de 2016/09/30 – Aquisição ½ a favor de B, casado com C, por sucessão hereditária e partilha, de L e M;
C) Na caderneta predial correspondente ao artigo rústico identificado em A) estão identificados os seguintes titulares: B (½) e G (½ );
D) O prédio descrito em A) adveio à compropriedade do demandante por escritura de doação de H, outorgada no Cartório Notarial de -------, em 15 de maio de 2015, lavrada a fls. 16 a 17 do L-64-A, o qual o havia adquirido por partilha efetuada em 27 de julho de 2012 através de Procedimento Simplificado de Partilha e Registos – Partilha n.º xxxx/2012 – que correu termos na Conservatória de Registo Civil de Cantanhede, por óbito de N e O, pais do demandante;
E) Desde finais de 1985, que o prédio descrito em A) se encontra dividido em duas parcelas distintas e autónomas, por efeito da partilha verbal efetuada entre os herdeiros de N, adjudicadas, cada uma delas, aos progenitores do demandante, N e O, e aos progenitores do demandado marido, P e Q, com a configuração e áreas constantes do levantamento topográfico;
F) Tendo nessa altura, os mesmos colocado marcos a delimitar as faixas de terreno e usufruindo cada um deles a sua parte de forma exclusiva, sem violação dos limites estabelecidos por eles;
G) A parcela de terreno adjudicada aos pais do demandante e identificada no levantamento topográfico a cor vermelha, tem, e sempre teve, a seguinte descrição, configuração e área: Prédio rústico, composto de terra de cultura com fruteiras, sito em -----, da União das freguesias de Cantanhede e Pocariça, concelho Cantanhede, com a área de 1775m2, atualmente a confrontar do norte com D, do sul com o Demandado, do nascente com a Estrada e do poente com F;
H) E desde aquela data – finais de 1985 - o demandante, por si e antecessores, vem usufruindo de forma ininterrupta do prédio identificado em G) usando-o e fruindo-o, de forma individualizada, autónoma e distinta relativamente ao prédio primitivo (prédio mãe) descrito em A), de que fazia parte;
I) Semeando-o, cultivando-o, colhendo os respetivos frutos, limpando-o e fazendo melhoramentos, de modo exclusivo, praticando os atos normais de defesa e conservação da propriedade, respeitando rigorosamente as suas divisórias, com total exclusividade e independência, há mais de 30 anos;
J) De forma pacífica e sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, designadamente dos proprietários confinantes e demais moradores na freguesia, incluindo os demandados, na convicção de estar a usar de direito de propriedade próprio e de que não lesavam direitos de outrem.

B- Factos não provados::
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a causa.

C- Convicção:
A convicção do Tribunal para a factualidade dada como provada foi adquirida através da análise crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência de vida, do teor dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados, das declarações das partes e, ainda, dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência final.

Assim, os factos assentes de A) , B), C) e D) , resultam do teor da certidão permanente (fls. 7e 8), do teor da certidão matricial (fls.9), escritura de doação (fls. 11 a 15) e procedimento simplificado de partilha e registos (fls. 17 a 32).
Para os restantes factos a convicção do tribunal baseou-se no teor do documento de fls.10 e 33 (levantamentos topográficos), nas declarações das partes, que confirmaram, no essencial, os factos alegados no requerimento inicial, e nos depoimentos das testemunhas inquiridas que responderam de forma isenta e imparcial, mostrando-se credíveis e com conhecimento direto dos factos por si relatados.
R, S e T, todos eles conhecedores dos prédios em questão antes e após a sua autonomização, por serem moradores no lugar e terem convivido com as partes e seus antecessores desde jovens, esclarecendo os limites e demarcação dos prédios, bem como aos atos de posse praticados em exclusividade pelo demandante sobre a parcela de terreno aqui em causa.

IV - FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A questão em apreço reconduz-se em saber se o demandante pode ver reconhecido o seu direito de propriedade exclusivo sobre uma parcela de terreno identificada em G) dos factos provados, a qual se autonomizou, por via da usucapião, passando a ser um prédio autónomo e distinto do descrito em A) dos factos provados.
O direito de propriedade de imóvel adquire-se por contrato, que é uma forma de aquisição derivada, e por usucapião e acessão, que são formas de aquisição originária – cfr. artigo 1316.º do Código Civil.
Assim, para se reconhecer alguém como proprietário de um bem é necessário que esse interessado prove a aquisição desse direito por uma daquelas formas.
O artigo 7º do Código do Registo Predial vem facilitar aquela prova a quem tenha o bem – imóvel – registado em seu nome, estabelecendo a presunção da respetiva propriedade.
Cumpre esclarecer, porém, que é pacífico, quer na doutrina quer na jurisprudência, que esta presunção não abrange os elementos identificativos do prédio, tais como as confrontações, estremas ou áreas. Por outro lado, a mencionada presunção derivada do registo não é uma presunção absoluta, apenas tem o efeito de inverter o ónus da prova. Como é consabido, o registo não dá nem tira direitos é meramente declarativo, destinando-se a publicitar a situação dos prédios nele descritos.
A presunção do registo não é a única presunção que aqui cumpre referir.
Prescreve o artigo 1268º, nº1 do Código Civil “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.
E, de acordo com o disposto no artigo 1287º do mesmo diploma “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião”.
Assim, um dos efeitos da posse é a criação de direitos. A posse gera a aquisição da propriedade. Faz adquirir o direito, desde que se mantenha durante certo período de tempo (Cfr. Mota Pinto, Reais, pag. 213).
Segundo tem sido orientação da Jurisprudência e Doutrina, o estado de facto criado pela divisão em parcelas e autonomização destas, operada pelos comproprietários de um prédio rústico, pode converter-se em estado de direito pelo funcionamento das regras da usucapião. Tal significa que na compropriedade, a unidade predial pode parcelar-se por usucapião desde que os comproprietários passem a utilizar partes distintas do prédio como se estivesse materialmente dividido em frações, ocupando cada um a sua parcela, perfeitamente delimitada e circunscrita, sem oposição, de modo exclusivo, à vista de toda a gente, sem violência, na convicção de exercer um direito próprio, como se seu verdadeiro dono fosse, sem invasão de parcelas alheias.
Com efeito, como ensina o Professor Oliveira Ascensão, a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião: as vicissitudes registrais não contendem nem abalam os efeitos da usucapião.
Porém, a verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período de tempo. Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má- fé, titulada, ou não titulada ) influem apenas no prazo (Cfr. M.H. Mesquita, Reais, 1967, pág. 112)
“A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”- artigo 1251º do Código Civil.
Na posse distinguem-se dois elementos: o “corpus” - que se identifica com os atos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa; e o “animus” - que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticados (Cfr. M.Pinto, Reais, p.181).
A lei exige a existência do “corpus” e do “animus” para que exista posse, o que implica que o possuidor tenha de provar a existência destes dois elementos para poder adquirir por usucapião.
Para facilitar ao possuidor a prova do “animus”, a lei estabelece uma presunção: em caso de dúvida, presume-se a posse daquele que exerce o poder de facto. O exercício do “corpus” faz presumir o “animus”.
Se a posse é titulada e de boa fé, a usucapião de bens imóveis tem lugar decorridos 10 anos, se é titulada e de má fé, decorridos 15 anos, se é não titulada e de boa fé, decorridos 15 anos, se não titulada e de má fé, decorridos 20 anos (artigos 1294º e 1296º, ambos do Código Civil).
Ora, descendo ao caso dos autos, verificamos que o demandante conseguiu fazer prova de todos os elementos da usucapião no que diz respeito à parcela em discussão.
Dos factos provados resulta assente que desde finais de 1985, por partilha verbal entre os herdeiros de N, o prédio mãe descrito em A) se encontra autonomizado em duas parcelas distintas e autónomas e separadas entre si, demarcadas por marcos, devidamente identificadas no levantamento topográfico, adjudicadas uma delas, aos progenitores do demandante, N e O, e, a outra, aos progenitores do demandado marido, P e Q, as quais, por força, por força das sucessivas transmissões da posse, pertencem atualmente ao demandante e demandados.
O demandante, por si e seus antecessores, na parcela que lhe ficou a pertencer identificado em G) dos factos provados tem vindo a usufrui-la de forma ininterrupta, semeando-a, cultivando-a, colhendo os respetivos frutos, limpando-a e fazendo melhoramentos, de modo exclusivo, de forma pacífica e sem oposição de ninguém à vista de toda a gente, incluindo dos demandados, na convicção de estar a usar de direito de propriedade próprio.
Provada a materialização há mais de 20 anos e em que cada um passou a possuir, como se sua fosse, mutuamente se privando do uso sobre a totalidade do prédio e limitando-o à metade que lhe ficava demarcada, sem qualquer interferência do outro, constitui prova indiscutível da inequivocidade da posse que cada um passou a exercer apenas em nome próprio.
A conformidade da autonomização (desanexação) em referência não carece de ser analisada, dado que, acolhemos a tese que sustenta que as regras constantes de outros diplomas cedem perante os direitos adquiridos por usucapião. Sustenta-se, para tanto, que a posse é “agnóstica”, não sendo legítimo ou curial distinguir entre posse “justa ou injusta”, consoante exista, ou não, justa causa possessionis, sendo, pois, indiferente o que quer que historicamente estiver para trás dessa posse (cfr. DURVAL FERREIRA -Posse e Usucapião).
Resulta, assim do exposto, ter o demandante demonstrado ter adquirido por usucapião o prédio identificado em G) dos factos provados, por nele ter praticado os atos de posse com as características que conduzem à aquisição originária, encontrando-se preenchidos todos os requisitos exigidos pelo instituto da usucapião.
Resulta ainda inequívoca a desconformidade entre os elementos constantes das descrições prediais e matriciais em referência com a realidade factual, pelo que urge proceder às respetivas atualizações junto dos serviços da Conservatória do Registo Predial e das Finanças, fazendo valer e prevalecer a verdade material e substantiva que a segurança do comércio jurídico exige.

Assim, e em conformidade os pedidos formulados pelo demandante porque provados, têm de proceder.
Custas: Atenta a natureza da presente ação, serão suportadas pelo demandante (artigo 535.º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

V – DISPOSITIVO

Face a quanto antecede, julgo procedente a presente ação, e, por consequência:

1.Declaro que a parcela predial, assinalada a cor vermelha no levantamento topográfico junto aos autos de fls. 33, constitui um prédio rústico composto de terra de cultura com fruteiras, sito em -----, da União das freguesias de Cantanhede e Pocariça, concelho Cantanhede, com a área de 1775m2, a confrontar do norte com D, do sul com B, do nascente com a Estrada e do poente com P, pertence em exclusivo ao aqui demandante (A, solteiro, maior), por se ter autonomizado, por via da usucapião, do prédio mãe originário identificado em A) dos factos provados, do qual se destacou, passando a ser um prédio autónomo e distinto do prédio mãe, cessando a compropriedade que pudesse deter na parte sobrante do dito prédio originário.

2.Condeno os demandados (B e C) no reconhecimento e aceitação da constituição e existência de tal prédio supra descrito em 1. como autónomo e distinto, assim como o respetivo direito de propriedade do demandante sobre o mesmo.

3.Ordeno a atualização em conformidade nos competentes registos da Conservatória do Registo Predial bem como do Serviços de Finanças, de modo a que seja conformada a realidade registral e matricial com a realidade factual existente, nomeadamente com a atribuição de artigo matricial e o registo do referido prédio a favor do aqui demandante.

Custas: pelo demandante, o qual deverá proceder ao pagamento da quantia de € 35,00 (trinta e cinco euros), no prazo de 03 (três) dias úteis subsequentes à notificação da presente Decisão, sob pena da aplicação de uma sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso.

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 8º-C, do Código Registo Predial o demandante tem dois meses, (sob pena de pagamento de multa de valor igual à prevista a titulo de emolumento - nº 1, do artigo 8º-D), contados do trânsito em julgado desta sentença, para registar o direito de propriedade ora atribuído.

Esta sentença foi pessoalmente notificada ao demandante e ao seu ilustre mandatário, que se encontram presentes. Considerando a falta dos demandados envie-se-lhes cópia da sentença.



Cantanhede, 23 de janeiro de 2018
Processado por meios informáticos e revisto pela signatária..
A Juíza de Paz Coordenadora
(Artigo 18.º da LJP)
(Isabel Belém)