Sentença de Julgado de Paz
Processo: 22/2017-JP
Relator: MARTA M. G. MESQUITA GUIMARÃES
Descritores: CONDENAÇÃO A RECONHECER O DIREITO DE PROPRIEDADE - RESTITUIÇÃO DEFINITIVA - POSSE DA PARCELA DE TERRENO QUE OCUPAM INDEVIDAMENTE - PAGAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data da sentença: 09/19/2017
Julgado de Paz de : TERRAS DE BOURO
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
Proc. n.º 22/2017 – JP

IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES

Demandante: A, titular do NIF ---------, residente no Lugar ----------------------, Terras de Bouro

Demandados: B , titular do NIF -------- e esposa, ------------, titular do NIF ------------, residentes no ----------------------, França


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OBJECTO DO LITÍGIO

A Demandante propôs contra os Demandados a presente acção, enquadrável na alínea e) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, peticionando que fossem os Demandados condenados a i. reconhecer e a respeitar o direito de propriedade da Demandante sobre o prédio identificado no artigo 1.º do requerimento inicial, portanto, um prédio urbano, composto de casa de habitação e ramada, sito no Lugar ------, freguesia de ---------, concelho de Terras de Bouro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Terras de Bouro com o n.º xxx, encontrando-se aí registado a seu favor e inscrito na matriz urbana sob o artigo zzz, ii. restituírem definitivamente à Demandante a posse da parcela de terreno que ocupam indevidamente, iii. abster-se de praticar qualquer acto que possa por qualquer forma afectar o exercício do seu direito de propriedade e posse por parte da Demandante, iv. pagar à Demandante indemnização por danos não patrimoniais num valor nunca inferior a € 200,00 (duzentos euros) e v. pagar as custas e demais encargos com o processo.
Alegou, em suma, que adquiriu o aludido prédio, por compra e venda, titulada por escritura pública e que, de qualquer modo, por si e seus antepossuidores, vem, há mais de 40 anos, possuindo, detendo, fruindo e ocupando o mencionado prédio. Mais alegou que o aludido prédio confina, do lado poente, com o prédio urbano dos Demandados, composto por casa de habitação, sito no lugar ----------, n.º 7, freguesia de --------, concelho de Terras de Bouro, que a confrontação entre os prédios é delimitada pelas paredes de ambos e do logradouro do prédio da Demandante, delimitado em relação ao prédio dos Demandados por um pilar em pedra junto à porta de entrada de acesso a casa de habitação com alinhamento à parede em pedra rusticada nas juntas. Invocou, ainda, que os Demandados, de forma abusiva, colocam uma tábua, um bloco em pedra, uma viga e um tapete, no logradouro do seu prédio, sempre que estão em Portugal em férias, que, com esta atitude, os Demandados pretendem apropriar-se daquela porção de terreno e que com tal apropriação do terreno, onde a Demandante coloca e sempre aí colocou madeira e materiais, fica impedida de aceder livremente ao seu prédio. Finalmente, invocou que com esta atitude, os Demandados vêm causando-lhe prejuízos, que se sente publicamente vexada, humilhada e gozada com a prepotência dos Demandados e que os Demandados lhe causam um grande desgosto, revolta e grave depressão, que com o decorrer do tempo se agrava e aprofunda.

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Regularmente citados, os Demandados apresentaram contestação, impugnando os factos alegados pela Demandante, sustentando que a parcela de terreno em litígio é, em parte, pertença do seu próprio prédio e, noutra parte, é pública, tendo, a final, pugnado pela sua absolvição dos pedidos e pela condenação da Demandante no pagamento das custas processuais – cfr. fls. 33 a 63 dos autos.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância do legal formalismo, consoante resulta da acta.
O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do território (cfr. artigo 11.º, nº 1, da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho) e do valor que se fixa em € 200,00 (cfr. artigo 296.º, n.º 1 e 306.º, n.º 2, ambos do CPC).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.

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FACTOS PROVADOS COM RELEVÂNCIA PARA A DECISÃO DA CAUSA
A. A Demandante usa e frui de um prédio urbano, composto de casa de habitação, sito no Lugar de --------, freguesia de ----------, concelho de Terras de Bouro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo zzz.
B. Os Demandados são donos do prédio urbano, composto por casa de habitação, descrita sob o n.º yyy da Conservatória do Registo Predial de Terras de Bouro e sob o n.º 2 das Finanças.
C. O prédio supra identificado em A. confina com o prédio aludido em B..
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FACTOS NÃO PROVADOS COM RELEVÂNCIA PARA A DECISÃO DA CAUSA
1. A Demandante é dona de um prédio urbano, composto de casa de habitação e ramada, sito no Lugar de ----------, freguesia de ----------, concelho de Terras de Bouro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Terras de Bouro com o n.º xxx, encontrando-se aí registado a seu favor.
2. Tal prédio foi adquirido pela Demandante por escritura pública de compra e venda.
3. O prédio indicado em A. dos FACTOS PROVADOS confina, do lado poente, com o prédio urbano dos Demandados, composto por casa de habitação, sito no Lugar de ----------, n.º 7, freguesia de -----------, concelho de Terras de Bouro.
4. A confrontação entre o prédio urbano identificado em A. dos FACTOS PROVADOS e o prédio urbano identificado em B. dos FACTOS PROVADOS é delimitada pelas paredes de ambos os prédios e do logradouro do prédio da Demandante, delimitado em relação ao prédio dos Demandados por um pilar em pedra junto à porta de entrada de acesso a casa de habitação com alinhamento à parede em pedra rusticada nas juntas.
5. A Demandante, por si e seus antepossuidores, vêm, há mais de 40 anos, fruindo e ocupando o mencionado prédio, retirando daí todas as utilidades, procedendo a obras no mesmo, pagando os respectivos impostos pelo mesmo devidos.
6. A Demandante coloca no logradouro, e sempre que necessitava aí colocou, madeira e materiais.
7. Os Demandados colocam uma tábua, um bloco em pedra, uma viga e um tapete no logradouro do prédio urbano da Demandante, sempre que estão em Portugal, de férias.
8. Com esta conduta dos Demandados, a Demandante fica impedida de aceder livremente ao seu prédio.
9. A Demandante sente-se publicamente vexada, humilhada e gozada com a prepotência dos Demandados.
10. O comportamento dos Demandados causa à Demandante um grande desgosto, justificada revolta e grave depressão, que com o decorrer do tempo se agrava e aprofunda.

FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
O facto provado constante de A. resulta da conjugação do documento junto pela Demandante com o requerimento inicial a fls. 10 dos autos, e bem assim, da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, especificamente, pelas testemunhas D, E, F e G, as quais foram unânimes nos depoimentos prestados, os quais se afiguraram credíveis. Note-se que, a impugnação, pelos Demandados e à luz do disposto no artigo 444.º, n.º 2, do CPC, dos documentos juntos pela Demandante, e, por conseguinte, do documento junto a fls. 10 dos autos, apenas determina que a reprodução mecânica não faça prova plena dos factos que representa, nos termos do disposto no artigo 342.º do CC, mas não impede a livre apreciação de tal documento, como meio de prova, pelo Tribunal, juntamente com a demais prova relevante que tenha sido produzida.
O facto provado constante de B. resultou dos documentos juntos pelos Demandados com a contestação, e que constam de fls. 48 a 54 dos autos, os quais consubstanciam documentos autênticos – cfr. artigos 363.º, n.º 2, 1.ª parte, e 371.º, ambos do CC.
O facto provado constante de C. resulta de admissão, nos termos do disposto no artigo 574.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC – cfr. artigo 15.º da contestação apresentada, a fls. 35 dos autos.
Já relativamente aos factos não provados, os mesmos resultaram de ausência de prova.
Com efeito, no que se reporta aos factos não provados enunciados em 1. e 2., não foi junto, pela Demandante – a quem competia fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, nos termos do disposto no artigo 342.º do CC – certidão da Conservatória do Registo Predial por via da qual fosse provado o registo do aludido prédio em seu nome, na qualidade de proprietária, mediante aquisição por compra e venda – cfr. artigo 110.º, n.º 1, do Código do Registo Predial.
Relativamente ao facto não provado enunciado em 3., não se provou que tal prédio confrontasse, do lado poente, com o prédio dos Demandados.
Quanto ao facto não provado enunciado em 4., não se efectuou prova da delimitação do alegado logradouro integrante do prédio, falhando, assim, e, por conseguinte, a prova da alegada confrontação e delimitação entre os prédios.
Quanto ao facto não provado enunciado em 5., o mesmo é decorrência lógica da consideração como não provado do facto aludido em 4., pois se não se logra efectuar prova relativamente à delimitação do alegado logradouro e das confrontações do prédio, não se pode dar como provado que a Demandante e seus antepassados tenham fruído e ocupado aquele prédio.
Já relativamente aos factos não provados enunciados em 6., 7., 8., 9. e 10., os mesmos são consequência directa da falta de prova quanto à existência de logradouro no prédio da Demandante.
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DIREITO
Por via da presente acção, a Demandante pede a condenação dos Demandados a reconhecer e a respeitar o direito de propriedade que invoca ser titular sobre o prédio que identifica no artigo 1.º do requerimento inicial, a restituir-lhe definitivamente a posse da parcela de terreno que ocupam indevidamente, a abster-se de praticar qualquer acto que possa por qualquer forma afectar o exercício do seu direito de propriedade e posse e, ainda, a pagar-lhe indemnização por danos não patrimoniais.
Estamos perante uma acção reivindicatória, prevista no artigo 1311.º, n.º 1, do Código Civil (CC), nos termos do qual o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence. Mais preceitua o n.º 2 do mesmo artigo que havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.
Não obstante a Demandante efectuar pedido de restituição da posse da parcela de terreno que considera estar a ser indevidamente ocupada, podendo tal pedido ser configurado como um pedido próprio da acção de restituição da posse prevista nos artigos 1277.º e 1278.º, n.º 1, do CC – que consiste num outro tipo de acção que visa a defesa, não do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo, mas da posse – a verdade é que a Demandante invoca, como fundamento jurídico da sua pretensão, o direito de propriedade que alega deter sobre a parcela de terreno sub judicio e que alega ter sido violado com a conduta dos Demandados. E tendo invocado tal direito como fundamento da acção, a acção é de reivindicação e não possessória. Com efeito, e como ensina a nossa Doutrina, especificamente JOSÉ ALBERTO VIEIRA InDireitos Reais”, Almedina, 2017, Reimpressão, pág. 433., “A acção de reivindicação é a acção de defesa do direito real de gozo contra aquele que tem a coisa em seu poder, como possuidor ou detentor, e não a entrega ao titular do direito. Conquanto seja uma acção destinada a obter a posse da coisa para o titular do direito real, não é a única acção real que tem esse efeito. Também a acção possessória de restituição tem por escopo a devolução da coisa ao autor. Simplesmente, enquanto na acção de reivindicação o autor invoca um direito real de gozo definitivo (a propriedade, o usufruto, o uso e habitação, o direito de habitação periódica, a servidão predial), na acção de restituição o autor invoca apenas a sua posse, não o direito real a que ela se refere. Se invoca este, a acção é de reivindicação, não de restituição.
Portanto, como fundamento para a presente acção a Demandante invoca o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno que alega fazer parte do prédio que identifica no artigo 1.º do requerimento inicial e que terá sido indevidamente ocupada pelos Demandados. Como causa de pedir, alega a compra e venda do imóvel, e, subsidiariamente, a usucapião. Como pedido, a Demandante pretende a restituição da posse da aludida parcela de terreno, que, no fundo, e tendo em conta o fundamento da acção, consubstancia a restituição da aludida parcela.
Temos, assim, que a procedência de uma acção de reivindicação pressupõe, desde logo, que aquele que invoca o direito – portanto, a Demandante – alegue e prove – cfr. artigo 5.º, n.º 1, do CPC, ex vi artigo 63.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho e artigo 342.º, n.º 1, do CC – ser o titular do direito real de gozo que invoca e que aquele/s contra quem propõe a acção tem/têm a coisa em seu poder, como possuidor/es ou detentor/es.
Ora, o diferendo em apreço nos autos prende-se com a delimitação física de uma parcela de terreno que ambas as partes se arrogam proprietárias, sendo certo, ainda, que os Demandados alegam que uma parte dessa mesma parcela seria pública – cfr. artigos 20.º e 21.º da contestação apresentada.
Ou seja: o objecto dos presentes autos incide sobre a propriedade de uma faixa de terreno, cuja titularidade Demandante e Demandados contraditoriamente se arrogam, sustentando que tal parcela física se integra no prédio de que se arrogam titulares, com a particularidade de os Demandados invocarem, ainda, que uma parte dessa mesma parcela seria pública.
Ora, não foi feita prova, nos presentes autos, dos elementos identificativos da parcela de terreno em apreço, de modo a que a parcela (portanto, a coisa efectivamente em litígio nos autos) não seja confundível com qualquer outra coisa, desde logo, com a aquela que é a propriedade dos Demandados e com caminho público. Com efeito, a caracterização da parcela de terreno sub judicio, portanto, da coisa sub judicio, não se logrou, por via da prova feita nos autos, efectuada de modo cabal a ponto de se poder efectuar um juízo seguro sobre a sua identificação fundamental, de forma a torná-la distinta de todas as demais coisas.
E tal prova cabia à Demandante fazer, à luz do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC. Com efeito, cabe àquele que invoca o direito – no caso, a Demandante – aproveitar as oportunidades de que beneficia para fazer adquirir processualmente os factos substantivamente relevantes, complementares ou concretizadores dos alegados – desde logo, e no caso, a área, contornos concretos e confrontações da parcela a nível de implantação no local –, que originariamente não curou de densificar em termos bastantes. Não o tendo feito, não é possível a este Tribunal condenar os Demandados a reconhecer a titularidade do direito de propriedade da Demandante sobre uma parcela de terreno cuja identificação fundamental não se encontra efectuada e que, por conseguinte, é confundível com o espaço envolvente.
Assim, para que fosse procedente o pedido de condenação no reconhecimento do direito de propriedade de que alega ser titular sobre o prédio que ocupa e frui, por usucapião, e com vista à restituição da parcela de terreno sub judicio, para além de ser necessário provar o preenchimento dos requisitos essenciais para operar tal forma de aquisição (originária) do direito de propriedade – cfr. artigos 1287.º e seguintes do CC –, sempre seria necessário provar, antes de mais, a extensão e delimitação concretas da parcela que invoca como fazendo parte do aludido prédio, prova esta que, conforme se deixou exposto, a Demandante não logrou efectuar.
Em face do exposto, o pedido de condenação no reconhecimento do direito de propriedade terá que improceder, improcedendo, igualmente, o pedido de restituição definitiva da (posse da) parcela de terreno.
Mais improcedem, por decorrência directa da improcedência do primeiro pedido, os pedidos de condenação na abstenção da prática de acto que possa por qualquer forma afectar o exercício do direito de propriedade e posse e de condenação no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais num valor nunca inferior a € 200,00.

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DECISÃO
Em face do exposto e das disposições legais aplicáveis, julga-se a presente acção totalmente improcedente, por não provada, e em consequência, absolve-se os Demandados de todos os pedidos formulados.
Custas a cargo da Demandante – cfr. ponto 8.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro.
Registe e notifique os faltosos.

Terras de Bouro, 19 de Setembro de 2017
A Juíza de Paz,

(Marta M. G. Mesquita Guimarães)
Processado por computador (Artigo 18.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho)
Revisto pela signatária. Julgado de Paz de Terras de Bouro