Sentença de Julgado de Paz
Processo: 130/2015-JPBBR
Relator: CRISTINA EUSÉBIO
Descritores: ARRENDAMENTO
CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES
BOA-FÉ CONTRATUAL
ABUSO DE DIREITO
Data da sentença: 11/29/2017
Julgado de Paz de : OESTE-BOMBARRAL
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
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RELATÓRIO:

A, identificada a fls. 1, intentou, em 21 de Dezembro de 2015, a presente ação declarativa de condenação, contra B, melhor identificados, também, a fls. 1, pedindo que esta seja condenada no pagamento das rendas relativas à totalidade do prazo do contrato de arrendamento no valor de 1500,00€ e despesas do locado no valor de 107,54€, porquanto alega o incumprimento do contratualmente estabelecido quanto à cessação do contrato.
Para tanto, alegou os factos constantes do Requerimento Inicial de fls. 1 a 3 , que se dá por reproduzido.
Juntou 7 documentos (fls. 5 a 20) que se dão por reproduzidos.
Regularmente citada para contestar, no prazo, querendo, veio a demandada apresentar Contestação, na qual alega, em suma que o contrato de arrendamento não reproduz o que foi contratado requerendo que seja declarada a sua anulabilidade. Defende-se, igualmente por impugnação.
Juntou 3 documentos de fls.89 a 91 que aqui se dá por reproduzido.

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Cabe a este tribunal decidir se a Demandada deve ser condenada nos pedidos formulados pela Demandante, por incumprimento do contrato de arrendamento.
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Tendo a Demandante optado pelo recurso à Mediação para resolução do litígio, foi agendado o dia 12 de Abril de 2016 para a realização da sessão de Pré-Mediação, a qual foi dada sem efeito em virtude de a demandada não ter comparecido, nem ter apresentado posteriormente qualquer justificação da sua ausência.
Foi designado o dia 17 de Outubro de 2017 para a realização da Audiência de Julgamento.
Aberta a Audiência, e estando todas as partes presentes e acompanhadas dos seus Ilustres mandatários, procedeu-se a tentativa de conciliação que resultou infrutífera, pelo que de seguida foram ouvidas as partes e produziu-se a prova por estas carreada aos autos, cumprindo-se as formalidades legais conforme da respectiva acta melhor se alcança.
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Estando reunidos os pressupostos da estabilidade da instância, cumpre apreciar e decidir:
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO
A convicção probatória do tribunal, ficou a dever-se ao conjunto da prova produzida, tendo sido tomadas em consideração as declarações das partes – com especial relevo a demandante referiu que, por estar doente na data de celebração do contrato, encarregou o Sr. C de agir em seu nome - , os documentos juntos, bem como o depoimento das testemunhas arroladas pela demandada com especial relevância o depoimento prestado por D, que depôs com isenção e credibilidade, revelando conhecimento direto dos factos sobre os quais recaiu o seu depoimento.
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Com interesse para a decisão ficaram provados os seguintes factos: ---
1. Por contrato de arrendamento celebrado por escrito em 4 de Março de 2015, a demandante deu de arrendamento à demandada, parte do rés-do-chão no n.º …..
2. O arrendamento teve o seu inicio no dia 1 de Março de 2015 e a sua duração acordada por doze meses, terminando em 1 de março de 2016.
3. A renda anual foi fixada em 1.800,00, a ser paga em duodécimos de 150,00€ na residência da demandante ou por transferência bancária para a conta da CGD com o IBAN PT50xxxxxxxxxxx, no primeiro dia do mês anterior a que respeitasse.
4. Integrou o arrendamento para uso privativo um quarto de casal mobilado.
5. Integrou ainda o arrendamento, em utilização comum, sala de jantar, sala de televisão, hall, cozinha, casas de banho, marquise, corredores, pátio e terraço, dispensa com louças, electrodomésticos e mobiliário completo.
6. Do referido contrato resulta que os consumos de água, electricidade e gás canalizado seriam pagos pela demandada.
7. O consumo de gás e electricidade do período de 1 a 30 de Abril de 2015 resultou na facturação do valor de 126,43€.
8. O consumo de água de 24 de março a 20 de Abril de 2015 resultou na emissão de factura no valor de 22,22€
9. O consumo de electricidade de gás do período de 1 de março de 2015 a 31 de março de 2015 resultou na emissão de factura no valor de 26,94;
10. O consumo de água do período de 26 de Fevereiro a 24 de Março de 2015 comportou o pagamento do valor de 14,25€.
11. As despesas referidas em 6 eram repartidas pelas três ocupantes do locado, na proporção de 1/3.
12. O referido Sr. C entregava, no locado á demandada, as contas dos consumos de água, electricidade e gás, com os valores devidos por cada inquilina escritos á mão.
13. A demandante pagou as rendas relativas aos meses de março e Abril de 2015, no valor total de 300,00€
14. Em 2 de Maio de 2015 a demandada pagou a quantia de 24,58€ a título de despesas.
15. A demandada é enfermeira, e foi colocada para prestar trabalho no Centro Hospitalar Oeste Norte em Março de 2015.
16. A demandante encarregou o Sr. C de negociar o arrendamento com a demandada, uma vez que, á data, se encontrava doente.
17. Assim, quem mostrou o arrendado e negociou os termos do contrato com a demandada foi o Sr. C que se intitulou marido da proprietária do imóvel.
18. A demandada remeteu para o email da demandante os seus dados identificativos com vista á realização do contrato de arrendamento.
19. A demandada leu e compreendeu o contrato de arrendamento junto aos autos.
20. A demandada explicou ao Sr. C que poderia ter que deixar o locado antes do terminus do contrato, porquanto estaria dependente de nova colocação de trabalho mais perto da sua residência cujo prazo não podia prever.
21. O que este aceitou referindo que não haveria qualquer problema e que bastaria avisar se ocorresse transferência de local de trabalho.
22. O contrato de arrendamento foi preenchido pela demandante.
23. A demandada assinou o contrato que o Sr. C lhe entregou em 4 de Março de 2015.
24. Em Maio de 2015 a demandada passou a exercer funções profissionais em Caldas da Rainha e dois meses mais tarde foi trabalhar para Coimbra.
25. A demandada deixou de habitar o arrendado no final do mês de Abril de 2015.
26. A demandada falou telefonicamente o Sr. C, em data não concretamente apurada, avisando que iria deixar o locado em final de Abril de 2015.
Não resultaram provados quaisquer outros factos, alegados pelas partes ou instrumentais, com interesse para a decisão.
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE DIREITO
Em face da prova produzida, deverá o Tribunal, desde logo pronunciar-se sobre a alegada anulabilidade do contrato de arrendamento, arguida pela demandada como excepção peremptória, porquanto é um facto impeditivo do efeito jurídico dos factos articulados pela demandante, e que a proceder, poderá conduzir à absolvição do pedido, nos termos do disposto no art. 577º n.º3 do CPC.
Dos autos resulta que o contrato de arrendamento, na sua fase de negociação teve a intervenção de C, que actuou em representação da demandante. Mais ficou provado que, na data de assinatura do contrato, a demandada já residia no locado. Natural e legitimamente a demandada esperava que fossem reduzidas a escrito todas as clausulas que haviam sido, por si negociadas com o referido Sr. C. No entanto, o contrato que foi apresentado à demandada para assinar não correspondia in totum ao contratado nem à sua completa vontade negocial, devidamente declarada. Ainda assim, decidiu assinar, de forma consciente e na realidade aceitou o clausulado aposto pela demandante.
De facto, a aposição da assinatura num contrato, constitui o contraente na obrigação de o cumprir, nos seus precisos termos, fazendo surgir na sua esfera jurídica direitos e obrigações.
O nosso sistema de Direito Civil parte do princípio da liberdade da forma – cfr. art.219.º do Código Civil – mas, em certos casos, exige que as declarações negociais obedeçam a determinada forma, como condição de validade de certos negócios. É o que sucede no caso do contrato de arrendamento, que a lei obriga que seja reduzido a escrito.
A forma assegura uma mais elevada dose de reflexão das partes, permitindo que os negócios não sejam concluídos de ânimo leve. Na realidade, a demandada conformou-se com o conteúdo do contrato que assinou e que se manteve em execução pelo período em que habitou o locado.
Pelo exposto, entendemos que o contrato de arrendamento se encontra validamente celebrado, improcedendo a excepção invocada, sem prejuízo do que a seguir se dirá.
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Cumpre apreciar e decidir quanto ao pedido formulado pela demandante.
A relação material controvertida circunscreve-se às relações decorrentes da celebração de um contrato de arrendamento entre as partes; à obrigação de cumprimento de 1/3 do prazo de 1 ano antes da denúncia do mesmo, o prazo de aviso prévio para operar a denúncia, e ainda à obrigação contratual de pagamento de despesas.
Ora, o arrendamento é a locação de uma coisa imóvel e nos termos do disposto no Código Civil, “é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.” (art.ºs 1022.º e 1023.º), sendo uma das obrigações principais do locatário (inquilino) o pagamento da renda (Art.º 1038.º do C.C.) e bem assim das restantes despesas que são contratualmente da sua responsabilidade.
Nos termos do disposto no art.º 1098.º, n.º 2 “Após seis meses de duração efectiva do contrato, o arrendatário pode denunciá-lo a todo o tempo, mediante comunicação ao senhorio com uma antecedência não inferior a 120 dias do termo pretendido do contrato, produzindo essa denúncia efeitos no final do mês de calendário gregoriano.”.
Resulta da matéria provada que, as partes acordaram que, em caso de transferência da demandada, para outro local de trabalho independentemente do tempo decorrido de execução, a demandante aceitaria a denúncia antecipada do contrato de arrendamento. Tal “cláusula” foi negociada e aceite pelo representante da demandante - cuja qualidade a própria reconhece.
Assim, ao pretender que a demandada liquide as rendas relativas à totalidade do prazo do contrato, a demandante excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, exercendo o seu direito legal de forma abusiva.
Ou seja, ao não incluir totalmente os termos acordados no contrato escrito quando preencheu o “formulário” do contrato - , nomeadamente prevendo que no caso de alteração superveniente da situação profissional da demandada, aceitaria a denuncia antecipada do contrato, - a demandante, tornou (legalmente) possível o pedido formulado nos presentes autos.
Tal não significa, no entanto, que o tribunal não deva sindicar tal comportamento da demandante á luz do princípio basilar da boa-fé e da confiança jurídica.
Seguindo os ensinamentos do Prof. Menezes Cordeiro diga-se que:” Na verdade, o princípio da confiança surge como uma mediação entre a boa fé e o caso concreto.
Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas. Várias razões depõem nesse sentido. Em termos antropológicos e sociológicos, podemos dizer que, desde a sedentarização, a espécie humana organiza-se na base de relacionamentos estáveis, a respeitar. No campo ético, cada um deve ser coerente, não mudando arbitrariamente de condutas, com isso prejudicando o seu semelhante. Juridicamente, a tutela da confiança acaba por desaguar no grande oceano do princípio da igualdade e da necessidade de harmonia, daí resultante: tratar o igual de modo igual e o diferente de forma diferente, de acordo com a medida da diferença.
Ora, a pessoa que confie, legitimamente, num certo estado de coisas não pode ser tratada como se não tivesse confiado: seria tratar o diferente de modo igual. A tutela da confiança, embora convincente, só pode operar, na falta de preceitos jurídicos, quando se mostrem reunidos especiais pressupostos. De outro modo, poderíamos transformar a sociedade num colete-de-forças, que prejudicasse as iniciativas individuais necessárias para dar corpo à liberdade e para possibilitar a inovação e o progresso. Na base da doutrina e com significativa consagração jurisprudencial, a tutela da confiança, apoiada na boa fé, ocorre perante quatro proposições. Assim:
1.ª Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
2.ª Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível;
3.ª Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
4.ª A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.
Estas quatro proposições devem ser entendidas dentro da lógica de um sistema móvel. Ou seja: não há, entre elas, uma hierarquia e o modelo funciona mesmo na falta de alguma (ou algumas) delas: desde que a intensidade assumida pelas restantes seja tão impressiva que permita, valorativamente, compensar a falha.” , MENEZES CORDEIRO, António, Do Abuso do Direito: Estado das Questões e Perspectivas / Revista da Ordem dos Advogados, ano 2005, II, Setembro de 2005.
Assim, por aplicação do instituto do abuso de direito – art. 334º do Código Civil -, o peticionado pelo incumprimento do disposto no art. 1098 n.º 3 do CC no que diz respeito á observância do período de um terço do prazo inicial do contrato, terá de improceder.
Não é, no entanto menos verdade que, a demandada incumpriu a sua obrigação de notificar a demandante, por escrito e com 60 dias de antecedência, de que pretendia denunciar o contrato de arrendamento, porquanto se havia verificado a sua transferência de local de trabalho. Assim é responsável pelo prejuízo que, com o seu incumprimento causou na esfera jurídica da demandante, sendo essa a ratio legis do disposto no n.º 6 do art. 1098º do Código Civil.
Na realidade, na sequência da declaração de validade do contrato sub judice, entende-se por válida a estipulação contratual do prazo de pré-aviso de 60 dias para a respectiva denúncia, (ainda que o mesmo resulte, igualmente da lei).
A inobservância do referido prazo tem por consequência legal, a obrigação de pagamento do período em falta, que no presente caso importa o valor de 300,00€, não deixando a denúncia de ser válida, como dispõe o citado n.º 6 do art- 1098º CC.
No que diz respeito às despesas de consumo de água, eletricidade e gás e em face da prova produzida a demandada deveria liquidar o montante 63,28€ (correspondente a 1/3 das despesas dos referidos consumos). Resultando provado que pagou a quantia de 24,58€, encontra-se em dívida para com a demandante na quantia de 38,70€.
Peticiona a demandante que a demandada seja condenada também nos juros de mora vencidos e vincendos a contar da citação até integral e efectivo pagamento, á taxa legal.
Em regra, a falta de pagamento de quantias a que o devedor esteja obrigado, dentro do prazo acordado, constitui o faltoso em mora e na obrigação de reparar os danos causados ao credor, verificando-se que a mora se inicia com a interpelação, judicial ou extrajudicial, para cumprimento (artº 804º e 805º do Código Civil).
O artº. 806º do mesmo Código, dispõe que, nas obrigações pecuniárias, a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora, o que in casu coincide com a citação. Assim, por força dos citados preceitos, verifica-se que, quando ocorre a falta de cumprimento de uma obrigação em dinheiro, o credor desse valor tem direito a receber uma indemnização, para compensar os prejuízos resultantes do atraso indemnização essa que é igual aos juros vencidos, calculados à taxa dos juros legais (artº. 559º do Código Civil), desde a constituição em mora até integral e efectivo pagamento.
Razão pela qual tal pedido haverá de proceder.
DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos invocados, julgando a presente ação parcialmente procedente, decido condenar a Demandada a pagar à demandante a quantia de 338,70€ acrescida de juros de mora á taxa legal de 4% desde a citação até integral e efectivo pagamento.:
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As custas serão suportadas pela Demandante e pela Demandada, em razão do decaimento e na proporção respetiva de 80 % e 20% (art.º 8.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro).

Registe.
Bombarral, 29 de Novembro de 2017
(Juíza de Paz que redigiu e reviu em computador – Art.º 138.º/5 do C.P.C.)

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(Cristina Eusébio)