Sentença de Julgado de Paz
Processo: 87/2018-JPMMV
Relator: ISABEL BELÉM
Descritores: OSSE / USUCAPIÃO / DIREITO DE PROPRIEDADE
Data da sentença: 06/13/2018
Julgado de Paz de : MONTEMOR-O-VELHO
Decisão Texto Integral:

SENTENÇA
Processo nº 87/2018-JP

I - IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
Demandante: A, solteiro, maior, residente na Rua 25 de Abril nº XXX, Liceia
Demandados: B e mulher C, casados no regime de comunhão geral, residentes na Rua Principal nº XXX, Quinhendros.

II- OBJECTO DO LITÍGIO
O demandante intentou contra os demandados a presente ação declarativa, pedindo, em suma, a declaração de que prédio descrito no artigo 1º do presente requerimento inicial se encontra dividido em duas parcelas, há mais vinte anos; que o demandante adquiriu, por usucapião, o prédio identificado como parcela A, há mais de 20 anos, mais peticionando que se ordene ao Serviço de Finanças e a Conservatória do Registo Predial o registo em conformidade.
Para tanto, alegou os factos constantes do Requerimento Inicial (fls. 1 a 7, que se dá por reproduzido), juntando documentos.
Os demandados, regularmente citados, não apresentaram contestação.
Considerando o tipo de ação em causa, não houve lugar à fase de mediação
Em audiência de julgamento o demandante requereu a retificação do Requerimento Inicial, ao qual os demandados não se opuseram, tendo o mesmo sido admitido.
Valor da ação: €47,64
Cumpre apreciar e decidir

III - FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Da discussão da causa, resultaram os seguintes
A - Factos provados:
A) Encontra-se descrito na conservatória do Registo Predial de Montemor –o-Velho sob o nº XXX/XXX…., o prédio rústico, composto de terra de semeadura e pinhal atravessado por um caminho, sito em Serrado do Viso, freguesia de Liceia, concelho de Montemor-o-Velho, com a área 5.586 m2, que confronta a Norte e nascente com caminho, a Sul e a Poente com JML, inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artº XXXX;
B) Sobre o prédio identificado no número anterior incide a seguinte inscrição: AP. XXXX de 2018/02/07 - Aquisição de 15/25 a favor de A, por doação de MGMLG e ACG;
C) Os referidos MGMLG e marido ACG, adquiriram 9/25 avos por sucessão hereditária e partilha dos bens deixados na herança aberta por óbito de sua mãe PM ou PS e, 6/25 avos por compra MAPL e marido MO;
D) Na caderneta predial correspondente ao prédio descrito em A), estão identificados os seguintes titulares: B (10/25) e A (15/25) ;
E) Os demandados obtiveram a posse e propriedade do prédio descrito em A), na proporção de 10/25, por aquisição feita há mais de 40 anos a ML e esposa GM não tendo outorgado escritura.
F) Nessa altura, em finais da década de 1980, o prédio descrito em A) deu origem a duas parcelas distintas e autónomas devidamente identificadas e atualizadas conforme o levantamento topográfico, com as seguintes descrições, configurações e áreas:

1) Parcela A: prédio rústico, com a área de 3.351,60m2, sito em Serrado do Viso, freguesia de Liceia, concelho de Montemor-o-Velho, que confronta a Norte com o próprio; Nascente com estrada publica; Sul com GR e a Poente com MMM (confrontações atuais);

2) Parcela B: prédio rústico, com a área de 2.234,00m², sito em Serrado do Viso, freguesia de Liceia, concelho de Montemor-o-Velho, que confronta a Norte HMMG, do Sul com GR e AMM, do Nascente com Estrada Publica e Poente com MMM (confrontações atuais);

G) Encontrando-se, desde essa altura, cada uma das supra identificadas parcelas individualizadas e demarcadas com marcos entre si, com áreas e confrontações bem definidas, tendo cada uma das parcelas acesso a caminho, não resultando o encrave de nenhuma delas;
H) E, desde então, o demandante (na parcela A ) e os demandados (na parcela B) , por si e seus antecessores, vêm atuando na convicção de serem os únicos donos e legítimos possuidores de cada uma das suas parcelas, passando a possuir, usar e fruir de forma individualizada, autónoma e distinta relativamente ao prédio primitivo de que faziam parte, cuidando-as e vigiando-as, bem como retirando todos os proveitos e utilidades que os mesmas proporcionam, praticando os atos normais de defesa e conservação da propriedade, respeitando as suas divisórias, sem qualquer oposição, na convicção de que exercem um direito próprio e legítimo, o que que têm feito, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, contínua e ininterruptamente, agindo e comportando-se, relativamente às suas parcelas, como seus verdadeiros e exclusivos proprietários, e convictos de que, com a sua posse, não lesavam direitos de outrem;
I) O demandante, por si e seu antecessores, vem atuando na convicção de ser o único dono e exclusivo proprietário do prédio identificado como parcela A passando a possuir, usar e fruir da mesma, nela praticando os mais variados atos de fruição e posse de forma individualizada, autónoma e distinta relativamente ao prédio primitivo de que faziam parte.
J) De forma pacífica e sem oposição dos demandados, na convicção de exercer um direito próprio e legítimo, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, contínua e ininterruptamente, agindo e comportando-se, como seu verdadeiro e exclusivo proprietário, e convicto de que, com a sua posse, não lesava direitos de outrem, nomeadamente dos demandados;

B - Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a causa.

C- Convicção:
A convicção do Tribunal para a factualidade dada como provada foi adquirida através da análise crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência de vida, do teor dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados e, ainda, dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência final.
Assim, os factos assentes de A), B) e D) resultam do teor dos documentos (Descrição da Conservatória do Registo predial (fls. 131) certidão matricial (fls. 11)
Para os restantes factos a convicção do tribunal baseou-se no teor dos levantamentos topográficos de fls. 12, 13 e 14, conjugados com as declarações das partes e do depoimento da testemunha inquirida que respondeu de forma isenta e imparcial e com conhecimento direto dos factos por si relatados, mostrando-se credível.
A testemunha MLPSG, tia do demandante e residente em frente aos prédios, disse como o demandante e demandados entraram na posse de cada uma das correspetivas parcelas, objetos dos autos, esclarecendo os limites e demarcação de cada uma delas, bem como aos atos de posse praticados em exclusividade pelo demandante e antecessores na Parcela A, bem como pelos demandados e antecessores sobre o a Parcela B identificadas em F) dos factos dados como provados.


IV - FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A questão em apreço reconduz-se em saber se o demandante pode ver reconhecido o seu direito de propriedade exclusivo sobre uma parcela de terreno que designam por PARCELA A , a qual se autonomizou, por via da usucapião, passando a ser um prédio autónomo e distinto do descrito em A) dos factos provados.
O direito de propriedade de imóvel adquire-se por contrato, que é uma forma de aquisição derivada, e por usucapião e acessão, que são formas de aquisição originária – cfr. artigo 1316.º do Código Civil.
Assim, para se reconhecer alguém como proprietário de um bem é necessário que esse interessado prove a aquisição desse direito por uma daquelas formas.
O artigo 7º do Código do Registo Predial vem facilitar aquela prova a quem tenha o bem – imóvel – registado em seu nome, estabelecendo a presunção da respetiva propriedade.
Cumpre esclarecer, porém, que é pacífico, quer na doutrina quer na jurisprudência, que esta presunção não abrange os elementos identificativos do prédio, tais como as confrontações, estremas ou áreas. Por outro lado, a mencionada presunção derivada do registo não é uma presunção absoluta, apenas tem o efeito de inverter o ónus da prova. Como é consabido, o registo não dá nem tira direitos é meramente declarativo, destinando-se a publicitar a situação dos prédios nele descritos.
A presunção do registo não é a única presunção que aqui cumpre referir.
Prescreve o artigo 1268º, nº1 do Código Civil “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.
E, de acordo com o disposto no artigo 1287º do mesmo diploma “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião”.
Assim, um dos efeitos da posse é a criação de direitos. A posse gera a aquisição da propriedade. Faz adquirir o direito, desde que se mantenha durante certo período de tempo (Cfr. Mota Pinto, Reais, pag. 213).
Segundo tem sido orientação da Jurisprudência e Doutrina, o estado de facto criado pela divisão em parcelas e autonomização destas, operada pelos comproprietários de um prédio rústico, pode converter-se em estado de direito pelo funcionamento das regras da usucapião. Tal significa que na compropriedade, a unidade predial pode parcelar-se por usucapião desde que os comproprietários passem a utilizar partes distintas do prédio como se estivesse materialmente dividido em frações, ocupando cada um a sua parcela, perfeitamente delimitada e circunscrita, sem oposição, de modo exclusivo, à vista de toda a gente, sem violência, na convicção de exercer um direito próprio, como se seu verdadeiro dono fosse, sem invasão de parcelas alheias.
Com efeito, como ensina o Professor Oliveira Ascensão, a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião: as vicissitudes registrais não contendem nem abalam os efeitos da usucapião.
Porém, a verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período de tempo. Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má- fé, titulada, ou não titulada ) influem apenas no prazo (Cfr. M.H. Mesquita, Reais, 1967, pág. 112)
“A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”- artigo 1251º do Código Civil.
Na posse distinguem-se dois elementos: o “corpus” - que se identifica com os atos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa; e o “animus” - que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticados (Cfr. M.Pinto, Reais, p.181).
A lei exige a existência do “corpus” e do “animus” para que exista posse, o que implica que o possuidor tenha de provar a existência destes dois elementos para poder adquirir por usucapião.
Para facilitar ao possuidor a prova do “animus”, a lei estabelece uma presunção: em caso de dúvida, presume-se a posse daquele que exerce o poder de facto. O exercício do “corpus” faz presumir o “animus”.
Se a posse é titulada e de boa fé, a usucapião de bens imóveis tem lugar decorridos 10 anos, se é titulada e de má fé, decorridos 15 anos, se é não titulada e de boa fé, decorridos 15 anos, se não titulada e de má fé, decorridos 20 anos (artigos 1294º e 1296º, ambos do Código Civil).
Ora, descendo ao caso dos autos, verificamos que o demandante conseguiu fazer prova de todos os elementos da usucapião no que diz respeito à parcela em discussão.
Dos factos provados resulta assente que desde há mais de 40 anos, o prédio mãe, descrito em A), se encontra autonomizado em duas parcelas distintas e autónomas e separadas e demarcadas entre si e também dos prédios confinantes, encontrando-se atualmente a parcela designada por parcela A na posse do demandante e a parcela B na posse dos demandados, usufruindo cada um deles em exclusivo a parcela de terreno correspetiva.
Provada a materialização há mais de 20 anos e em que cada um passou a possuir, como se sua fosse, mutuamente se privando do uso sobre a totalidade do prédio e limitando-o à metade que lhe ficava demarcada, sem qualquer interferência do outro, constitui prova indiscutível da inequivocidade da posse que cada um passou a exercer apenas em nome próprio.
O demandante na parcela que lhe ficou a pertencer (identificado como parcela A tem vindo a usufrui-la de forma ininterrupta, plantando, colhendo os respetivos frutos, limpando-a e vigiando-a, de modo exclusivo, de forma pacífica e sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, incluindo dos demandados, na convicção de estar a usar de direito de propriedade próprio.
A conformidade da autonomização (desanexação) em referência não carece de ser analisada, dado que, acolhemos a tese que sustenta que as regras constantes de outros diplomas cedem perante os direitos adquiridos por usucapião. Sustenta-se, para tanto, que a posse é “agnóstica”, não sendo legítimo ou curial distinguir entre posse “justa ou injusta”, consoante exista, ou não, justa causa possessionis, sendo, pois, indiferente o que quer que historicamente estiver para trás dessa posse (cfr. DURVAL FERREIRA -Posse e Usucapião).
Resulta, assim do exposto, ter o demandante demonstrado ter adquirido, por usucapião, o prédio identificado como parcela A, descrito em F) 1), dos factos provados, por nela ter praticado os atos de posse com as características que conduzem à aquisição originária, encontrando-se preenchidos todos os requisitos exigidos pelo instituto da usucapião.
Resulta ainda inequívoca a desconformidade entre os elementos constantes das descrições prediais e matriciais em referência com a realidade factual, pelo que urge proceder às respetivas atualizações junto dos serviços da Conservatória do Registo Predial e das Finanças, fazendo valer e prevalecer a verdade material e substantiva que a segurança do comércio jurídico exige.

Assim, e em conformidade os pedidos formulados pelo demandante, porque provados, têm de proceder.
Custas: Atenta a natureza da presente ação, serão suportadas pelos Demandantes (artigo 535.º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

V – DISPOSITIVO
Face a quanto antecede, julgo procedente a presente ação, e, por consequência:

1.Declaro que o prédio rústico, sito em Serrado do Viso, Liceia, Montemor-o-Velho, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº o nº XXX/XXX… e inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo XXXX, se encontra dividido em substância, há mais de 20 anos, dando origem a dois prédios autónomos e distintos, identificados como parcela A e parcela B;

2.Declaro que o demandante A, adquiriu por usucapião o prédio identificado como Parcela A, com a seguinte descrição e configuração:: prédio rústico, com a área de 3.351,60m2, sito em Serrado do Viso, freguesia de Liceia, concelho de Montemor-o-Velho, que confronta a Norte com o próprio; Nascente com estrada publica; Sul com GR e a Poente com MMM, por se ter autonomizado do prédio mãe, supra descrito em 1., do qual se destacou, passando a ser um prédio autónomo e distinto do prédio mãe;
3.Ordeno a atualização em conformidade nos competentes registos da Conservatória do Registo Predial bem como do Serviços de Finanças, de modo a que seja conformada a realidade registral e matricial com a realidade factual existente, nomeadamente com a atribuição de artigo matricial e o registo do referido prédio a favor do aqui demandante.

Custas: pelo demandante, os qual deverá proceder ao pagamento da quantia de € 35,00 (trinta e cinco euros), no prazo de 03 (três) dias úteis subsequentes à notificação da presente Decisão, sob pena da aplicação de uma sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso.

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 8º-C, do Código Registo Predial o demandante tem dois meses, (sob pena de pagamento de multa de valor igual à prevista a titulo de emolumento - nº 1, do artigo 8º-D), contados do trânsito em julgado desta sentença, para registar o direito de propriedade ora atribuído.
Registe e notifique.

Montemor-o-Velho, 13 de junho de 2018

A Juíza de Paz Coordenadora
(Isabel Belém)Processado por meios informáticos e
revisto pela signatária. Verso em branco
(Artigo 18.º da LJP)