Sentença de Julgado de Paz
Processo: 79/2018JPAGB
Relator: CRISTINA POCEIRO
Descritores: USUCAPÃO. REQUISITOS.
Data da sentença: 12/28/2018
Julgado de Paz de : AGUIAR DA BEIRA
Decisão Texto Integral:

Processo nº 79/2018 – JP Aguiar da Beira
SENTENÇA
I – RELATÓRIO:
Identificação das partes:
Demandantes:
A, portador do número de identificação civil ---- e do número de identificação fiscal --- e mulher B, portadora do número de identificação civil --- e do número de identificação fiscal ---, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, residentes em --- Valverde;---
Demandados:
1º- C, portador do número de identificação fiscal --- e mulher D, residentes em --- Paris, França; e
2º- E, pessoa coletiva de direito público com o número de identificação --- , com sede no --- Souto de Aguiar da Beira.
Objeto do litígio, tramitação e saneamento:
Os demandantes instauraram a presente ação declarativa de condenação, enquadrada na alínea e) do nº 1 do artigo 9º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 2º da Lei nº 54/2013, de 31 de julho, pedindo, com base nos fundamentos constantes do respetivo requerimento inicial, que a mesma seja julgada procedente e, em consequência:
“a) Devem os demandados ser condenados a reconhecer o direito de propriedade dos demandantes;
b) Deve declarar-se dividido em substância, desde há mais de 20 anos, o prédio rústico inscrito na matriz predial da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, sob o artigo n.º --- e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aguiar da Beira, sob o n.º --- da referida união de freguesias;
C) Deve declarar-se que se autonomizou do prédio rústico inscrito na matriz predial n.º ---, da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, por via da usucapião, uma parcela de terreno inscrita na matriz predial urbana da mesma união de freguesias sob o n.º ---, constituído por um lote de terreno para construção, com área total de 370 m2; área de implantação e bruta de construção de 55,500 m2, sita à --- VALVERDE AGB, o qual passou a ser um prédio autónomo e distinto daquele do qual se destacou;
d) Que se ordene que, à matriz predial rústica n.º ---, da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, inscrita na Repartição de finanças de Aguiar da Beira, seja desanexada a parcela de terreno identificada no ponto b) deste pedido, e a sua área abatida naquela inscrição;
e) Que se ordene que da descrição nº --- – Conservatória do Registo Predial de Aguiar da Beira, União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira, seja desanexada a parcela de terreno identificada na alínea b) do presente pedido, e a sua área abatida naquela descrição;
f) Se declare adquirido por usucapião, com efeitos previstos no art. 1288 do Código Civil, a favor dos Demandantes, o direito de propriedade sobre o prédio descrito na matriz predial urbana da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, sob o n.º ---, constituído por lote de terreno para construção, com área total de 370 m2; área de implantação e bruta de construção de 55,500 m2, sita à ---VALVERDE AGB.”

Para tanto, os demandantes alegaram os factos constantes do respetivo requerimento inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, segundo os quais, resumidamente, em maio de 2012, por compra e venda verbal, adquiriram aos primeiros demandados um terreno para construção, sito em Valverde, concelho de Aguiar da Beira, que estes, por sua vez, haviam adquirido, em 04 de janeiro de 1990, por compra e venda celebrada em hasta pública, à extinta Freguesia de Valverde, no qual depois edificaram uma construção, imóvel que, respetivamente, desde aquelas datas, usam como seus únicos e exclusivos donos, invocando diversos atos de uso e fruição do mesmo e alegando diversos factos caracterizadores da respetiva posse que invocam, concluindo que o adquiriram por via da usucapião, atenta a acessão das respetivas posses.

Para o efeito, os demandantes juntaram procuração forense e cinco documentos ao respetivo requerimento inicial, dois documentos na audiência de julgamento e a convite do tribunal, onde se fizeram representar pelo seu ilustre mandatário, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.-

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Atenta a espécie e finalidade da presente ação, por não se vislumbrar adequada a resolução do litígio através do serviço de mediação existente neste julgado de paz, não foi marcada sessão de pré-mediação.

Os demandados, pessoal e regularmente citados, não apresentaram contestação. Notificados para tal, os primeiros demandados faltaram à audiência de julgamento e não justificaram a respetiva falta no prazo legal, e o legal representante da segunda demandada compareceu na primeira sessão, mas faltou à segunda e não justificou a respetiva falta.


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Foi cumprido o princípio do contraditório quanto à questão do valor a atribuir à presente ação, assim como relativamente aos documentos juntos aos autos no decurso da audiência de julgamento, bem como quanto aos esclarecimentos prestados pelos demandantes, incluindo na sequência do aperfeiçoamento do requerimento inicial, sendo que os demandados nada disseram.

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A audiência de julgamento decorreu com observância dos legais formalismos.
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Mantêm-se os pressupostos de regularidade e validade da instância, pois, o julgado de paz é competente em razão do objeto, do valor, da matéria e do território (artigos 6º, nº 1, 8º, 9º, nº 1, alínea e) e 11º, nº 1, todos da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhes foi conferida pelo artigo 2º da Lei nº 54/2013, de 31 de julho).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras exceções, nulidades ou quaisquer questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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Valor da ação: fixa-se o valor da presente ação em € 2.930,00 (dois mil, novecentos e trinta euros), em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 296º, nº 1, 299º, 302º, nº 1, 305º e 306º, todos do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do artigo 63º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 2º da Lei nº 54/2013, de 31 de julho.
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Questão a decidir: verificação dos requisitos da aquisição originária do direito de propriedade pelos aqui demandantes, por via da usucapião, sob o prédio urbano identificado nos autos.
Assim, cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
Discutida a causa, consideram-se provados os seguintes factos com interesse para a decisão da mesma:
1. Em 30 de dezembro de 1989, por adjudicação feita em hasta pública, os primeiros demandados adquiriram à Freguesia de Valverde, um terreno para construção, sito ao ---, Freguesia de Valverde, designado por “lote nº ---”, que confronta a Norte com “lote nº ---”, a Sul com “lote nº ---”, a Poente com caminho público e a Nascente com “E”, pelo preço de duzentos e vinte e nove mil e quatrocentos escudos, que fazia parte do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo ---º da extinta Freguesia de Valverde, correspondente ao atual artigo matricial ---º da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número---, da referida Freguesia de Valverde e com inscrição de aquisição a favor da segunda demandada pela apresentação --- de 23 de Setembro de 1992;
2. Em 04 de janeiro de 1990, o Presidente da Junta de Freguesia de Valverde, emitiu um alvará, a favor do primeiro demandado, no qual declara ter-lhe sido feita a adjudicação, em hasta pública, do terreno identificado no número anterior, conceder-lhe o “(…) direito à posse e fruição do lote nº 2 do loteamento do Calvário para construção urbana (…)”, constando também “Para que sirva de título ao arrematante para todos os devidos e legais efeitos, passo o presente alvará, que assino e faço autenticar.”;
3. Nessa sequência, em 1991, foi inscrito na matriz predial urbana, atualmente sob o artigo ---º, da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, concelho de Aguiar da Beira, com origem no artigo ---º da extinta Freguesia de Valverde, a favor do primeiro demandado, um prédio urbano sito ao ---, no lugar de Valverde, composto por terreno para construção, com a área de 370m2;
4. Em 04 de Julho de 1991, no âmbito do processo nº ---/91, a Câmara Municipal de Aguiar da Beira concedeu ao primeiro demandado a licença de construção nº ---/91, válida até 25 de Fevereiro de 1992, “(…) para construção de uma moradia sita ao --- e é um lote de terreno de um loteamento da Junta de Freguesia de Valverde com o Alvará nº --- de 6/83 (…)”;-
5. A partir de 04 de janeiro de 1990 até ao ano de 2012, os primeiros demandados passaram a usar, fruir e a dispor do terreno identificado nos anteriores números um e três, como seus únicos e exclusivos donos, de forma visível e permanente, procedendo no mesmo à construção de uma edificação, composta de rés do chão;
6. Durante tal período e de forma contínua e ininterrupta, os primeiros demandados passaram a usar o referido terreno, bem como a construção que nele edificaram, detendo as respetivas chaves, entrando na mesma quando lhes convinha, aí guardando diversos pertences seus e impedindo que terceiros acedessem e usassem os mesmos;
7. O que sempre fizeram à vista e com o conhecimento de toda a gente, incluindo da segunda demandada;
8. Sem oposição de quem quer que seja;
9. Agindo, relativamente ao terreno identificado nos anteriores números um e três, sempre na convicção de que o mesmo lhes pertencia como coisa exclusiva e própria, bem como na convicção de que não lesavam direitos de outrem, incluindo da segunda demandada;
10. Os demandantes casaram, sem convenção antenupcial, no dia 23 de dezembro de 2001;
11. Em data concreta não apurada, mas no ano de 2012, por acordo verbal de compra e venda, os demandantes adquiriram aos primeiros demandados o terreno identificado nos anteriores números um e três, que o transmitiram àqueles;
12. A partir do ano de 2012 e até ao presente, os demandantes passaram a usar, fruir e a dispor do terreno identificado nos anteriores números um e três, como seus únicos e exclusivos donos, de forma visível e permanente, procedendo à realização de obras na construção aí edificada pelos primeiros demandados, designadamente colocação de cobertura e pintura exterior;
13. Desde tal data e de forma contínua e ininterrupta, os demandantes passaram a usar o referido terreno e a construção nele edificada, detendo as respetivas chaves, entrando na mesma quando lhes convém, aí guardando diversos pertences seus e impedindo que terceiros acedam e usem os mesmos;
14. Com respeito pelas respetivas estremas, que se encontram totalmente demarcadas e delimitadas com muros de vedação e com um portão de acesso à via pública confinante;
15. O que sempre fizeram e continuam a fazer à vista de toda a gente, incluindo dos demandados;
16. Sem oposição de quem quer que seja;
17. Agindo, relativamente ao terreno identificado nos anteriores números um e três, sempre na convicção de que o mesmo lhes pertence como coisa exclusiva e própria.

Factos não provados com interesse para a decisão da causa: Que a divisão material do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo ---º da extinta Freguesia de Valverde, correspondente ao atual artigo matricial ---º da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, identificado no anterior número um, não tenha sido precedida de uma operação de loteamento.

Motivação dos factos provados:
A convicção do tribunal fundou-se na apreciação e conjugação crítica de toda a prova produzida e analisada em sede de audiência de julgamento, ou seja, nos documentos juntos aos autos, na inspeção judicial ao terreno aqui em causa e na prova testemunhal apresentada pelos demandantes.

Atendeu-se também às regras de repartição do ónus da prova (artigos 342º e seguintes do Código Civil, diploma ao qual pertencem todas as normas seguidamente indicadas sem expressa menção da sua fonte), bem como às presunções legais aplicáveis ao caso concreto dos autos (artigo 350º).

Foram ainda considerados pelo tribunal, os factos adquiridos nos termos do disposto no artigo 5º, nº 2, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, em relação aos quais os demandados tiveram oportunidade de se pronunciar, não lhes tendo deduzido qualquer oposição ou contraprova.

Ponderou-se também a conduta processual das partes, particularmente dos demandados, que não deduziram qualquer oposição aos factos alegados pelos demandantes, aceitando-os, portanto; que não impugnaram os documentos juntos aos autos (incluindo os que a seguir se irão elencar); e que não produziram qualquer contraprova, o que no entender do tribunal reforça a convicção de que a posse do prédio aqui em causa pelos demandantes (e também pelos primeiros demandados) tem sido exercida, desde o seu início e até ao presente, de forma contínua, pública e pacífica, nos exatos termos dados como provados.

Quanto aos documentos juntos aos autos, foram relevantes a cópia da transcrição do alvará emitido, em 04 de janeiro de 1990, pela Junta de Freguesia de Valverde e a guia de imposto de selo de arrematações de fls. 10 a 12 dos autos, que comprovam a factualidade dada como provada sob os números um e dois; a caderneta predial urbana de fls. 13 dos autos, obtida eletronicamente em 10 de setembro de 2018, que também comprova a factualidade dada como provada sob o número um; a descrição predial de fls. 14 dos autos, obtida em 10 de setembro de 2018, que também confirma a factualidade dada como provada sob o número um; a caderneta predial urbana de fls. 9 dos autos, obtida eletronicamente em 10 de setembro de 2018, que comprova a factualidade dada como provada sob o número três; o levantamento topográfico de fls. 67 a 69 dos autos, que também comprova a factualidade dada como provada sob o número três; a guia de receita emitida, em 30 de Agosto de 1991, pelo Município de Aguiar da Beira, que comprova a factualidade dada como provada sob o número quatro; a informação do teor do assento de casamento de fls. 66 e 67 dos autos, que comprova os factos constantes no número dez; e as fotografias de fls. 71 a 76 dos autos, que também comprovam os factos constantes nos números cinco, sete, doze, catorze e quinze.

Por outro lado, a inspeção judicial feita ao terreno dos autos no âmbito da audiência de julgamento, permitiu que o tribunal também ficasse convencido da veracidade dos factos dados como provados sob os números cinco, doze e catorze, conforme decorre do respetivo auto vertido na segunda ata de fls. 77 a 80 dos autos, sendo inequívoca a divisão material e física do prédio mãe originário de que provém o terreno dos autos, enquanto coisa autónoma e distinta daquele.

A demais factualidade, designadamente a vertida nos números cinco a nove e onze a dezassete, foi dada como provada atendendo à conjugação dos anteriores meios de prova com a prova testemunhal apresentada pelos demandantes produzida em audiência de julgamento, e que foi, criticamente, apreciada pelo tribunal, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova (artigo 396º) e à luz das regras de experiência comum (artigo 351º).

Assim, a testemunha inquirida, G, mostrou ter conhecimento direto e pessoal da situação do imóvel dos autos, por força do exercício das respetivas funções de engenheiro civil, tendo prestado diversos serviços aos primeiros demandados, bem como por residir na Ponte do Abade, Sequeiros, em Aguiar da Beira, concelho onde se situa o terreno dos autos, conhecendo como o mesmo foi transmitido pelos primeiros demandados aos demandantes, bem como o uso exclusivo que, desde a sua aquisição até ao presente, foi feito pelos mesmos (razão de ciência que permitiu ao tribunal dar credibilidade ao respetivo depoimento).

Ademais, a aludida testemunha prestou depoimento de forma clara, tranquila e isenta, afigurando-se o respetivo depoimento credível, também pelo facto de não ter qualquer interesse no desfecho desta causa e por manifestar conhecimento da situação do terreno dos autos e de outras situações similares relacionadas com o loteamento do --- da extinta Junta de Freguesia de Valverde, por força do exercício das suas funções de engenheiro civil, incluindo no âmbito deste concelho de Aguiar da Beira, e permitiram ao tribunal formar a convicção quanto à duração e caraterísticas da posse dos demandantes e dos primeiros demandados em causa nos presentes autos.

Assim, a referida testemunha esclareceu que entre 2010 e 2012 os primeiros demandados contrataram os seus serviços com vista a verificar a situação dos seus imóveis, uma vez que o seu escritório se dedica designadamente à elaboração de projetos no ramo imobiliário, e que, nesse contexto, o primeiro demandado lhe deu indicações expressas para nada fazer quanto ao terreno e construção em causa nestes autos, uma vez que já o tinha vendido aos aqui demandantes, que lhe pagaram o respetivo preço; que foram os primeiros demandados que fizeram a construção do rés do chão edificado no terreno dos autos (tendo sido nessa sequência que exibiu o documento do qual foi extraída a respetiva cópia junta a fls. 70 dos autos), que se destinaria à sua casa de habitação, mas que não chegaram a concluir em virtude de terem emigrado; relatou que o terreno dos autos estava vedado; que as construções dos terrenos confinantes são mais antigas e que, há cerca de seis anos, por terem sido solicitados os seus serviços a respeito de um outro terreno ali vizinho, ao qual teve de se deslocar, se lembra que, nessa ocasião, os demandantes andavam a fazer obras de acabamentos na edificação construída no terreno dos autos, pois, estava a ser realizada a cobertura e a pintura; que os demandantes usavam o rés do chão para armazém porque eram revendedores de papel e detergentes; que a referida construção e aludidas obras de acabamento foram feitas, respetivamente, pelos primeiros demandados e pelos demandantes, à vista de todos e que ninguém reclamou, nem os vizinhos, nem os demandados; que tanto os primeiros demandados, como depois da venda os demandantes, sempre agiram convencidos de que eram donos do terreno dos autos (referindo até que o primeiro demandado dizia que “a palavra vale muito”, que tinha licença de construção, que pagou os impostos, que vendeu aos demandantes e recebeu o preço, por isso, o terreno dos autos já não lhe dizia respeito).

Motivação dos factos não provados: assim foram considerados por, no entender do tribunal, tal factualidade ter permanecido em dúvida, designadamente em face do teor dos documentos de fls. 10 e 70 dos autos que fazem referência a uma alegada operação de loteamento da Junta de Freguesia de Valverde no lugar do ---, em Valverde; isto é, não só a extinta Junta de Freguesia de Valverde faz menção ao “loteamento do ---”, correspondendo o terreno dos autos ao “lote nº ---”, como o próprio Município de Aguiar da Beira refere expressamente o “loteamento da Junta de Freguesia de Valverde com o Alvará nº --- de 6/83” no lugar do Calvário, onde se situa o terreno dos autos; sendo que, apesar da aludida operação de loteamento não estar averbada na descrição predial de fls. 14 dos autos, tal circunstância não tem sido um facto impeditivo de na mesma já se encontrarem averbadas vinte e duas desanexações de terrenos (como inequivocamente resulta de tal documento), o que bem demonstra que o prédio rústico mãe / originário aí em causa foi, pelo menos, física e materialmente dividido pela extinta Junta de Freguesia de Valverde e as respetivas parcelas de terreno adjudicadas a terceiros, como também ocorreu com o terreno dos autos.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
Os demandantes, por via da presente ação, pretendem que lhes seja reconhecido o direito de propriedade exclusivo sobre o terreno para construção, inscrito na matriz predial urbana, atualmente sob o artigo ---º, da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, concelho de Aguiar da Beira, com origem no artigo ---º da extinta Freguesia de Valverde, que adquiriram, verbalmente, aos primeiros demandados no ano de 2012 e que estes, por sua vez, adquiriram à segunda demandada, em 1990, por adjudicação em hasta pública.
Para tal efeito, alegam a aquisição originária, por via do instituto da usucapião, da aludida parcela de terreno, autónoma e perfeitamente individualizada relativamente ao demais terreno que fazia parte do prédio originário / prédio mãe da segunda demandada, inscrito na matriz predial sob o artigo ---º da extinta Freguesia de Valverde, correspondente ao atual artigo matricial 3699º da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ---, da referida Freguesia de Valverde, e que foi dividido em substância pela própria segunda demandada, que procedeu à adjudicação do terreno dos autos aos primeiros demandados, em hasta pública no dia 30 de Dezembro de 1989, como resulta dos factos provados (e como resulta da respetiva descrição predial que tem averbadas vinte e duas desanexações de parcelas de terreno desse prédio).

A aquisição por usucapião funda-se, diretamente, na posse, cuja extensão e conteúdo definem a extensão e o conteúdo do direito prescricionalmente adquirido, com absoluta independência em relação aos direitos que antes daquela aquisição tenham incidido sobre a coisa.

A aquisição por usucapião é uma forma de aquisição originária porque o direito de propriedade se adquire pelo estabelecimento de uma relação direta entre o sujeito adquirente e a coisa reconhecida pela lei como apta à aquisição do direito, independentemente da intervenção do anterior proprietário.
De modo que, quaisquer vícios que possam incidir sobre a operação constitutiva do fracionamento de um prédio rústico são de todo irrelevantes, pois, o possuidor de uma determinada fração, decorrido o tempo necessário à usucapião, adquire, quando assim o entender e reunindo os seus pressupostos legais, o direito de propriedade sobre a coisa possuída.
Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 1316º, o direito de propriedade também se pode adquirir por usucapião. E, também quando adquirido por esta via, o direito de propriedade é um direito real de gozo, que beneficia de eficácia absoluta ou erga omnes, ou seja, o direito impõe-se a todos os restantes sujeitos que, por isso, ficam vinculados ao cumprimento do dever geral de abstenção, isto é, do dever de não interferir no exercício do direito real.
No caso dos autos ficaram provados atos materiais e exclusivos de posse dos demandantes sobre a parcela de terreno em causa nos autos desde 2012 até ao presente, pois, desde então que a usam e fruem das suas utilidades, designadamente através da utilização da construção ali edificada pelos primeiros demandados. E quanto a estes, por sua vez, ficaram provados atos materiais e exclusivos de posse desde Janeiro de 1990 até ao ano 2012, quando venderam, verbalmente, tal terreno aos aqui demandantes.

A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º). No caso concreto, trata-se da posse do direito de propriedade, que mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação, por via da usucapião (artigo 1287º).

Sendo que, a posse pode adquirir-se designadamente pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito [artigo 1263º, alínea a)] ou pela tradição material efetuada pelos anteriores possuidores [artigo 1263º, alínea b)], como ocorre no caso dos autos.

Sendo que, aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor, é o que o artigo 1256º designa por acessão da posse, instituto jurídico também invocado pelos demandantes com vista a alcançar o supra referido efeito jurídico concedido pela usucapião. No caso dos autos, os demandantes não adquiriram a posse do terreno dos autos por sucessão por morte, mas através de um acordo verbal de compra e venda estabelecido com os primeiros demandados.

Mas, se a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito (artigo 1256º, nº 2).

A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (artigo 1258º).

A posse dos primeiros demandados, sobre o terreno dos autos, pode considerar-se titulada, uma vez que adquirida por via da respetiva adjudicação em hasta pública, realizada pela Junta de Freguesia de Valverde no dia 29 de dezembro de 1989, e confirmada em deliberação da mesma data, encontrando-se titulada pelo alvará emitido, em 04 de janeiro de 1990, pelo então Presidente da extinta Junta de Freguesia, à data, título bastante para comprovar a transmissão do direito de propriedade sobre tal imóvel e a respetiva posse, conforme dele expressamente resulta, ao mencionar que o alvará é “Para que sirva de título ao arrematante para todos os devidos e legais efeitos, passo o presente alvará, que assino e faço autenticar.”, pelo que, nessa ocasião, a posse dos primeiros demandados encontrava-se, em abstrato, fundada num modo legítimo de adquirir. E os demandantes fizeram prova da existência desse título nos presentes autos, uma vez que juntaram o documento da respetiva transcrição (artigo 1259º).

Com efeito, já o artigo 356º do Código Administrativo (Decreto-Lei nº 31095, de 31-12-1940) estabelecia que, salvo os casos para que a lei prescrevesse forma especial, o título dos direitos conferidos aos particulares por deliberações dos corpos administrativos que os invistam em situações jurídicas permanentes será um alvará expedido pelos respetivos presidentes. A referida norma foi revogada pela Lei das Autarquias Locais – Lei nº 79/77, de 25 de outubro, mas o entendimento manteve-se, uma vez que o seu artigo 107º determinava que, salvo se a lei exigir forma especial, o título que integre decisão ou deliberação dos órgãos das autarquias locais que confira direitos aos particulares, investindo-os em situações jurídicas permanentes, será um alvará expedido pelo respetivo presidente (e norma semelhante foi mantida pelo artigo 87º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de março, que revogou aquela). E, por isso mesmo, o próprio Código de Notariado de 1967 (Decreto-Lei nº 47619, de 31-03-1967), no seu artigo 90º, alínea a), determinava que são praticados, nos termos da legislação especial respetiva, os atos em que intervenham como outorgantes pessoas coletivas de direito público, ficando, portanto, excluídos de celebração por escritura pública. Esta legislação especial seria, no caso das autarquias locais, a Lei das Autarquias Locais ou o Código Administrativo.

O alvará pode definir-se como o título pelo qual se dá forma externa e publicidade a resoluções de entidades públicas, com eficácia temporária ou permanente, conferindo direitos, investindo alguém em situações jurídicas especiais ou permitindo a quem satisfaça determinados requisitos uma situação ou atividade vedadas. Ou, mais simplesmente, como um documento firmado pela autoridade competente pelo qual esta faz saber a quem dele tome conhecimento a existência de certo direito constituído em proveito de determinada pessoa. É isto mesmo que ocorre no caso dos autos, com a emissão do referido alvará a favor dos aqui primeiros demandados.
Por outro lado, vicissitudes decorrentes dos diplomas de direito do urbanismo (o Decreto-Lei nº 289/73, de 06 de Junho ou o Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro, que revogou aquele), não determinam que os primeiros demandados deixaram de ser possuidores do terreno aqui em causa, desde Janeiro de 1990 até ao ano de 2012, quando venderam verbalmente tal terreno aos aqui demandantes, uma vez que a posse resulta, tão só, do poder de facto exercido sobre a coisa. Sucede apenas que, para que os primeiros demandados pudessem submeter a registo predial a respetiva aquisição com base no alvará aqui em causa, este deveria indicar o número e a data do alvará de loteamento, o que não se verifica (artigo 27º, nº 2 do Decreto-Lei nº 289/73, de 06 de Junho e artigo 57º do Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro).

Ora, é a qualidade de possuidores, ou melhor, de antepossuidores por parte dos primeiros demandados, e de atuais possuidores ou “senhorios de facto”, que os demandantes aqui alegam como causa de pedir.

Por sua vez, a posse dos demandantes, sobre o terreno dos autos, considera-se não titulada, uma vez que tendo sido adquirida por via de um acordo de compra e venda meramente verbal aos primeiros demandados, não se encontra fundada num modo legítimo de adquirir (artigo 1259º, conjugado com as disposições dos artigos 220º e 875º, uma vez que, tratando-se de um bem imóvel, para que o acordo de compra e venda pudesse ser formalmente válido exigiria ter sido celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado, atenta a data (ano de 2012) indicada nos autos), e que, por isso, se presume de má fé (artigo 1260º, nº 2).

Daí que, nos termos do disposto no artigo 1256º, nº 2, como a posse do antecessor (primeiros demandados) é de natureza diferente da posse do sucessor (demandantes), a acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito, que, no caso concreto, é a posse dos demandantes, por ser não titulada, assim devendo ser considerada as respetivas posses no seu todo, uma vez que os demandantes pretendem somar ambas as posses aqui em causa (já que, se invocassem apenas a sua própria posse, ainda não tinha decorrido o prazo legal de vinte anos exigido por lei para adquirir o correspondente direito).

Apenas uma breve nota no sentido de que não se olvida a controvérsia doutrinal e jurisprudencial em torno da figura da acessão da posse, atenta a divergência quanto à sua aplicação apenas a negócios formalmente válidos (como é defendido pelos Ilustres Professores Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, pág. 14, Coimbra Editora).
A este respeito e a título meramente exemplificativo da aludida controvérsia, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, datados de 02-12-2014, proferido nos autos do processo 94/07.8TBSCD.C1.S1 e de 08-02-2018, proferido nos autos do processo 642/14.7T8GRD.C1.S1, ambos disponíveis para consulta pública no sítio da internet www.dgsi.pt.
No entanto, também nos parece plausível e não excluído expressamente pela norma do artigo 1256º o entendimento de que se a posse for conferida ao atual possuidor através da entrega do bem, mas sem que a transferência dela se faça por negócio formalmente válido (como ocorre no caso dos autos), a consequência será a de se ter a posse como não titulada e de má fé, pelo que, caso o atual possuidor queira beneficiar da acessão, dada a natureza da sua posse, a posse (incluindo do antecessor) valerá somente como não titulada, por ser a posse que tem “menor âmbito”.
Assim sendo, como a posse dos demandantes se considera uma posse não titulada, presume-se, portanto, de má-fé (artigo 1260º, nº 2).

No demais, ambas as posses invocadas nos autos consideram-se pacíficas porque foram adquiridas, tanto pelos primeiros demandados como pelos demandantes, sem violência e sem qualquer oposição (artigo 1261º, nº 1) e públicas porque foram exercidas à vista de toda a gente, de modo a poderem ser conhecidas por quaisquer interessados, desde logo a aqui segunda demandada e terceiros confiantes, vizinhos ou outros (artigo 1262º).

Sendo que, a própria construção já existente no terreno dos autos, a circunstância de todo o terreno se encontrar vedado e devidamente delimitado dos prédios confinantes, bem demonstra que tais benfeitorias foram feitas à vista de toda a gente daquele lugar e da própria segunda demandada, que poderiam ter reclamado ou usado dos expedientes legais para evitar a construção de tais obras, do que, contudo, não houve qualquer indicação nos autos, significando também, portanto, que a posse tanto dos primeiros demandados, como dos aqui demandantes, desde o seu início até ao presente, sempre foi pública e pacífica e assim continua.

Os demandantes, enquanto possuidores, gozam da presunção da titularidade do direito de propriedade que invocam sobre o terreno para construção aqui em causa, entretanto inscrito na matriz como prédio urbano, atualmente sob o artigo ---º, da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, concelho de Aguiar da Beira, e que teve origem no artigo ---º da extinta Freguesia de Valverde, desde o início da posse dos primeiros demandados, por força também da invocada acessão da posse, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1252º, 1254º, 1256º, 1268º, nº 1 e 1288º. E, sendo assim, deve considerar-se que a posse do terreno em causa nos autos perdura, ininterruptamente, há mais de vinte anos (desde Janeiro de 1990 até ao presente).

Ou seja, considerando a posse dos demandantes não titulada e, portanto, de má-fé, já se mostra completado o prazo legal mínimo de vinte anos exigido para a aquisição do direito de propriedade aqui invocado, por força da atuação da invocada acessão da posse (uma vez que é uma faculdade do possuidor atual invocar a soma da sua posse com a posse dos antepossuidores ou invocar apenas a sua própria posse).

Ocorre que, a aqui segunda demandada também goza da presunção de titularidade do direito de propriedade sobre o prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo ---º da extinta Freguesia de Valverde, correspondente ao atual artigo matricial ---º da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ---, da referida Freguesia de Valverde, uma vez que tem inscrita a seu favor a respetiva aquisição junto do Registo Predial, pela apresentação --- de 23 de setembro de 1992 (artigo 7º do Código do Registo Predial), do qual fazia, originariamente, parte a parcela de terreno em discussão nestes autos, e do qual foi, em substância, autonomizada pela própria segunda demandada.

No entanto, concorda-se com o entendimento de que a presunção de tal normativo não abrange os elementos de identificação do prédio constantes da descrição, sempre que exista uma desconformidade entre esta, no que respeita a algum daqueles elementos, e a realidade material do imóvel, designadamente quanto aos limites, estremas, áreas e confrontações. Ora, tendo-se autonomizado do prédio mãe a parcela de terreno dos autos, a respetiva área deve ser igualmente desanexada da referida descrição (à semelhança do que já se verifica com as vinte e duas desanexações nela averbadas).

No caso concreto dos autos, e de acordo com o disposto no artigo 1268º, a presunção da titularidade do direito de propriedade de que gozam os demandantes, enquanto possuidores, prevalece sobre a presunção fundada no registo predial de que beneficia a aqui segunda demandada, uma vez que o início da posse dos demandantes, por força da invocada acessão da posse, deve reportar-se a Janeiro de 1990, ou seja, é anterior à data do registo predial da aquisição do direito de propriedade pela segunda demandada (23 de setembro de 1992).

Sendo que, mesmo que assim não fosse, sempre se teria de considerar ilidida a presunção de propriedade da segunda demandada quanto à concreta parcela de terreno, com a área de 370m2, aqui em causa, que dele se autonomizou em substância física e materialmente (realidade comprovada sob o número catorze dos factos provados, da qual o tribunal pode ter perceção direta através da inspeção judicial realizada na audiência, estando o terreno dos autos perfeitamente delimitado por muros e, portanto, perfeitamente autonomizado do prédio mãe do qual deve ser desanexado).

Tanto mais que, a aquisição do direito de propriedade fundada na usucapião é oponível a terceiros, mesmo que não registada na Conservatória do Registo Predial (artigo 5º, nº 2, alínea a) do Código do Registo Predial).
Assim, não havendo registo do título nem da mera posse, como não há no caso concreto dos aqui demandantes, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé (artigo 1296º). Ora, no caso dos autos, ficaram provados atos materiais e exclusivos de posse dos demandantes apenas sobre a parcela de terreno para construção aqui em causa, desde Janeiro de 1990 até ao presente e sem qualquer interrupção, por força da invocada acessão da posse dos primeiros demandados à sua própria posse. Portanto, há mais de vinte anos.

A posse da parcela de terreno pelos aqui demandantes considera-se, assim, de má-fé porque não titulada por título formalmente válido, pacífica porque exercida sem qualquer violência ou oposição de quem quer que seja, pública porque exercida à vista de toda a gente daquele lugar de Aguiar da Beira, na convicção de exercerem um direito próprio e exclusivo.

Por outro lado, presume-se que quem pratica atos materiais de posse (o corpus), atua, igualmente, por forma correspondente ao exercício, no caso, do direito de propriedade (o animus possidendi), presunção que não foi ilidida nos autos (neste sentido o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-05-1996, publicado no Diário da República, II Série, de 24-06-1996), pelo que, mostram-se preenchidos todos os requisitos legais para verificação da aquisição do direito de propriedade por via da usucapião, já que, para tal efeito, aqui foi invocada pelos demandantes.

Por outro lado, no caso concreto dos autos também não está posta em causa a tutela do interesse público de ordenamento do território, pois, a construção já edificada no terreno dos autos foi feita pelos primeiros demandados com licença concedida pelo Município de Aguiar da Beira (conforme resulta abundantemente do documento de fls. 70 dos autos) e com o conhecimento da segunda demandada, que são as entidades autárquicas que, em primeira linha, devem zelar pela observância das regras urbanísticas e pela tutela de tal interesse.
Assim, ponderados os interesses de ordem pública aqui em causa, isto é, o interesse na estabilidade e certeza das relações jurídicas e o interesse no correto ordenamento do território e na legalidade urbanística (artigo 335º), atenta a factualidade provada nos autos e pelos fundamentos expostos, considera-se que, no caso concreto, não se verifica qualquer conflito entre os mesmos, pois, há mais de 20 anos que a situação se encontra consolidada de facto e a construção do rés do chão foi, oportunamente, autorizada pelo Município de Aguiar da Beira através do competente e respetivo licenciamento. Isto é, ficou demonstrado nos autos que não se trata de uma construção clandestina. E o terreno dos autos foi autonomizado pela própria segunda demandada, mediante a sua transmissão em hasta pública, com a posterior delimitação e definição das respetivas estremas relativamente ao prédio rústico originário e prédios confinantes, já que se encontra totalmente vedado através de muros e portão de acesso à via pública confinante a Poente.
Os demandantes têm, portanto, direito a invocar o instituto jurídico da usucapião como forma de aquisição originária do direito de propriedade pleno e exclusivo sobre a parcela de terreno para construção aqui em causa, incluindo com a sua atual composição, que aqui reclamam como, unicamente, seu. (Aliás, a própria construção do rés do chão pelos primeiros demandados é, em si mesma, um ato de posse, uma benfeitoria realizada no terreno, o que só fizeram porque também se consideravam seus únicos donos.)

Aliás, mesmo em situações de não observância integral das regras de operações urbanísticas ou de fracionamento de prédios rústicos, pode dar-se prevalência aos efeitos jurídicos da usucapião, se esta for invocada. Já que, como defende Durval Ferreira, Ilustre Advogado,“ (…), face ao direito constituído, seria violar o conteúdo normativo do usucapião, a sua norma, ajuizar-se sequer que a sua invocação (ao abrigo dos arts. 1287.º e seguintes), ou da posse que a causa, possa ser ilícita ou nula, justa ou injusta, ou que contrarie disposições legais de carácter imperativo, a ordem pública ou os bons costumes. Pelo contrário, essa invocação é lícita, se se baseia num “senhorio de facto” tal como o densificam os respectivos preceitos legais sobre a posse (arts. 1251.º a 1267.º) e se é mantido pelo lapso de tempo exigido, e com as demais características, densificadas nos preceitos legais do usucapião (arts. 1287.º e seguintes).” (…) “E a posse que possa ser invocada para usucapião terá de ter uma idade adulta, será uma posse mantida por 15, 20 ou mais anos: e a posse vê-se. Ora, se à Administração cabe ajuizar dum correcto ordenamento do território, também lhe cabe intervir preventivamente; e para tanto teve muitos anos para atuar. (...)”, (vide in Posse e Usucapião, 3ª edição, pág. 532 e 533, Almedina).

No sentido de que o entendimento dominante é a tese da prevalência da usucapião e a título meramente exemplificativo, vejam-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 22-06-2006, proferido nos autos do processo 0632159 e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 09-10-2008, proferido nos autos do processo 08B1914, ambos disponíveis para consulta pública no sítio da internet www.dgsi.pt. Já que, a jurisprudência acolhe o entendimento de que, tendo a usucapião como causa genética apenas a posse, a nulidade formal ou substancial do título ou mesmo a falta de título apenas relevam quanto ao tempo necessário para usucapir a coisa.

Importa referir ainda que a matriz predial e o registo predial devem refletir a realidade material do imóvel e ser harmonizadas entre si, designadamente quanto à composição, localização, área, artigo matricial e titularidade, atento o objetivo essencial de dar publicidade à situação jurídica dos prédios e segurança ao comércio jurídico imobiliário, conforme resulta dos artigos 1º e 28º e seguintes do Código do Registo Predial.
Assim, como os demandantes não têm ainda fiscal e registralmente regularizada a situação material do imóvel dos autos, na procedência da presente ação, após o trânsito em julgado da presente sentença, os mesmos podem diligenciar pela regularização da situação predial fiscal e registral do prédio aqui em causa junto do Serviço de Finanças competente e da Conservatória do Registo Predial, uma vez que tal propósito consubstancia o seu interesse em agir pela presente via, com fundamento no instituto da usucapião.
De facto, o instituto da usucapião permite também definir, com exatidão, os elementos descritivos e identificadores dos prédios, isto é, a composição, as áreas, os limites, as confrontações. A propósito do instituto jurídico da usucapião e no que aqui importa, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 03-12-2013, proferido nos autos do processo 194/09.0TBPBL.C1, também disponível no dito sítio da internet, defende-se que “(…) VI - O possuidor goza da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada no registo anterior ao início da posse - artigo 1268º, nº 1, do Código Civil. VII - A regra é, pois, a de que a posse implica a presunção legal da titularidade do direito, e a excepção no caso de colisão entre ela e a presunção derivada do registo de um direito anterior ao início da posse, caso em que prevalece esta última presunção. VIII - Por isso, nos termos da norma do artigo 350.º n.º 1 do Código Civil, compete àqueles que se arrogam proprietários, provar que o detentor não é possuidor. Podendo, assim, adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa - é atribuída a propriedade ao possuidor, não propriamente porque o possuidor conseguiu provar que era proprietário, mas antes porque não foi provado que ele não o era. IX - A usucapião, como forma de aquisição originária, não só se abstrai, como inclusivamente se sobrepõe a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais relativamente a actos de alienação ou oneração de bens ou até mesmo à prática de actos que originariamente pudessem considerar-se ilegais ou até mesmo violadores dos direitos de outrem. X - O criador de tal instituto entendeu que, ponderados determinados aspectos, certas situações de facto, pudessem converter-se num verdadeiro direito, como ocorre no caso da posse, desde que se prolongue durante um período de tempo significativo, o qual se sobrepõe inclusivamente aos próprios vícios que hajam inquinado a posição do possuidor face ao bem possuído, pois surge um direito ex novo, por mera vontade do respectivo titular, na sua esfera jurídica, desde que judicialmente verificada e declarada a situação de facto que lhe subjaz e que, inclusivamente retrotrai à data do início de tal situação de facto.”.
É o que se verifica no caso dos autos. Com efeito, os demandados não alegaram, nem provaram, como lhes competia (artigos 344º, nº 1 e 350º), qualquer facto que permitisse ilidir a presunção da titularidade do direito do possuidor (no caso dos autos, direito de propriedade), consagrada no artigo 1268º, nº 1.
Finalmente, dos factos dados como provados resulta que a posse exclusiva da parcela de terreno para construção aqui em causa, pelos aqui demandantes, teve o seu início na constância do respetivo casamento, que celebraram no regime da comunhão de bens adquiridos, pelo que, o direito de propriedade exclusivo sobre tal parcela pertence a ambos os demandantes, sendo um bem comum do casal [artigos 1717º, 1722º, nº 1, alínea c) e nº 2, alínea b) a contrario e 1724º, alínea b)] e, assim deverá ser aqui declarado.
IV- Decisão:
Em face do exposto e pelos fundamentos invocados, julga-se a ação procedente, por provada e, em consequência:
a) Declara-se dividido em substância, há mais de vinte anos, o prédio rústico originário inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ---º da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, que teve origem no artigo ---º da extinta Freguesia de Valverde, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ---, da referida Freguesia de Valverde;
b) Declara-se que se autonomizou do prédio rústico identificado na alínea anterior, por via da usucapião, uma parcela de terreno para construção, sita ao --- ou Rua da ---, nº ---, no lugar de Valverde, com a área total de 370m2, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ---º da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, que passou a ser um prédio autónomo e distinto do referido prédio originário;
c) Declara-se que, por o haverem adquirido por usucapião, com os respetivos efeitos a retroagir a Janeiro de 1990, os demandantes, A e mulher B, são os únicos e exclusivos donos, legítimos proprietários e possuidores, da parcela de terreno para construção, identificada na anterior alínea b), sita ao --- ou Rua da ---, nº ---, no lugar de Valverde, com a área total de 370m2, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ---º da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde;
E em consequência:
d) Condenam-se os demandados, C,D e F, a reconhecerem o direito de propriedade exclusivo dos demandantes,A e mulher B, sobre a parcela de terreno para construção, identificada na anterior alínea b), por a terem adquirido por usucapião;
e) Ordena-se ao Serviço de Finanças a rectificação da área do prédio rústico originário inscrito na matriz predial sob o artigo ---º da União das Freguesias de Souto de Aguiar da Beira e Valverde, que teve origem no artigo ---º da extinta Freguesia de Valverde, por força da desanexação da parcela de terreno identificada na anterior alínea b) e a sua área abatida na referida matriz;
f) Ordena-se a desanexação da parcela de terreno identificada na anterior alínea b) e a sua área abatida da descrição predial número ---, da Freguesia de Valverde, da Conservatória do Registo Predial, com o consequente averbamento de desanexação.

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As custas totais, no valor de € 70,00 (setenta euros), são a cargo dos demandantes, que declaro parte vencida para efeito de custas, uma vez que os demandados não deram causa à ação e não deduziram oposição ao direito dos demandantes, sendo que a segunda parcela de tal importância, no montante de € 35,00 (trinta e cinco euros) deve ser paga nos três dias úteis imediatamente subsequentes ao do conhecimento da presente decisão, sob pena de aplicação e liquidação de uma sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso, até ao valor de € 140,00 (cento e quarenta euros), nos termos do disposto no artigo 535º, nºs 1 e 2, alínea a) do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 63º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 2º da Lei nº 54/2013, de 31 de julho, e nos artigos 1º, 8º e 10º, todos da Portaria nº 1456/2001, de 28 de dezembro, na redação que lhe foi conferida pela Portaria nº 209/2005, de 24 de fevereiro.---
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Advertem-se os demandantes que, oportunamente, será dado cumprimento oficioso ao disposto no artigo 63º, nº 1 do Código de Imposto de Selo; e ainda que, os demandantes, como têm legitimidade para promover o registo da decisão final ora proferida nesta ação, deverão observar os prazos legais do artigo 8º-C do Código do Registo Predial, sob pena do pagamento acrescido de quantia igual à que estiver prevista a título de emolumento (artigo 8º-D do referido Código), considerando-se desonerado este tribunal de promover oficiosamente tal registo.
Notifique e registe.
Aguiar da Beira, 28 de dezembro de 2018
A juíza de paz,

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(Cristina Maria da Costa Rodrigues Poceiro)
Processado por meios informáticos (artigo 131º, nº 5 do Código de Processo Civil), versos em branco e revisto pela signatária.---