Sentença de Julgado de Paz
Processo: 43/2016-JP
Relator: MARGARIDA SIMPLÍCIO
Descritores: AÇÃO REFERENTE A RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL - CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE VIATURA USADA
CUMULAÇÃO INICIAL DE PEDIDOS
VÍCIOS.
Data da sentença: 01/06/2017
Julgado de Paz de : FUNCHAL
Decisão Texto Integral: SENTENÇA


Processo n.º 43/2016-J.P.

RELATÓRIO:
DEMANDANTE, R. B. A. P. da S., NIF. xxxxxxxxx, residente na rua da A. do C. G., n.º 48, no concelho de Santana.
Requerimento Inicial: A 1/11/2013 adquiriu no stand do demando o veículo da marca x, com a matrícula UB, o que fez por contrato verbal. Tendo pago pela aquisição a quantia de 2.000€, altura em que, também, assinou o requerimento do registo automóvel, concomitantemente recebeu um envelope, que não abriu, no qual estava a documentação da viatura, nomeadamente o seguro, o livrete do automóvel, o documento da última inspeção, que lhe foram entregues pelo sócio gerente do stand. No próprio dia em que começou a circular com o veículo, sentiu um barulho estranho que provinha da parte frontal, por este motivo acabou por ir verificar os documentos que lhe foram dados e foi, então, que verificou na ficha de inspeção técnica do veículo que o mesmo tinha uma deficiência com o n.º 7, ou seja, tinha sido alterado a quilometragem do veículo. Por esse motivo resolveu ir aquele Centro para se inteirar do que se passara, sendo-lhe explicado que detectaram alteração no conta quilómetros, quando fizeram a inspeção, apresentando menos quilómetros do que da última vez que fora registado, daí a anotação do código 723, a qual se manteria registada na ficha até que o veiculo atingisse os 166,643km. Devido a este facto, no dia 2/11/2013 dirigiu-se ao estabelecimento daquele, e pediu que lhe restituísse o valor de aquisição do veículo, contudo aquele recusou-se, e até hoje se mantém. Por este motivo, no dia 4/11/2013 enviou-lhe carta registada, reclamando das anomalias detectadas e solicitando o valor que pagou pela aquisição. Entretanto, procurou verificar o historial do veículo, e chegou ao anterior proprietário, uma sociedade comercial de tratamento de resíduos. Assim, deslocou-se á sede daquela, aí chegado contactou com o marido da sócia gerente, o qual acabou por lhe dizer que o veiculo fora vendido como sendo em fim de vida, isto é para abate, contudo porque ainda era possível ser reutilizado, foi mudado o motor, bem como o conta quilómetros para que possa atingir aquele objetivo. Ao venderem o veículo ao demandado deram-lhe conhecimento do facto. Ora aquele, embora tivesse conhecimento ocultou tal facto ao demandante, o qual se tivesse previamente conhecimento disso não tinha realizado o negócio, e muito menos pelo preço que pagou, pois estava convicto que teria menos quilómetros. Este negócio padece, assim, de um vício que o desvalorizou o objeto negocial, pelo que requer a sua anulabilidade, por erro ou dolo, uma vez que os factos descritos lhe foram ocultados pelo vendedor. Por outro lado, requer também a redução do preço no valor de 900€. Para além disso, tem direito a ser indemnizado pelas despesas realizadas com o registo do mesmo na quantia de 65€. Requer, ainda, ser indemnizado por danos não patrimoniais, pois ao deparara-se com a situação ficou bastante transtornado, pelo que como compensação requer 600€; e também pela contratação de mandatário, para resolução deste problema, despendendo a título de honorários a quantia de 300€. Concluindo pede que seja condenado: A) na redução do preço de aquisição do veículo, para a quantia de 1.100€, com a restituição de 900€, acrescida dos juros, á taxa legal, desde 1/11/2013 até efetivo e integral pagamento, bem como na indemnização por danos materiais na quantia de 365€, e 600€ de danos não patrimoniais; ou em alternativa B) ser anulado o contrato de compra e venda com base nos art.º913, 253 e 251 do C.C., sendo restituído o preço pago de 2.000€ e a pagar indemnização por danos materiais na quantia de 365€, e 600€ de danos não patrimoniais, acrescido dos juros legais, desde a citação, até efetivo e integral pagamento; ou em alternativa C) na declaração de nulidade do contrato com base no abuso de direito (art.º 334 do C.C.), e a pagar indemnização por danos materiais na quantia de 365€, e 600€ de danos não patrimoniais. Juntou documento de protecção jurídica.

MATÉRIA: Ação referente a responsabilidade civil contratual, enquadrada no art.º 9, n.º1, alínea H) da L.J.P.
OBJETO: Contrato de compra e venda de viatura usada, cumulação inicial de pedidos, vícios.
VALOR DA AÇÃO: 1.850€.

DEMANDADO, A. C. M., NIF. xxxxxxxxx, com residência profissional no caminho do P. B, n.º49, no concelho do Funchal.
O demandado foi considerado ausente (art.º 36, n.º2 da L.J.P.), pelo que lhe foi nomeado defensora oficiosa que não contestou.

TRAMITAÇÃO:
Não se realizou sessão de pré-mediação por ausência do demandado.
O Tribunal é competente em razão do território, do valor e da matéria.
As partes dispõem de personalidade e capacidade judiciária.
O processo está isento de nulidades que o invalidem na sua totalidade.

AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO:
Foi iniciada sem possibilidade de dar cumprimento ao disposto no art.º 26, n.º1 da L.J.P., seguindo-se para produção de prova com a junção de 5 documentos pelo demandante e terminando com alegações finais, conforme ata de fls. 77 a 78.

-FUNDAMENTAÇÃO-
I- DOS FACTOS PROVADOS:
1)Que o demandante, adquiriu o veículo da marca x com a matrícula UB.
2)O que se verificou por, compra ao demandado.
4)Tendo pago 2.000€.
5)Que o veículo fora adquirido no stand do demandado.
6) O demandado entregara ao demandante toda a documentação do veículo no momento da concretização da venda.
7)No dia 4/11/2013 o demandante enviou, carta registada com aviso de receção, ao demandado.
8)Denunciando as anomalias que verificou no veículo.
9)E, solicitando a devolução do preço que pagou pelo veículo
10)A carta foi rececionada a 7/11/2013.
11)A ficha técnica do veículo registava a deficiência com o código 723.
12)O conta-quilómetros do veículo apresentava a quilometragem inferior á registada na inspeção anterior., 166.643km
13)O demandante apresentou queixa crime por burla contra o demandado
14)Que correu termos sob autos n.º 2512/13.7TAFUN.
15)Que foi arquivada.
16) Que o demandado sabia que a quilometragem que o veículo tinha não era a real.
17)O demandante constituiu-se assistente e abriu instrução.
18)A sociedade comercial, X, Lda., fora a anterior proprietária do veículo.
19)Que foi esta que alterou o painel do veículo.
20)E deu conhecimento do facto quando vendeu o veículo ao demandado.
21)Que o demandado não informou o demandante desse facto.

MOTIVAÇÃO:
O Tribunal sustentou a decisão com base na documentação junta pelo demandante.
Os factos complementares de prova com os números 13,14,15 e 17 resultam dos documentos juntos de fls. 89 a 97.

II- DO DIREITO:
O caso dos autos refere-se á aquisição de um veículo automóvel usado.
No caso dos autos o vendedor é uma pessoa singular que se dedica profissionalmente á venda de veículos. A venda, negócio jurídico, realizou-se no stand do demandado, pelo que estamos face a um negócio jurídico realizado entre um profissional e um consumidor, o demandante. Assim, é aplicável ao negócio as regras da L.24/96 de 31/07 conjugada com os Dec. L. 67/2003 de 8/04 com as alterações do 84/2008 de 21/05, bem como as disposições legais da compra e venda.
A compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito mediante um preço (art.º 874 do C.C.).
Dispõe o Código Civil que, se a coisa vendida sofrer de vícios que a desvalorize ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para realização daquele fim, observar-se-á o disposto na seção antecedente (art.º 913, n.º1 do C.C.), remetendo-se para o art.º 905 do C.C. que prevê a possibilidade de requerer a anulação do negócio, por erro ou dolo.
Para o efeito deve denunciar o vício ou falta de qualidade da coisa (art.º 916, n.º 1 do C.C.), devendo ser realizada 30 dias após o vício ser conhecido e dentro de 6 meses após a entrega da coisa (art.º 916, n.º2 do C.C.).

No caso em apreço o veículo, objeto do negócio, é um bem em segunda mão, coisa móvel sujeita a registo (art.º 202, n.º do C.C.).
De acordo com os factos provados, resulta que o veículo tem um vício/defeito, em sentido lato, nomeadamente a alteração dos quilómetros anotados na ficha técnica deste, a fls. 87, originando a anomalia n.º 723.
Este defeito já existia no momento em que o demandante adquiriu o veículo.
Pese embora tal facto fosse do conhecimento do demandado, no momento da celebração do negócio, ocultou este facto ao demandante, quando examinou o veículo.
Como em todos os negócios ao encetar negociações com vista á realização de um negócio as partes devem proceder de boa fé (art.º 227 do C.C.), nisto se inclui dar conhecimento das características da coisa, objeto do negócio.
Ao ocultar um facto importante, induziu o demandante em erro (art.º 247 do C.C.), nomeadamente que o veículo possuía menos quilómetros do que na realidade tinha, o que motivou o pagamento do preço que o demandado pedia pelo veículo, a quantia de 2.000€.
O facto da coisa -o veículo- ter na realidade mais quilómetros do que estão registados no conta quilómetros, implica a sua desvalorização, pois em termos de valor comercial, o veiculo, vale menos do que sucederia se tal não se verificasse.
Não há dúvida que a ocultação deste facto foi significativa, pois o demandado estava tacitamente (art.º 217 do C.C.) a certificar algo que não correspondia á realidade.

Por sua vez a lei, no art.º2, n.º2 do D.L.67/2003 estabelece uma presunção legal de falta de conformidade, do bem. No fundo esta expressão -falta de conformidade- é um vocábulo com um conteúdo lato, sendo mais uma relação comparativa entre as especificidades declaradas com o objeto real.
Na realidade, a lei estabelece um conjunto de situações (presunções legais) onde parte do princípio existir falta de conformidade no bem, por isso compete ao profissional elidir a presunção (art.º 350, n.º2 do C.C.), sob pena de ser considerado como responsável pela falta de conformidade existente no bem.
No presente caso o demandado, enquanto profissional, não elidiu a presunção legal, conforme se constata, pelo que se pode dizer que a falta de conformidade lhe é imputável.
No caso concreto o demandante deduz pedidos alternativos, mas na realidade não existe alternatividade entre os pedidos, de facto é a própria lei que lhe confere a possibilidade de optar pelo pedido que melhor satisfaça a sua pretensão (art.º4, n.º1 e 5 do Dec. Lei 67/2003 de 08/04 do Dec. Lei /2008).
Assim, pode optar por requerer a resolução do negócio, a redução do valor pago, a substituição do bem e a sua reparação, sem prejuízo de requerer uma indemnização, nos termos gerais (art.º 12 da LDC conjugado com os art.º 908º, 909º e 918º do C.C.).
Ora o primeiro dos pedidos que o demandante fez nestes autos foi precisamente a redução do preço que pagou. De facto, este pedido permite-lhe manter a coisa na respetiva posse, e recuperar parte da quantia que inicialmente pagou pela aquisição do veículo (art.º 911, n.º1 do C.C.). Esta opção constitui uma alternativa á anulação do negócio, a qual é imposta ao vendedor, sempre que se consiga provar o vício da coisa.
Na realidade o vício está mais do que comprovado, pelo que procederá tal pedido, ainda por mais que se manifestou assim que o demandante entrou na posse do bem, tendo então o devido tempo para analisar condignamente, sem a pressão normal que todo o negócio encerra.
No que diz respeita ao valor do veículo, devido ao vício que existia, o preço foi efetivamente inflacionado, pelo que um veículo usado com os quilómetros que na realidade possui, teria que ter, no mercado um valor bastante inferior, pelo que é justo reduzir-se o negócio para o valor de 1.100€. Este era não só o seu valor no mercado como, também, o preço justo que devia pagar por aquela aquisição.
Na sequência da realização da redução do preço, deverá o demandado restituir a quantia de 900€, a qual corresponde ao valor com que, injustamente se locupletou.
No entanto, para que esta ação possa proceder, a lei onerou-o com um duplo ónus, previamente, o demandante, devia proceder á denúncia do vício no prazo de 2 meses, após ter constatado pela sua existência (art.º 5-A, n.º2 do Dec. Lei 84/208 de 21/05), ora o demandante, assim que teve conhecimento do facto denunciou-o ao demandado, o que resulta da carta que lhe enviou, dias de pois da realização do negócio e já na posse do veículo, documentos juntos de fls. 84 a 86.
No entanto, a lei onerou-o, também, com o ónus de interpor a ação judicial no prazo legal, ou seja, 2 anos após a realização da denúncia. Esta ação foi intentada no dia 10/02/2016, tendo a denuncia ocorrido a 7 de Novembro/2013, a ação devia ter sido intentada até ao dia 6/11/2015, tal facto implica a caducidade do respetivo direito, conforme determina o art.º 5-A, n.º1 do Dec. Lei 84/2008 de 21/05, sendo que a caducidade é uma causa de extinção do direito de conhecimento oficioso (art.º333, n.º1 do C.C.), o que se reconhece.
Devido a este facto, fica assim em crise os restantes pedidos que deduziu.

DECISÃO:
Face ao exposto, considera-se a acção improcedente, por não provada, e em consequência absolve-se o demandado do pedido.

CUSTAS:
São da responsabilidade do demandante, por ser considerado a parte vencida, pelo que deve proceder ao pagamento de 35€ (trinta e cinco euros) num dos três dias úteis após notificação da presente sentença, sob pena de lhe ser aplicado uma sobretaxa diária na quantia de 10€ (dez euros), nos termos do art.º 8 e 10 da Portaria n.º1456/2001 de 28/12 com a redacção dada pela Portaria n.º209/2005 de 24/02.


Funchal, 6 de janeiro de 2017

A Juíza de Paz

(redigido pela signatária, art.º 131, n.º5 do C.P.C.)


(Margarida Simplício)