Sentença de Julgado de Paz
Processo: 95/2016-JP
Relator: FERNANDA CARRETAS
Descritores: COMPRA-VENDA-INTERNET-SERRA DE ESQUADRIA
Data da sentença: 06/09/2016
Julgado de Paz de : SEIXAL
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
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RELATÓRIO:
A, identificado a fls. 1, intentou, em 11 de abril de 2016, contra B – IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA., melhor identificada, também, a fls. 1, a presente acção declarativa de condenação, pedindo que esta fosse condenada a entregar-lhe outro equipamento com as características publicadas no site da internet – máquina de serra de esquadria extensível para cortar madeira, com laser integrado e com pega de transporte, com bisel a cortar 10X7 cm no mínimo e para fazer ranhuras – de igual ou superior qualidade técnica.
Para tanto, alegou os factos constantes do seu requerimento inicial de fls. 1 a 5, que se dá por reproduzido.
Juntou 6 documentos (fls. 6 a 12 e 16 que, igualmente, se dão por reproduzidos.
A Demandada foi, pessoal e regularmente, citada para contestar, no prazo, querendo, tendo apresentado a douta contestação de fls. 40 a 44, que se dá por reproduzida, impugnando ao versão dos factos trazida aos autos pelo Demandante, dizendo que não sabe, nem tem obrigação de conhecer o factos articulados sob os artigos 1. a 4.º do R.I.; que sempre esteve disponível para devolver ao Demandante o preço da máquina; que há abuso de direito por parte do Demandante, visto que o que pretende representa uma desvantagem muito maior para o vendedor do que a vantagem que o Demandante obtém, não sendo, assim, admitida a reposição em conformidade através de uma solução manifestamente desproporcionada, não podendo o Demandante legitimamente exigir a substituição da máquina, se a devolução do preço pago se revela suficiente e ajustada à satisfação da sua pretensão. Termina pedindo que a contestação seja procedente, por provada e a Demandada absolvida do pedido, continuando todavia na disposição da devolução, na íntegra, do preço pago pelo Demandante, solução que se apresenta a mais equitativa e proporcionada para ambas as partes, sob pena da atuação do Demandante configurar abuso de direito.
Não juntou documentos.
Uma vez que a douta contestação apresentava uma proposta de resolução do litígio, foi o Demandante notificado para, no prazo que lhe foi concedido, vir aos autos dizer se aceitava a proposta formulada pela Demandada (fls. 48), tendo declarado que não a aceitava (fls. 55).
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Cabe a este tribunal decidir se o Demandante tem o direito de exigir que a Demandada lhe entregue a máquina que anunciou na internet, cujas características e preço lhe assegurou ou se o Demandante litiga em abuso de direito.
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Tendo o Demandante optado pelo recurso à Mediação para resolução do litígio, foi agendado o dia 15 de abril de 2016 para a realização da sessão de Pré-Mediação, a qual se realizou, seguida de sessão de Mediação, em que as partes não lograram alcançar o acordo, pelo que, tendo sido apresentada a douta contestação, se designou o dia 18 de maio de 2016 para a realização da Audiência de Julgamento e não antes, devido à ausência da signatária em exercício de funções, em acumulação, também no Julgado de Paz de Óbidos (Agrupamento) – fls. 48.
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Aberta a Audiência, e estando presentes o Demandante – Sr. A – e a Ilustre mandatária da Demandada – Sr. Dra. C - foram ambos ouvidos nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 57.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 54/2013, de 31 de julho (doravante designada por LJP), tendo-se explorado todas as possibilidades de acordo, nos termos do disposto no art.º 26.º, do mesmo diploma legal, o que não se revelou possível, pelo que se procedeu à realização da Audiência de Julgamento, com observância do formalismo legal, conforme da respetiva ata melhor se alcança.
Devido à necessidade de ponderação da prova produzida, a audiência foi suspensa, tendo-se designado, desde logo, o dia 31 de maio de 2016 para a sua continuação, com prolação de sentença, e não antes, às supracitadas razões e bem assim à ausência da signatária, em gozo de férias, entre o dia 23 e o dia 27 de maio de 2016.
Devido ao volume de serviço, acumulado após o regresso de férias da signatária, foi a referida data dada sem efeito e designada, em sua substituição, a presente data (fls. 63).
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Estando reunidos os pressupostos da estabilidade da instância, cumpre apreciar e decidir:
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO
A convicção probatória do tribunal, de acordo com a qual selecciona a matéria dada como provada ou não provada, ficou a dever-se às declarações prestadas em audiência de julgamento; à falta de impugnação especificada; aos documentos juntos aos autos pelo Demandante, com especial relevância para o anúncio retirado da internet e para a Ordem de reparação da máquina e ao depoimento da testemunha, apresentada pela Demandada – Sr. D – que, aos costumes, declarou ser funcionário da Demandada e ter sido quem atendeu o Demandante. A especial qualidade da testemunha não retirou credibilidade ao seu depoimento, o qual foi prestado com isenção, credibilidade e conhecimento direto dos factos sobre os quais recaiu.
O tribunal não responde às alegações que sejam meras conclusões ou questões de direito.
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Com interesse para a decisão, ficaram provados os seguintes factos:
1. Necessitando de uma máquina para cortar madeira, o Demandante procurou na Internet a máquina que pretendia adquirir; 2. As características que o Demandante pretendia eram as de uma máquina serra de esquadria extensível para cortar madeira, com laser e a cortar 10x7, com bisel e para fazer ranhuras;
3. No sítio da Internet da Demandada encontrou o anúncio de uma serra de esquadria GCM800 SJ Profissional, pelo preço de 303,20 € (Trezentos e três euros e vinte cêntimos) constando do sumário da máquina o seguinte teor “a serra de esquadria GCM800 SJ Profissional com TELESCÓPICA é uma excelente ferramenta Bosch com 1.400 W, 5.500; Capacidade de corte: 70x270 mm; Ø Disco:216 mm; Ø interior do Disco: 30 mm. Arranque suave e laser integrado” (Doc. fls. 16);
4. Da referida informação constava também a identificação e a morada da Demandada, pelo que o Demandante se dirigiu à Loja, no dia 19 de março de 2016 (Doc. n.º 1);
5. Na loja, confirmou com o funcionário da Demandada as características da máquina e, não havendo máquina em stock, foi a mesma encomendada;
6. No próprio dia 19 de março, o Demandante, embora não lhe tivesse sido pedido, pagou logo o valor da máquina (Doc. fls. 8);
7. Poucos dias depois, em data que não foi possível apurar, o Demandante foi contactado para ir levantar a máquina, o que fez;
8. Ao desembalar a máquina o Demandante verificou que esta não tinha laser integrado e que fazia um ruído anormal ao iniciar o seu funcionamento;
9. Contactou o serviço de assistência da loja e entregou a máquina na mesma, no dia 29 de março de 2016 (Doc. n.º 2);
10. Na mesma data, pela Demandada, foi emitida a Ordem de Reparação da máquina, em período de garantia, da qual consta “Verificar ruído inicial” e “Verificar temática do Laser” (Doc. n.º 2);
11. Os serviços da Demandada informaram o Demandante que a máquina adquirida não tinha laser integrado, não sendo possível integrar o laser naquele modelo de máquina;
12. Mais o informaram que tinha havido um engano na descrição das caraterísticas da máquina, propondo devolver-lhe a quantia paga;
13. O Demandante não aceitou esta proposta;
14. Como o Demandante não aceitou a proposta, a máquina ficou nas instalações da Demandada, após a reparação do ruído inicial que apresentava;
15. Em 4 de abril, o Demandante enviou à Demandada a carta de fls.10 e 11, na qual explanava a situação e concedia à Demandada o prazo de cinco dias para que lhe entregasse uma máquina com as características descritas no anúncio do sítio da internet;
16. Em resposta telefónica, a Demandada reiterou a sua proposta de devolver o preço pago;
17. O Demandante voltou a recusar;
18. A máquina com as características constantes do sítio da internet, tem um preço acima da que foi entregue ao Demandante, na ordem dos 180,00 € (Cento e oitenta euros);
19. O Demandante, propôs, então que a diferença de preço fosse repartida por ambos;
20. Tendo sido informado, telefonicamente, que a Demandada não aceitava a sua proposta, por representar um prejuízo para a Demandada;
21. Até à presente data, o Demandante está sem a máquina e desembolsado da quantia que pagou por ela;
22. A Demandada dedica-se à atividade social de “Importação, exportação e distribuição de materiais de construção e equipamentos de construção civil, aluguer e serviços de assistência técnica de equipamentos de construção civil” (Doc. fls. 18 a 25);
23. A Demandada sempre esteve disponível para devolver ao Demandante, na íntegra, o preço pago;
Não resultaram provados quaisquer outros factos, alegados pelas partes ou instrumentais, com interesse para a decisão.
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE DIREITO
Entre a Demandante e a Demandada foi celebrado um contrato de compra e venda de uma máquina a qual a Demandada anunciou com determinadas características que, veio a verificar-se, não possuía.
O Demandante, na convicção de que estava a adquirir a máquina anunciada pela Demandada, pagou o preço que, igualmente, estava anunciado; pagamento que a Demandada aceitou, tendo encomendado a máquina por não a ter em stock.
Neste caso, não ficou provada a relação de consumo, pelo que, na dúvida, as regras a aplicar são as gerais do contrato de compra e venda.
Efetivamente atento o disposto na al. a), do art.º 1.º-B, da Lei da defesa do Consumidor (LDC), que dispõe que “Considera-se consumidor aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.” (Lei n.º 24/96, de 31 de Junho, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril e pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de maio).
Ora o Demandante, apesar de a questão se ter colocado, foi parco em explicações quanto ao destino que pretendia dar à máquina – se profissional, se particular.
Com o pedido formulado, o Demandante move-se no âmbito da venda de coisa defeituosa (Art.º 913.º e seguintes do CC).
De facto, a coisa entregue pelo vendedor, na execução do contrato de compra e venda, deve estar isenta de vícios físicos, defeitos intrínsecos inerentes ao seu estado material que estejam em desconformidade com o contratualmente estabelecido, ou em desconformidade com o que, legitimamente, for esperado pelo comprador.
Face às profusas disposições legais que disciplinam a matéria, incluindo o Código Civil, tem-se como defeito “…o vício que (…) desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim …” (art.º 913.º do Cód. Civil) e assim, se o objeto da venda puder ser consubstanciado em tal norma, estamos seguramente perante a venda de um bem defeituoso.
Em caso de desconformidade do bem, o comprador tem o direito à sua reparação ou, se for necessário e este tiver natureza fungível, à sua substituição, sendo certo que tal obrigação (de substituição) não existe se o vendedor desconhecia, sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que o bem padece (art.º 914.º, do CC).
Ora, neste caso, não só a máquina entregue ao Demandante tinha um defeito (ruído ao iniciar o funcionamento), como também não correspondia às caraterísticas anunciadas pela Demandada e que eram as que o Demandante pretendia.
A Demandada, sem nunca se referir ao anúncio que publicou (na sua douta contestação) fundamenta a sua recusa em meras conclusões (não factos), maioritariamente que a substituição é impossível – pasme-se – porque o valor do bem está associado a características daquela máquina em concreto, entendendo que há abuso de direito por parte do Demandante, atendendo a que a solução que pretende “representa uma desvantagem muito maior para o vendedor do que a vantagem que o Demandante obtém (em comparação com as outras soluções), não sendo assim admitida a exigência de reposição da conformidade através de uma solução manifestamente desproporcionada.” (sic).
Afigura-se-lhe, ademais que, no caso, o Demandante não pode legitimamente exigir a substituição da máquina, se a devolução do preço pago se revela suficiente e ajustada à satisfação da sua pretensão.
Salvo o devido respeito, está a Demandada redondamente enganada porque as suas conclusões e pretensões não encontram apoio no quadro legal aplicável e nos factos provados.
Questão fulcral - que a Demandada parece menosprezar - é que não se trata de um qualquer defeito, reparável, circunstância em que, reparado o defeito, se mostraria satisfeita a pretensão do Demandante (comprador), podendo verificar-se, efetivamente, abuso de direito com a exigência de soluções mais gravosas para a Demandada.
Não. Estamos em presença de total desconformidade do bem entregue com o bem anunciado o que, a nosso ver, muda tudo.
De facto e fazendo apelo à definição de convite a contratar ínsita na al. f) do art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-lei n.º 205/2015, de 23 de setembro (Práticas Comerciais desleais) este é a “comunicação comercial que indica as características e o preço do produto de uma forma adequada aos meios utilizados para a comunicação comercial, permitindo assim que o consumidor efetue a aquisição.”.
Ora, conquanto não tenha ficado provada a relação de consumo, pensamos que a definição suprarreferida se pode aplicar a qualquer processo de compra e venda, pela sua abrangência e precisão.
Neste caso, a Demandada publicou anúncio no sítio da internet convidando quem o visse a contratar, ou seja, a adquirir a máquina com aquelas características e por aquele preço.
O Demandante formou a sua vontade negocial, numa primeira linha, com a leitura do anúncio que apresentava – veio a provar-se – um preço vantajoso.
Ainda que se admita que o funcionário da Demandada não confirmou as características da máquina, sempre a Demandada estaria vinculada a fornecer a máquina com as caraterísticas e pelo preço que anunciou.
Mas tal facto resulta até provado, porque se assim não fosse não fazia sentido que da Ordem de Reparação constasse a necessidade de verificação da temática do laser, como consta.
Ou seja, a Demandada, na pessoa dos seus funcionários, estava convicta de que a máquina tinha aquelas caraterísticas, tanto que pede à Bosch que verifique porque é que a máquina não tinha o laser integrado.
A questão da pega de transporte não se coloca não só porque não estava anunciada, mas também porque o Demandante já esclareceu a questão e sabe já que tal pega não faz parte das caraterísticas da máquina.
Convém aqui referir que, no que respeita à eficácia das declarações negociais dispõe o art.º 224.º, n.º 1, do CC que “A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chegue ao seu poder ou dele é conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta de forma adequada.” (Bold nosso).
Trata-se de declaração receptícia ou não recipienda, cuja validade e eficácia se basta com a manifestação de vontade do autor da declaração.
Daqui decorre que, no momento em que anuncia as caraterísticas da máquina e o seu preço, a Demandada está obrigada a fornecer a mesma – com as características e pelo preço anunciado.
Por conseguinte, podendo até admitir-se que o Demandante sabia que uma máquina com aquelas características tinha um preço superior, uma vez que, segundo alega, pesquisou em várias lojas e vários sítios da internet, não merece censura a sua escolha em adquirir a máquina de que necessitava pelo melhor preço do mercado, como era o caso do anúncio publicado pela Demandada.
Se se tratou de um engano no anúncio, facto que não resulta sequer alegado e, por consequência provado pela Demandada, o facto é que os enganos pagam-se e a Demandada, face à recusa do Demandante em ficar com uma máquina que não correspondia ao que pretendia ou em receber a devolução do preço pago, deveria ter assumido a única postura legal e, até, comercial de assumir o erro e suportar as consequências, entregando ao Demandante a máquina que anunciou.
Não o fez e não aceitou, sequer, suportar metade da diferença de preço, alegando que isso representaria um prejuízo para si e que a devolução do preço pago satisfaria a pretensão do Demandante.
É estranha a prática comercial da Demandada de anunciar um produto, com determinadas características; por um determinado preço; atrair clientes com tal anúncio (porque o preço é vantajoso) e, depois, se as coisas correrem mal, achar-se no direito de devolver apenas o preço pago pelo comprador.
Tal prática não encontra apoio legal e, por isso, sem maiores indagações, porque desnecessárias, face à prova produzida, não pode deixar de se reconhecer ao Demandante o direito de que lhe seja entregue a máquina que, em consequência do anúncio, efetivamente, adquiriu, não se verificando, neste caso, abuso de direito.
O que a Demandada terá de fazer – ao que tudo indica já fez – é usar de transparência nos anúncios que publica, fazendo coincidir as características do produto que pretende vender com o respetivo preço.
De contrário, continuará a ter problemas, podendo até vir a ser condenada, caso se prove a relação de consumo, por prática comercial desleal.
Finalmente importa dizer que o direito do Demandante se circunscreve à máquina que foi anunciada pela Demandada e, por isso, na decisão se descreverão as características anunciadas e que se mostram em linguagem diferente da que consta do pedido, situação que a nosso ver, não ofende o princípio do limite da condenação (art.º 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
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DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos invocados, julgando a ação totalmente procedente, porque provada, decido condenar a Demandada a entregar ao Demandante, pelo preço pago, a máquina que este adquiriu com as seguintes caraterísticas – serra Bosch de esquadria GCM800 SJ Profissional com TELESCÓPICA, com 1.400 W, 5.500; Capacidade de corte: 70x270 mm; Ø Disco:216 mm; Ø interior do Disco: 30 mm. Arranque suave e laser integrado.
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Custas a suportar pela Demandada (art.º 8.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro).
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Registe.
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Seixal, 9 de junho de 2016
(Juíza de Paz que redigiu e reviu em computador – Art.º 131.º/5 do C.P.C.)

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(Fernanda Carretas)