Sentença de Julgado de Paz
Processo: 443/2018-VFR
Relator: DANIELA SANTOS COSTA
Descritores: PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA DA REDE PÚBLICA. PAGAMENTO DE VALORES INDEVIDOS.
Data da sentença: 01/18/2019
Julgado de Paz de : SANTA MARIA DA FEIRA
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

Proc. n.º 443/2018-JPSMF

Demandante: A;
Demandada: B, pessoa coletiva.

- OBJETO DO LITÍGIO
A Demandante veio propor contra a Demandada a presente ação declarativa, enquadrada na al. a) do n.º 1 do Art. 9º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, alterada pela Lei n.º 54/2013, de 31 de Julho, pedindo que a Demandada seja condenada a:
- instalar um medidor de caudal com as custas da sua responsabilidade a fim de medir o afluente residual drenado da habitação da Demandante para a rede pública de saneamento e, consequentemente, a cobrar as taxas/tarifas relativas a saneamento, em função de leitura real e não por estimativa ou indexação;
- anular todas as faturas emitidas onde é cobrada a tarifa variável de saneamento;
- remover o contador de água da habitação da Demandante;
- a suportar os encargos da presente ação.

Regularmente citada, a Demandada apresentou contestação, tendo impugnado os factos alegados no RI, conforme plasmado a fls. 31 a 35.

O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do objeto, do território e do valor.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não se verificam quaisquer exceções ou nulidades, nem quaisquer questões prévias, que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância do legal formalismo consoante resulta da Ata.

Valor da ação: € 2.500,01

II - FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
FACTOS PROVADOS:
A. A Demandante é cliente da Demandada;
B. Embora não consuma água da rede pública, a sua habitação dispõe de um poço privado de captação de água,
C. Utilizando o sistema público de drenagem de água residuais;
D. Em 09/03/2018, foi informada pela Demandada que, face à ausência de consumo de água da rede pública, a tarifa volumétrica de saneamento, passaria a ser faturada com base no consumo médio de utilizadores com características similares, no volume de 8 m3 de caudal;
E. Não concordando com tal decisão, a Demandante remeteu-lhe carta datada de 19/03/2018, expondo os seus motivos e solicitando a instalação de um caudalímetro, a fim de ser medido o afluente residual drenado da sua habitação, com as despesas suportadas pela Demandada;
F. Que mereceu resposta por parte de Demandada, mantendo a posição anteriormente assumida;
G. A Demandante rececionou uma fatura da Demandada, datada de 11.06.2018, faturando 8m3 de saneamento estimado;
H. A Demandante reclamou, em 19/06/2018, através de exposição no livro de reclamações da Demandada;
I. Por carta datada de 28/06/2018, a Demandada manteve a sua decisão;
J. No mês de julho, emitiu nova fatura, datada de 10.07.2018, faturando 16m3 reais de saneamento;
K. A ERSAR (Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos) respondeu, no dia 17.07.2018, à reclamação da Demandante;
L. A Demandada não consegue medir o consumo real de saneamento de águas residuais por parte da Demandante por causa da falta de consumo de água pública por parte desta;
M. A Demandante nunca realizou as obras prediais necessárias à separação das águas próprias e as da rede pública.

FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provaram quaisquer outros factos alegados pelas partes, com interesse para a decisão da causa.

Os factos provados resultaram do relevo probatório conferido aos documentos constantes dos autos, a fls. 3 a 25 e 56, conjugado com a audição das testemunhas indicadas pela Demandada, C e D, suas colaboradoras, cujos depoimentos foram relevantes para a descoberta da verdade na medida em que explicaram os termos do contrato ora em análise e das razões subjacentes para a necessidade de separação total entre o sistema predial de distribuição de água pública e o poço privado de captação de água da Demandante.
Quanto aos factos não provados, eles resultaram da ausência de prova ou de prova convincente sobre os mesmos.

III - O DIREITO
Os presentes autos fundam-se na alegada cobrança indevida de valores por parte da Demandada, quanto ao serviço de distribuição de água da rede pública e de saneamento, que a mesma presta à Demandante, com fundamento de que a Demandada não devia estimar o valor gasto a título de saneamento, mas sim recorrer a um instrumento de medição (medidor de caudal ou caudalímetro), assumindo os custos da sua respetiva instalação.
Provou-se que foi celebrado um contrato de utilização, entre a Demandante e a Demandada, para distribuição de água pública e drenagem de águas residuais. Sucede, porém, que a Demandada não consome água da rede pública na medida em que detém um poço privado de onde capta a água que usa para consumo.
Segundo o n.º 1 do Art. 59º do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, alterado pela Lei n.º 12/2014, de 06/03, qualquer pessoa cujo local de consumo se insira na área de influência da entidade gestora tem direito à prestação do serviço, sempre que o mesmo esteja disponível.
Dita o n.º 2 que se considera disponível tal serviço desde que o sistema infra-estrutural da entidade gestora do serviço esteja localizado a uma distância igual ou inferior a 20 metros do limite da propriedade.
O n.º 1 do Art. 61º do mesmo diploma reforça que os utilizadores têm o direito a ser informados de forma clara e conveniente pela entidade gestora das condições em que o serviço é prestado, em especial no que respeita aos tarifários aplicáveis.
Tais regras de prestação do serviço aos utilizadores constam do regulamento de serviço, que, no caso do concelho de Santa Maria da Feira, é o Regulamento n.º 340/2016, publicado no Diário da República, 2.ª série — N.º 62 — 30 de março de 2016.
Antes, porém, de aceder à leitura e interpretação de certas normas desse Regulamento, é crucial atender ao que a lei estatui quanto ao consumo de água privada.
Desde logo, o Art. 82º do Decreto regulamentar n.º 23/95, de 23 de agosto, estabelece que os sistemas prediais alimentados pela rede pública devem ser independentes de qualquer sistema de distribuição de água com outra origem, nomeadamente poços ou furos privados.
Por seu turno, o n.º 1 do Art. 69º do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, rege que todos os edifícios, existentes ou a construir, com acesso ao serviço de abastecimento público de água ou de saneamento de águas residuais devem dispor de sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais devidamente licenciados, de acordo com as normas de concepção e dimensionamento em vigor, e estar ligados aos respectivos sistemas públicos, a menos que se tratem de unidades industriais, o que não é o caso.
Mais define no seu n.º 4 como sendo da responsabilidade do proprietário do edifício a instalação dos sistemas prediais e respetiva conservação em boas condições de funcionamento e salubridade.
A entidade gestora, neste caso a Demandada, tem o direito de efetuar ações de inspeção dos sistemas prediais em caso de reclamações de utilizadores, perigos de contaminação ou poluição ou suspeita de fraude, nos termos do Art. 70º do mesmo diploma.
O DL n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, alterado pelo DL n.º 97/2018, de 27/11, impõe no n.º 3 do Art. 42º que um sistema de abastecimento particular produz água para consumo humano sob responsabilidade de uma entidade particular, só podendo funcionar na condição de impossibilidade de acesso ao abastecimento público, ficando sujeito aos requisitos legais para este tipo de utilização.
Ou seja, só é admissível o consumo humano de água privada se não houver possibilidade de acesso à rede de abastecimento público, definindo-se como disponível tal acesso desde que o sistema infra-estrutural da entidade gestora do serviço esteja localizado a uma distância igual ou inferior a 20 metros do limite da propriedade, segundo o n.º 2 do Art. 59º do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, alterado pela Lei n.º 12/2014, de 06/03.
Define-se como sendo água para consumo humano toda a água no seu estado original, ou após tratamento, destinada a ser bebida, a cozinhar, à preparação de alimentos ou a outros fins domésticos, independentemente da sua origem e de ser fornecida a partir de uma rede de distribuição, de um camião ou navio-cisterna, em garrafas ou outros recipientes, com ou sem fins comerciais, segundo a al. a) do n.º 2 do Art. 2º do Decreto-Lei n.º 243/2001, de 5 de Setembro.
Face ao exposto, em que medida pode a água não potável ser utilizada? O Art. 86º do Decreto regulamentar n.º 23/95, de 23 de agosto, responde a esta questão, definindo quais as situações concretas em que a entidade gestora do serviço de distribuição pode autorizar, a saber: lavagem de pavimentos, rega, combate a incêndios e fins industriais não alimentares.
Disto resulta que a Demandante, ora utilizadora, está impedida por lei de utilizar a água proveniente do seu poço para consumo humano, nele se inserindo não só a água destinada a beber, mas também a que é empregue para cozinhar, preparar alimentos, lavar e outros fins domésticos. A razão que está na base desta proibição legal reporta-se à necessidade de garantir a qualidade da água consumida, o tratamento adequado dos efluentes e a gestão racional e sustentada dos recursos hídricos.
Nessa medida, impede-se que ocorram contaminações de água privada na rede pública, o que a suceder poria em xeque a qualidade da água, que deve ser salubre e limpa, e a própria saúde humana.
Ao demais, a Demandada, na qualidade de entidade gestora, é obrigada a assegurar que a água destinada ao consumo humano satisfaz as exigências de qualidade prevista no Decreto-Lei n.º 243/2001, de 5 de Setembro, não podendo, em caso algum, apresentar sinais de deterioração da sua qualidade – Art. 5º, n.º 2.
Acresce que a Demandada fica impedida de medir o consumo real de saneamento de águas residuais por parte da Demandante, não podendo apurar qual o volume de águas residuais que seguiram para descarga, visto que não há qualquer consumo de água pública. Para ultrapassar tal dificuldade de medição, a Demandada propôs à Demandante, nos termos da missiva constante nos autos, a fls. 3 a 5, que esta levasse a cabo obras prediais tendentes à total separação entre o sistema predial de distribuição de água pública e o poço da Demandante, sob pena de ser aplicada a tarifa volumétrica de saneamento indexada ao consumo médio dos utilizadores, com características similares, do Município de Santa Maria da Feira, o que a Demandante se negou a fazer e reclamando dos valores que foram apurados através da tarifa supra indicada.
Por tais motivos, entendemos que a proposta que a Demandada apresentou junto da Demandante é legítima, razoável e cumpridora das exigências legais na medida em que, existindo rede de abastecimento de água pública, é esta que deverá prevalecer, e não outra, para consumo humano.
Logo, teria a Demandante de efetuar as obras tendentes e necessárias para separar os dois sistemas prediais de distribuição de água, ou seja, o seu, que provém do poço, e o da Demandada. Ao não fazê-lo, o prejuízo que deriva para o ecossistema e para a saúde humana é inevitável porquanto a Demandada pode não cumprir os níveis de qualidade legalmente exigidos para a água que fornece ao município em causa e aos consumidores em particular.
Do regulamento de serviço do concelho de Santa Maria da Feira resulta claramente o que foi estatuído nos diplomas legais supra mencionados, dispondo, em concreto, no seu n.º 13 do Art. 6º que “a água proveniente de tais furos, poços ou minas não pode ser utilizada para consumo humano direto ou para a preparação de alimentos. Em qualquer caso, deverá ser sempre garantida a não intercomunicabilidade dos referidos furos, poços ou minas com o Sistema de Abastecimento de Água”, sob pena da aplicação de uma contra-ordenação.
Pelo vindo de expor, dúvidas não restam de que a Demandante encontra-se numa situação não permitida por lei, que constitui contra-ordenação, nos termos do Art. 76º do
regulamento de serviço do concelho de Santa Maria da Feira já enunciado, motivo pelo qual não tem qualquer fundamento os pedidos por si formulados, devendo os mesmos decair na tua total extensão.

IV – DISPOSITIVO
Face a quanto antecede, julgo totalmente improcedente a presente ação e, por consequência, absolvo a Demandada do pedido.

Custas pela parte vencida – a ora Demandante, devendo proceder ao pagamento da 2ª parcela (€35,00), no prazo de 3 dias úteis, sob pena de ser aplicada uma sobretaxa de €10,00 por cada dia útil de atraso no seu pagamento, em conformidade com os Artigos 8º e 10º da Portaria n.º 1456/2001 de 28 de Dezembro, alterada pela Portaria nº 209/2005 de 24 de Fevereiro.
Quanto à Demandada, proceda-se ao reembolso de €35,00, em conformidade com o Artigo 9º da Portaria atrás mencionada.
A presente sentença foi proferida e notificada nos termos do n.º 2 do Art. 60º da LJP.
Santa Maria da Feira, 18 de janeiro de 2019
A Juíza de Paz,

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Daniela Santos Costa