Centro de Documentação da PJ
Analítico de Periódico

36981
SERRA, Rute de Carvalho
Das primitivas reações de defesa ao Código Penal de 1886 : viagem pelas conceções e vicissitude da pena de morte em Portugal / Rute de Carvalho Serra
Investigação Criminal, Ciências Criminais e Forenses. IC3F, Lisboa, Nº 4 (Abril 2019), p. 10-23
(*) CD 314. Resumo inserto na publicação.


JUSTIÇA PENAL, PENA DE MORTE, HISTÓRIA DO DIREITO, PORTUGAL

Desde tempos imemoriais, que o homem organizado busca o exercício perfeito, do seu direito de punir as reações exteriores que ameacem a sua condição natural de existência. A época da vendetta privada, representativa de uma noção ainda distante de Estado, tal como o conhecemos, fundamentou-se num dúplice propósito: a vingança de sangue e a recompensa do dano. O surgimento das noções de delito e pena, características de sociedades estruturadas, onde os valores morais encontravam princípio de forma, basearam-se num misto de estertor religioso, de expurgação e penitência. Em Portugal, as expressivas influências da organização jurídica romana, permitiram-nos a aplicação da justiça penal através de métodos que, à vista dos parâmetros mentais, sociais e individuais quotidianos, revelam-se brutais, inumanos, deprimentes. A utilização de instrumentos de tortura, de cuja designação felizmente nos esquecemos, mas que aqui relembramos, o uso de tormentos, os meios de obtenção das confissões dos réus, permitiam a vingança pública e também divina. Será com o advento do século das luzes, que o contexto primitivo de justiça contido nas Ordenações do Reino viria a ser questionado. Conviviam lado a lado, nem sempre com perfeito entendimento, a reclamação de punições humanas e a de destino justo aos condenados. As várias tentativas de codificação sofreram intermitências, desde logo porque permeáveis à influência política, mas também porque não beliscados deveriam ser os “olhos públicos”, àquele que a sociedade reivindicava como castigo exemplar. Os ecos que o progresso civilizacional exigiam, permitiram a Portugal, porém, figurar entre os primeiros países do mundo a abolir a pena capital, estabelecendo, por fim, limites à pena retributiva. Para bem compreender a evolução do direito de punir – ius puniendi, importa migrar aos primórdios, ao tempo de esboço de ordem social, terreno que se manifestou arável e, portanto, propenso ao aparecimento posterior, do direito penal. Desde os tempos da Antiguidade clássica, que o homem, numa elementar ou primitiva reação contra uma impressão exterior, que lhe perturbasse as condições naturais da existência, individual ou social, reage pela repressão do seu agressor, procurando prevenir a repetição do ataque. Era este um tempo de vingança – de vendetta privada. Esta forma de justiça encontra-se já representada no clássico “Ilíada”, de Homero, livro nono, verso 628 e seguintes. Distantes ainda da noção mais tardia de “Estado”, certo era que, na aglomeração dos indivíduos existia, porém, um poder, que mesclava aquela, com os laivos primordiais do que se entende hoje por sociedade e permitia a subsistência da sua coesão: esse poder era o costume. Violar o costume consistia, portanto, num ato imoral, num malefício. A reação natural ou primária de então, encontrava razão na vingança privada. Afinal, o sentimento jurídico mais não é do que um sentimento de dor: quando se ofendem as condições naturais da existência, causando dor, diminuindo a vitalidade do outro, propicia-se reação idêntica, numa cadeia que pode vir a assumir contornos infinitos. Aplicava-se a faida, ou vingança de sangue e o wehrgeld, isto é, a recompensa do dano, através de uma soma em dinheiro. Mas como bem defende Von Ihering, o óbice à perfeição deste sistema punitivo, recaía no excesso e na ausência de limites: “A vingança, não conhece outra medida senão o grau, puramente acidental e arbitrário, da sobrexcitação do indivíduo lesado. Em lugar de tirar força à injustiça, tem como único efeito duplicá-la, acrescentando à injustiça existente, uma nova injustiça” (Matta, 1911:18). A primeira limitação à vendetta privada, surge com a Lei de Talião, a que se refere o Código babilónico de Hammurabi, datado de 1772 AC1, pela qual, o mal causado a título de represália, nunca poderia exceder a gravidade da ofensa. O desenvolvimento do elemento económico, na estrutura da sociedade, despoletou a intervenção dos fredus, os senhores feudais, reduzindo o elemento étnico como impulso da vingança. Mas a sua desorganização gerou desigualdades económicas e também sociais. As classes dominantes controlavam o sistema da composição, oprimindo
a miséria, tornando-se a parte lesada do delito, surgindo assim a multa e a pena pública. Da ofensa e da reparação privadas, caminhou-se para o apuramento das noções de delito e pena. Realçamos, à vol d’oiseau, como estes conceitos evoluíram, em Portugal.