Acórdãos TC
Acórdão do Tribunal Constitucional
Nº Convencional: ACTC7242
Acordão: 97-001-P
Processo: 96-845
Relator: FERNANDA PALMA
Descritores: PROCESSO CONSTITUCIONAL.
FISCALIZAÇÃO PREVENTIVA DA CONSTITUCIONALIDADE.
DECRETO. UNIVERSIDADE. ACESSO À UNIVERSIDADE.
ENSINO. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES.
PRINCÍPIO DA IGUALDADE. PRINCÍPIO DA CONFIANÇA.
FUNÇÃO ADMINISTRATIVA. ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO.
COMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA. ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA.
GOVERNO. LEI MEDIDA. RETROACTIVIDADE DA LEI.
SEGURANÇA JURÍDICA. IGUALDADE DE ACESSO.
DIREITO AO ENSINO.
INTERDEPENDÊNCIA DOS ÓRGÃOS DE SOBERANIA.
INCONSTITUCIONALIDADE CONSEQUENTE.
Nº do Documento: TPV1997010897001P
Data do Acordão: 01/08/1997
Espécie: PREVENTIVA B
Requerente: PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Requerido: ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
Nº do Diário da República: 54
Série do Diário da República: IA
Data do Diário da República: 03/05/1997
Página do Diário da República: 966
Nº do Boletim do M.J.: 463
Página do Boletim do M.J.: 55
Volume dos Acordãos do T.C.: 36
Votação: MAIORIA COM 9 VOT VENC
Privacidade: 1
Voto Vencido: TAVARES DA COSTA. MESSIAS BENTO. ALVES CORREIA.
ASSUNÇÃO ESTEVES. VÍTOR NUNES DE ALMEIDA.
NUNES DE ALMEIDA. GUILHERME DA FONSECA.
BRAVO SERRA. CARDOSO DA COSTA.
Constituição: 1989 ART2 ART13 ART76 ART114 ART185 ART202.
Normas Apreciadas: D 58/VII DE 1996/10/31 DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA.
Normas Declaradas Inconst.: D 58/VII DE 1996/10/31 DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA.
Legislação Nacional: DL 28-B/96 DE 1996/04/04. PORT 254/96 DE 1996/07/13.
PORT 241/96 DE 1996/07/04. LTC82 ART51 N5.
Jurisprudência Constitucional:
Área Temática 1: PRINCÍPIOS GERAIS DOS DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS.
DIREITOS E DEVERES CULTURAIS.
PRINCÍPIOS GERAIS DA ORGANIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO.
Área Temática 2: DIR ENS.
Decisão: Não se pronuncia no sentido de que as normas do decreto nº 58/VII, aprovado em 31 de Outubro de 1996 pela Assembleia da República e subordinado ao título «Criação de vagas adicionais no acesso ao ensino superior», contrariam o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania; pronuncia-se pela inconstitucionalidade do artigo 1º do referido decreto e pela inconstitucionalidade consequencial das restantes normas do mesmo decreto.
Sumário: I - As questões de constitucionalidade suscitadas radicam no entendimento de que os artigos 1º e 2º do decreto em causa não são nem uma alteração legislativa do regime material de acesso ao ensino superior nem uma alteração das competências administrativas, antes consubstanciando uma alteração excepcional e retroactiva da regulamentação do concurso nacional de acesso ao ensino superior para o ano lectivo 1996-1997.
      As normas em crise implicariam, assim, a criação, pela Assembleia da República, de vagas determinadas, individualizáveis, visto que todas as alterações foram aprovadas já após a apresentação das candidaturas à 2ª fase.
      II - O Presidente da República indicou como primeiro fundamento do seu pedido a violação do princípio da separação e interdependência de poderes pelas normas do decreto.
      Invocou, ainda, como fundamento alternativo de inconstitucionalidade, a eventual violação do princípio da igualdade pelas mesmas normas, mesmo que se entendesse que elas não violariam o princípio da separação e interdependência de poderes, configurando-se antes como integrantes de uma lei-medida.
      O Presidente da República sustentou, por último, que pode ainda ter sido violado o princípio da protecção da confiança e das expectativas legítimas dos cidadãos (corolário do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição), na medida em que houve uma aplicação retroactiva de regras excepcionais, após os estudantes terem apresentado as suas candidaturas e definido as suas estratégias opcionais em função do regime vigente à altura em que o concurso se realizou.
      III - A análise da constitucionalidade das normas do decreto nº 58/VII exige a consideração de todos os argumentos que colocam dúvidas plausíveis, de modo a concluir se, em face das razões invocadas no pedido ou de outras que sejam configuráveis, tais normas contrariam quaisquer princípios ou normas constitucionais. Na verdade, o Tribunal Constitucional não está vinculado ao limitado confronto das normas em apreciação com os princípios e normas constitucionais invocados.
      IV - Uma pronúncia do Tribunal a favor da não inconstitucionalidade dependerá da remoção de todos os argumentos (expressamente deduzidos ou simplesmente configuráveis) que põem em dúvida a constitucionalidade das normas do decreto. Todavia, uma vez atingido um fundamento de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional não está obrigado a esgotar todos os outros argumentos que, porventura, possam ainda pôr em causa a constitucionalidade das normas sub judicio.
      V - Apesar de o princípio da separação de poderes ter tido formulações históricas nem sempre associadas à ideia de Estado de direito democrático, aquele princípio veio a adquirir, em conexão com esta ideia, a natureza de um instrumento garantístico da esfera jurídico subjectiva e, em última análise, de controlo democrático do poder.
      Por isso, a reserva geral de administração surge como inadequada à função actual do princípio, na medida em que diminuiria possibilidades de efectivação do controlo democrático do Executivo, limitando as áreas de intervenção legislativa do Parlamento e excluindo-o da directa decisão política.
      VI - Por outro lado, não decorre seguramente do artigo 114º, nº 1, da Constituição, em conjugação com o próprio artigo 2º, que consagra o princípio do Estado de direito democrático, uma reserva geral de administração. A separação e interdependência dos órgãos de soberania aí prevista exprime um esquema relacional de competências, funções, tarefas e responsabilidades dos órgãos do Estado, destinado a assegurar, simultaneamente, a referida medida jurídica do poder e um princípio de responsabilidade dos órgãos de soberania.
      VII - Finalmente, e de modo decisivo, mesmo sendo constitucionalmente atribuído ao governo o núcleo essencial da função administrativa, enquanto órgão superior da Administração Pública, e competência correspondente ao núcleo essencial da função administrativa (artigos 185º e 202º), isso não significa que matéria susceptível de ser objecto de actividade administrativa, como a regulamentação de leis, não possa, igualmente, ser objecto de lei da Assembleia da República.
      VIII - Independentemente de qualquer tomada de posição definitiva na interpretação do texto constitucional quanto à natureza das reservas de administração, e mesmo que se admitisse uma reserva constitucional de regulamento (cuja rejeição se reafirma), o certo é que as normas do decreto nº 58/VII nem têm natureza materialmente regulamentar nem correspondem a uma substituição funcional do poder executivo na sua competência para organizar e orientar a Administração Pública, exercer tutela sobre a administração autónoma ou praticar os actos necessários à satisfação de necessidades colectivas.
      IX - O papel do Governo como órgão de condução da política e órgão superior da Administração Pública postula actuações legalmente fundamentadas e o exercício de uma discricionariedade dentro do espaço legalmente consentido - o que terá de depender dos necessários apoios parlamentares e não de qualquer reserva de executivo. Por outro lado, não será uma esporádica e excepcional limitação do espaço de manobra do Governo, sem qualquer deliberada e reiterada substituição funcional pela Assembleia da República, que poderá violar o artigo 185º da Constituição.
      X - As leis reguladoras de casos individuais não ferem, pelo seu âmbito de aplicação, as exigências de universalidade próprias da norma jurídica. As chamadas leis-medidas, tais como, por exemplo, certas leis de emergência, não contendem necessariamente, por razões de forma - falta de generalidade e abstracção -, com a separação de poderes. Nada impede que se venha a obter através da regulação do caso individual o próprio efeito de igualdade, a coerência valorativa ou uma dimensão generalizada.
      XI - Tais leis podem ser, à semelhança de todas as outras, violadoras da igualdade. Em todo o caso, os possíveis vícios destas leis não radicam no confronto com as características conceptuais da abstracção e da generalidade - ou seja, como os limites da competência legislativa -, desde que lhes presida uma intencionalidade generalizadora, apta a uma renovação dos mesmos critérios perante situações futuras semelhantes.
      XII - As normas em apreço contradizem o princípio da igualdade, consagrado, genericamente, no artigo 13º e, no que se refere à igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, no artigo 76º, nº 1, da Constituição.
      Esta conclusão radica no pressuposto de que aquelas normas criaram retroactivamente um quadro legal que, se fosse conhecido anteriormente, teria modificado a representação das possibilidades de acesso ao ensino superior pelos candidatos à primeira fase. Deste modo, a violação da igualdade é determinada por uma violação da segurança jurídica, que a modificação retroactiva das regras de avaliação dos resultados de um concurso público implica.
      XIII - A questão da violação do princípio da confiança é transposta para a dimensão da segurança jurídica derivada do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição), devendo entender-se, nesses termos, que as normas questionadas do decreto nº 58/VII violam o artigo 2º da Constituição.
      Assim, há-de concluir-se que os princípios da igualdade e da segurança jurídica, em conjugação, são abalados imediatamente pelo artigo 1º do decreto nº 58/VII da Assembleia da República, decorrendo da inconstitucionalidade desta norma a inconstitucionalidade consequencial de todas as restantes normas do mesmo decreto, que têm uma função concretizadora e instrumental relativamente à primeira.
Texto Integral: