Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7918/2006-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: VENDA DE COISA ALHEIA
PROCURAÇÃO
REGISTO
TERCEIRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/30/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Não basta ter interesse na anulação para legitimar a intervenção da parte que a invoca. Esse é o regime da nulidade. Exige-se que o vício seja arguido pela pessoa no interesse da qual a lei estabelece a anulabilidade.
II. Em caso de abuso de representação ou falta de poderes da falta de poderes de representação, para a outorga da escritura de compra e venda, a invalidade do negócio só pode ser invocada, dependendo das situações, pelo representado ou pelos compradores, mas nunca por qualquer outro terceiro, estranho ao negócio.
III. O conceito de terceiro constante do nº 4 do art. 5º do CRPredial, reporta-se ao sub-adquirente posterior à celebração do primeiro contrato afectado de nulidade por ilegitimidade substantiva.
IV. Não é aplicável ao caso de duplo contrato de compra e venda da mesma coisa, celebrado pelo mesmo vendedor a compradores diversos, o disposto no nº 2 do artigo 291º do Código Civil, certo que este normativo só é aplicável às situações em que o comprador da coisa invalidamente alienada, por seu turno, a alienar a outrem, a quem a lei concede a protecção.
(FG)
Decisão Texto Integral: 23
ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – RELATÓRIO
A S do Funchal, moveu a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra H, divorciada, S, A e mulher, H, pedindo que:
- se declare nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda, realizado no dia 8 de Março de 1999, entre H, por si e em representação de S, e, de outra parte, A, em que aqueles venderam e este comprou um prédio misto, localizado no concelho de Santa Cruz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz, pelo prédio ser alheio a quem vendeu, por falta de mandato da procuradora ou/e por ser legalmente impossível o objecto da venda;
- se declare, em consequência, nulo o pedido de registo efectuado a 9 de Março de 1999, por A à Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz, com o número de apresentação 03, em que pede o registo da aquisição titulada pela escritura de compra e venda realizada na véspera e acima referida;
- cancele todo e qualquer registo predial que tenha sido efectuado com base naquela escritura de 9 de Março de 1999;
- reconheça a propriedade da S sobre o prédio misto, no sítio do Livramento, freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, com a área de 13 655 metros quadrados (...)
- os Réus sejam condenados a não criar obstáculos ou impedimentos de qualquer género à propriedade e posse do prédio referido e adquirido pela Santa Casa.
Para tanto alegou que, em Março de 1999, a primeira Ré, por si e em representação do segundo Réu, vendeu ao terceiro Réu o prédio misto, em causa. Contudo alega a Autora, a referida primeira Ré não tinha poderes para tal, já que interveio naquela transacção munida de uma procuração outorgada pelo segundo Réu a seu favor cujos poderes tinham cessado com a dissolução do casamento que os unia e que lhe concedia poderes para vender prédios somente sitos no Funchal. Para além disso, alega ainda a Autora, que o referido prédio (do qual havia sido desanexado uma parte por expropriação), já havia sido objecto de um contrato de permuta celebrado entre ela e o segundo Réu, em Setembro de 1990, no qual a primeira Ré prestou o seu consentimento, enquanto mulher daquele Réu, tendo a Autora entrado na posse do prédio. Por fim, alegou que o referido prédio foi alvo de uma expropriação da qual resultou o suprimento de parte do seu objecto, sendo que na venda efectuada entre os Réus o prédio em causa já não correspondia à realidade existente e, por isso legalmente impossível.

Citados vieram os Réus, à excepção de S, contestar a acção.
Os Réus A e mulher, excepcionaram com o facto de terem a propriedade do prédio objecto da acção registada em seu nome, e impugnaram a matéria invocada pela Autora referente à posse do prédio, alegando ainda que a falta de poderes da segunda Ré na celebração da venda é-lhes ineficaz, sendo que actuaram na convicção de que aquela beneficiava dos poderes necessários para a efectivação de tal negócio.
Por sua vez, a Ré contestou a acção, por impugnação, alegando que: a procuração por si utilizada para proceder à venda do imóvel conferia-lhe poderes para efectuar a venda em causa, sem que tenha cessado os seus efeitos com o seu divórcio; a Autora não tomou a posse desse mesmo imóvel; os Réus adquirentes registaram a sua aquisição, desconhecendo qualquer invalidade anterior à sua intervenção; o referido imóvel não ficou descaracterizado com a expropriação de que foi alvo.
A Autora replicou, pugnando pela improcedência dos fundamentos invocados nas contestações apresentadas.

Posteriormente procedeu-se a prolação do despacho saneador, com a selecção da matéria de facto, com a fixação dos factos assentes e elaboração da base instrutória.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, tendo-se fixado a matéria de facto controvertida, por despacho que consta de fls. 382 e 383 dos autos, sobre o qual não houve qualquer reclamação.
Veio, então, a ser proferida sentença que reconheceu aos Réus António Lopes e mulher, a propriedade do prédio denominado "Vila Surpresa" em detrimento da Autora, e, consequentemente, julgou a acção improcedente, ficando prejudicados todos os restantes pedidos formulados pela Autora.

Inconformada, veio a A. recorrer da sentença, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:
1. O Tribunal julgou mal a matéria de facto, no que respeita às alíneas S) e T) da matéria considerada provada – correspondente aos quesitos 5° e 6° da base instrutória.
2. Face ao depoimento das testemunhas, o Tribunal apenas poderia ter considerado provado que "a pessoa que actuou como representante de S não estava convicta de que a procuração apresentada tinha poderes necessários e suficientes para a venda referida em A) dos factos assentes", sendo isso que resulta da fundamentação apresentada.
3. Relativamente ao quesito 6°, o mesmo foi considerado provado, sem que fosse apresentada qualquer fundamentação para tal facto, e face à prova produzida, a resposta deveria ter sido negativa.
4. Devem ser aditados, à matéria de facto dada como provada, dois novos pontos, que resultem de documentos autênticos, a saber:
- O Réu S divorciou-se da Ré H, antes da outorga da escritura referida em A e depois da data da outorga da procuração referida em C);
- A procuração que foi exibida na escritura referida em A) refere expressamente o seguinte: "confere os poderes especiais para, em seu nome e representação, vender prometer vender, permutar ou de qualquer forma alienar, hipotecar ou onerar, os imóveis de que ele mandante é proprietário ou co-proprietário, designadamente em comunhão com ela mandatária, sitos no Funchal e designadamente” (...) “, intervindo em quaisquer actos, contratos e escrituras a que para tal efeito haja lugar, recebendo preços, dando quitação e intervindo e representado-o ainda em quaisquer repartições públicas, nomeadamente Repartições de Finanças, Conservatórias do Registo Predial, Câmara Municipal, requerendo a aprovação de projectos e suas alterações e o mais que para o exercício do mandato se torne necessário."
5. De acordo com as disposições conjugadas dos artigos 1678°, 1682°, 1682°-A e 1684°, as procurações entre cônjuges devem especificar os poderes conferidos, sob pena das mesmas traduzirem alterações ao regime de bens do casal.
6. A procuração em causa não referia a possibilidade de venda do imóvel "Vila Surpresa", e bem pelo contrário incluía na sua descrição um imóvel que somente foi adquirido pelo mandante em permuta pela entrega do referido prédio à Autora.
7. Esta procuração estava ainda caduca, porque, de acordo com o 1688° do CCivil, as relações pessoais e patrimoniais entre cônjuges cessam com o divórcio.
8. Acresce que o imóvel descrito no contrato de 8 de Março de 1999, não correspondia aquele que existia na realidade. Na verdade, à propriedade inscrita inicialmente sob os artigos 10 da Secção "II"" e 190 da matriz, foram retirados 1215 m2, por efeitos de Expropriação, pelo que a indicação desta propriedade, como sendo a totalidade dos artigos referidos e ainda da descrição predial n.° 803 da freguesia do Caniço, é também incorrecta, tornando o objecto do negócio escriturado a 8 de Março de 1999, legalmente impossível.
9. Tendo sido considerada provada a venda feita pelo Réu, com consentimento da Ré H, em 1990 à A., o direito de propriedade sobre o imóvel deixou de estar na esfera jurídica dos cedentes. Assim sendo, a venda operada em 1999, tratou-se de uma venda de bens alheios. Nos termos do artigo 892° do C.C. tal venda é nula. Uma vez que é um terceiro a invocar a nulidade deste negócio, não se aplica a restrição do n.° 2 deste preceito.
10. Pelo que, sendo declarada a nulidade desta venda, e tendo esta efeito retroactivo, deverá em consequência ser declarada sem efeito a escritura de compra e venda celebrada em 1999 e cancelados os registos prediais subsequentes.
11. No caso concreto, o facto dos Réus A e mulher possuírem registo, não implica que o mesmo não seja vulnerável, nos três anos subsequentes ao negócio, caso o verdadeiro proprietário arrogue o seu direito em acção e a registo no prédio, o que se verificou no caso concreto. Tudo isto segundo doutrina do artigo 291°, n.° 2 do C.C.
12. Deve ser alterada a decisão, declarando-se a nulidade da venda operada em 1999 e os registos subsequentes cancelados, e reconhecendo o Tribunal a posse da Autora, para efeitos de consolidação do direito de propriedade adquirido pela via contratual em 1990.

A Ré contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste Tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que, conhecendo da Apelação, importa apreciar:
- da pretendida alteração da matéria de facto
- da validade da procuração
- da validade da venda e eficácia em relação a terceiros

II – FACTOS PROVADOS
1. No dia 8 de Março de 1999, H, por si e em representação de S, declarou vender, através de escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Santa Cruz, um prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz (...), tendo A declarado comprar, mediante o preço de 100 000 000$00 (cem milhões de escudos) (al. A) dos factos assentes).
2. No acto da escritura foram entregues 30 000 000$00, prometendo fazer a entrega do restante quando o prédio ficar livre de quaisquer ónus ou encargos (al. B) dos factos assentes).
3. A vendedora H apresentou certidão de uma procuração feita a 21 de Março de 1995 em que S, no estado de casado, lhe confere poderes especais para vender, prometer vender, permutar, ou de qualquer forma alienar, hipotecar ou onerar os imóveis de que é proprietário ou co-proprietário (ai. C) dos factos assentes).
4. À data da escritura o prédio em causa encontrava-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz a favor de S, no estado de casado, em regime de comunhão de adquiridos, com H, pela inscrição G-um (al. D) dos factos assentes).
5. O prédio veio à propriedade de S por escritura de partilhas, celebrada com a sua anterior mulher, no dia 29 de julho de 1988 (al. E) dos factos assentes).
6. Em 17 de Setembro de 1990, na Secretaria Notarial do Funchal, S declarou entregar à Santa Casa um prédio misto em causa (al. F) dos factos assentes).
7. Nessa mesma escritura, S declarou receber, como contrapartida, dois prédios urbanos, sitos no Funchal e ainda a quantia de 28 000 000$00 e o valor das indemnizações resultantes das expropriações efectuadas no prédio até á data da escritura (al. H) dos factos assentes).
8. H prestou consentimento para o negócio (al. I) factos assentes).
9. O imóvel identificado em A) encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz a favor de A e M, pela ap. 03/090399 (al. J) dos factos assentes).
10. Encontram-se registadas penhoras (...) (al L), M), N), O) dos factos assentes).
(...)
14. A área do prédio referido em F) resultou da separação de uma parcela de terreno com área de 1 215 m 2 que foi expropriada pela declaração de utilidade pública tomada pela Resolução do Governo Regional Madeira de 25-1-1989 (resposta ao artigo 1° da base instrutória).
15. A SC, desde 17-9-1990, tomou posse do prédio supra identificado (resposta ao artigo 2° da base instrutória).
16. Nele pretende instalar um Centro de Dia para a terceira idade, creche e infantário (resposta ao artigo 3° da base instrutória).
17. A SC apresentou projecto nesse sentido na Câmara Municipal de Santa Cruz (resposta ao artigo 4° da base instrutória).
18. O Réu A estava convicto que a procuração apresentada tinha poderes necessários e suficientes para a venda referida em A) (resposta ao artigo 5° da base instrutória).
19. A vontade real do S foi a de conferir poderes especiais à H para praticar negócios jurídicos relativos a imóveis de que seja proprietário e co-proprietário sitos no Funchal ou não (resposta ao artigo 6° da base instrutória).
20. O prédio identificado em A) está desocupado de pessoas e bens e a construção lá existente ameaça ruína (resposta ao artigo 7° da base instrutória).

III – O DIREITO
1. Aditamento à matéria provada
Entende a Recorrente que deve ser aditado, à matéria de facto dada como provada, que o Réu S divorciou-se da Ré Helena Neves, antes da outorga da escritura referida em A e depois da data da outorga da procuração referida em C). Também deveria constar dos factos assentes o texto da procuração exibida na escritura.
Atendendo a que a matéria a que a Apelante se refere não foi posta em causa e/ou consta de documento, além de que se põe em causa a validade da procuração para o acto, mostra-se necessária a interpretação do seu texto, merecem, nesta parte, acolhimento as conclusões e em conformidade adita-se, aos factos provados, a seguinte matéria:
21. O Réu S divorciou-se da Ré H, antes da outorga da escritura referida em A e depois da data da outorga da procuração referida em C).
22. A procuração que foi exibida na escritura referida em A) refere expressamente o seguinte: "confere os poderes especiais para, em seu nome e representação, vender prometer vender, permutar ou de qualquer forma alienar, hipotecar ou onerar, os imóveis de que ele mandante é proprietário ou co-proprietário, designadamente em comunhão com ela mandatária, sitos no Funchal e designadamente, (...), intervindo em quaisquer actos, contratos e escrituras a que para tal efeito haja lugar, recebendo preços, dando quitação e intervindo e representado-o ainda em quaisquer repartições públicas, nomeadamente Repartições de Finanças, Conservatórias do Registo Predial, Câmara Municipal, requerendo a aprovação de projectos e suas alterações e o mais que para o exercício do mandato se torne necessário."

2. Impugnação da matéria de facto
Defende a Apelante que o tribunal julgou mal a matéria de facto, no que respeita aos quesitos 5° e 6° da base instrutória.
Assim, no que tange ao quesito 5º, face ao depoimento das testemunhas, alega a Recorrente que apenas poderia ter ficado provado que a pessoa que actuou como representante de Sérgio Rodrigues não estava convicta de que a procuração apresentada tinha poderes necessários e suficientes para a venda referida em A) dos factos assentes, sendo isso que resulta da fundamentação apresentada.
Relativamente ao quesito 6°, cuja matéria foi dada por provada, deveria ter sido considerado não provado, uma vez que não foi produzida qualquer prova, além de que, o julgador, apenas poderia utilizar a letra da procuração (documento autêntico) e interpretá-la. Para a Recorrente, o texto da procuração refere-se aos concretos imóveis do Funchal a vender e não à possibilidade de venda de prédios não localizados no Funchal.
Pese embora seja genericamente facultado às partes peticionarem a modificação da decisão da matéria de facto, mostra-se necessário que seja observado o ónus da discriminação fáctica e probatória – art. 690º-A do CPC e o ónus conclusivo – arts. 684º, 3 e 690º, 4 do CPC.
A audiência de julgamento foi objecto de gravação sendo assim possível o acesso às declarações que foram prestadas pelas testemunhas inquiridas.
Contudo, na análise a efectuar por este tribunal da prova produzida em audiência há que ter presente os limites, nesta sede, do poder de reapreciação da matéria de facto.
Efectivamente, o uso dos poderes conferidos à Relação, não importando a postergação dos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação das provas, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e a decisão que couber à matéria de facto, nomeadamente nos concretos pontos impugnados, conforme vem sendo entendimento reiterado da jurisprudência (1).

2.1. No que respeita ao art. 5º da base instrutória, importa ter em conta os termos em que se acha formulado.
Estava em causa saber se a pessoa que actuou como representante do R. S (a Ré H) e o Réu A (o comprador), estavam convictos que a procuração apresentada tinha poderes para a venda referida em A).
A Ré depoente afirmou estar convencida que a procuração lhe conferia, designadamente, poderes para a venda de imóveis, quer se situassem no Funchal ou não. Este seu convencimento resulta, além do mais, do facto de ser sempre a Ré que tratava de todos os assuntos do R. S, seja relativos a imóveis seja a outros bens ou negócios, como os que se relacionavam com a sociedade de viagens que possuíam e por isso era habitual que o Réu emitisse procurações a seu favor. Isto ocorreu quer durante o casamento, quer depois da separação e mesmo depois do divórcio.
Porém, a Ré H que anteriormente autorizara a alienação do imóvel em causa, não podia desconhecer que não tinha poderes para alienar (outra vez) o mesmo bem. Da fundamentação do despacho decisório da matéria de facto consta, aliás, que ela sabia que não podia alienar um bem que ela sabia já não ser propriedade do R. Reinolds.
Assim, por esta razão (e não já por força dos termos da procuração), não pode ter-se como assente que a Ré esta convencida que a procuração tinha poderes para a venda em causa.
Isto não significa que se possa dar como assente o contrário do que é questionado, como parece pretender a Recorrente. Donde, a única via é não considerar provada a matéria relativa ao convencimento da Ré H, tal como consta da resposta ao art. 5º da base instrutória.
Ainda no âmbito do mesmo art. 5º pretende a Apelante que, quanto ao R. A, se dê por não provado o seu convencimento de que a procuração apresentada tinha poderes para a venda referida.
Contudo, embora nenhuma testemunha tenha expressamente referido tal facto, pode retirar-se do depoimento da Ré H que esse convencimento por banda do Réu Lopes existia: ela mesma não tinha dúvidas de que a procuração lhe conferia poderes para vender todos os bens propriedade do R. S, sitos no Funchal ou não.
O uso dos poderes conferidos à Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e a decisão que couber à matéria de facto, o que, certamente, não ocorre no presente caso.
Afigura-se ser de manter tal como consta a matéria respeitante ao art. 5º da base instrutória.

2.2. No art. 6º da base instrutória pergunta-se se a vontade real do S foi a de conferir poderes especiais a H para praticar negócios jurídicos relativos a imóveis de que fosse proprietário, sitos no Funchal ou não.
Tal matéria foi considerada provada.
Já a A/Apelante entende que não foi feita prova desta matéria, além de que do texto da procuração resulta que esses poderes se limitam aos prédios aí descriminados e sitos no Funchal.
Vejamos.
Ainda que o texto da procuração possa inculcar algumas dúvidas quanto aos bens abrangidos (se só os sitos no Funchal ou não), a verdade é que o próprio notário não detectou qualquer discrepância, tanto assim que efectuou a escritura de compra e venda.
Seja como for, e apesar de a matéria em causa se irá mostrar irrelevante para a solução de direito, sempre se dirá que não pode afirmar-se que o texto da procuração seja incompatível com o convencimento, com a intenção, do Réu R em conferir poderes para a Ré Helena poder praticar negócios jurídicos relativos a imóveis sua propriedade onde quer que estes se situassem. Aliás, as testemunhas Maria e D, este último empregado dos RR na agência de viagens de ambos, asseguraram que era sempre a Ré que tratava de todos os assuntos, de todos os negócios, quer enquanto casados, mesmo depois de separados, quer após o divórcio. As testemunhas, tal como a depoente H, afirmaram, sem hesitações, que o R. R nunca tratava de nenhum assunto, quer os relacionados com a sociedade, quer outros negócios, sendo sempre a Ré H que comprava, vendia, contraía empréstimos, fazia a gestão da empresa. Em suma, era sempre a Ré que tratava de todos os assuntos, sendo normal o R. R, emitir procurações a favor da Ré, quando necessário.
Ademais, as eventuais dúvidas que o texto da procuração possa suscitar, quanto aos imóveis abrangidos, é questão distinta da vontade do outorgante da procuração.

Dispondo o art. 712º, n.º2, do CPC, que a Relação pode alterar a matéria de facto se estiverem reunidos os pressupostos constantes do art. 690º-A do CPC a que acima se aludiu, a decisão proferida confere-lhe a natureza de tribunal de instância, mas não lhe permite um novo e integral julgamento, pois que transporta consigo o risco de se atribuir equivalência formal a depoimentos substancialmente diferentes, de se desvalorizarem alguns deles, só na aparência imprecisos, ou de se dar excessiva relevância a outros, pretensamente seguros, mas sem qualquer credibilidade.
Como também ficou bem vincado no Preâmbulo do DL nº 39/95 de 15/2, um dos objectivos fundamentais da gravação das audiências e da prova foi o de possibilitar às partes a “reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante…”. Neste contexto, o regime não se destina a permitir a modificação de toda e qualquer decisão, mas fundamentalmente a detectar e corrigir os erros mais evidentes.
Portanto, mantém-se a resposta ao art. 6º da base instrutória.

2. Da procuração: legitimidade para arguir a anulação do contrato
Pretende a A./Apelante seja declarada a invalidade da compra e venda do imóvel identificado nos autos de que se arroga proprietária, pois que, supostamente, lhe fora anteriormente alienado.
Para o efeito invoca que a procuração utilizada na escritura, outorgada pelo R. Sérgio, é insuficiente para a concretização do negócio de compra e venda operado em 8 de Março de 1999, porque o prédio em causa não estava abrangido pela procuração e, de acordo com os arts. 1678°, 1682°, 1682°-A e 1684°, as procurações entre cônjuges devem especificar os poderes conferidos. Logo, a sua utilização para alienar este imóvel excedeu os poderes conferidos pelo mandante.
Por outro lado, a procuração estava caduca, por força do disposto no art. 1688° do Código Civil, já que as relações pessoais e patrimoniais entre cônjuges cessam com o divórcio.

2.1. Atentemos, então, nas consequências jurídicas da falta ou do abuso de poderes representativos na celebração de negócios jurídicos em geral.
A procuração é o negócio jurídico unilateral pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes de representatividade, de acordo com o disposto no art. 262°, do CCivil, em regra sob a forma exigida para o negócio jurídico que o procurador deva realizar (2).
Assume uma vertente documental, que se distingue do próprio negócio jurídico de representação, de natureza unilateral não recipienda, e é dela que dimana o poder do representante, funcionalmente dirigido à realização de fins e interesses do representado, num quadro de relação externa assente, por seu turno, em uma relação gestória interna, em regra de natureza contratual, não raro na espécie de contrato de mandato (3).
Se o procurador celebrar o negócio para o qual lhe foram dados poderes, o negócio jurídico produz os seus efeitos em relação ao representado, de acordo com o disposto no artigo 258°, do CCivil. Para que da representação resulte a inserção directa e imediata do acto na esfera jurídica do representado, é necessário que o representante aja em nome do representado e o acto caiba nos poderes conferidos ao primeiro pelo segundo.
Porém, o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado (artigo 268º, n.º 1, do Código Civil). Ali se estatui que o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem, é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado, sendo ainda de notar que não se trata de uma ineficácia meramente relativa por não só o pseudo representado mas também a própria parte que contrata com o representante sem poderes ter o direito de arguir a ineficácia. Aliás, esta parte pode, inclusivamente, revogar ou rejeitar o negócio com base nessa ineficácia enquanto a ratificação não tiver lugar (art. 268º, nº 4 do CCivil), o que mostra claramente a intenção do legislador no sentido de permitir que a ineficácia resultante da representação sem poderes seja invocada por qualquer interessado, até para evitar possíveis conluios.
A falta de poderes de representação a que este normativo se reporta é susceptível de derivar quer da inexistência de procuração válida quer do facto de o representante exceder os poderes dela constantes.
O negócio que uma pessoa celebre com outra sob abuso de poderes de representação também é ineficaz em relação ao representado se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso (artigo 269º do Código Civil). Neste caso, o representante actua nos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados pelo representado, mas conscientemente os utiliza em sentido diverso do respectivo fim ou das indicações do representado. Aqui, o negócio celebrado é ineficaz se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso e, no caso contrário, o negócio é válido e vincula o representado, independentemente de o procurador poder incorrer no dever de o indemnizar no quadro da responsabilidade civil.
De tudo quanto exposto fica, resulta, assim, que "não basta ter interesse na anulação para legitimar a intervenção da parte que a invoca. Esse é o regime da nulidade(4). Exige-se que o vício seja arguido pela pessoa no interesse da qual a lei estabelece a anulabilidade.
Em consequência, no caso em apreço, mesmo admitindo que existe falta de poderes de representação, para a outorga da escritura de compra e venda do imóvel em causa, esta invalidade só podia ser invocada, dependendo das situações, pelo representado ou pelos compradores, mas nunca por qualquer outro terceiro, estranho ao negócio, ainda que se admita que a Apelante tem interesse na invalidade do contrato, na medida em que este acto teve por objecto bem de sua propriedade. Porém, a sua defesa terá que passar pela análise das consequências da venda de bem alheio.
Em suma, ainda que se considerasse existir ineficácia do negócio por abuso de representação ou por falta de poderes, também essa ineficácia só poderia ser arguida pelo representado e pela parte que contrata com o representante sem poderes (arts. 268° e 269° C.Civil) (5).
Não tendo sido arguida a invalidade, por quem tem legitimidade para o fazer, estamos, no que respeita à relação entre representante/representado, perante, um negócio válido, produzindo, a nível da realidade jurídica, todos os seus efeitos.
Assim, porque o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado produz os seus efeitos jurídicos na esfera deste último (art. 258º) tudo se passa como se tivesse sido o representado Réu a alienar onerosamente, para os RR. compradores, o imóvel objecto da identificada escritura.
De pouco adianta, então, averiguar dos alegados vícios da procuração utilizada na referida escritura de compra e venda, assim ficando prejudicados os restantes argumentos utilizados pela Recorrente, em tudo o que se relacione com a falta ou abuso de representação.
Tanto basta para que, sem necessidade de mais considerações, tenha de se recusar razão à Recorrente, no que respeita aos efeitos que pretende retirar de uma eventual falta ou abuso de poderes de representação.

3. Venda de bem alheio
Em 1990, com a venda feita pelo Réu S, com consentimento da Ré H, em 1990 à A., o direito de propriedade sobre o imóvel deixou de estar na esfera jurídica dos vendedores, ora RR/Recorridos, pelo que tratou-se de uma venda de bens alheios, que nos termos art. 892° do C.C. é nula.
Sucede que, no caso, a A/Apelante, compradora do prédio, não registou a seu favor a titularidade do dito imóvel, sendo certo que, posteriormente, o mesmo vendedor, ainda que através de representante, alienou o dito prédio aos RR António e Helena Lopes, sendo que estes procederam ao registo da propriedade a seu favor.
Diz a Apelante que o facto de os Réus LL possuírem registo, não implica que o mesmo não seja vulnerável, nos três anos subsequentes ao negócio, se o verdadeiro proprietário invocar o seu direito em acção e a registe, o que se verificou no caso concreto. Tudo isto segundo doutrina do artigo 291°, n.° 2 do C.C.
Além disso, defende a Apelante, que atendendo a que o registo predial não atribui direitos, apenas os consolida, a presunção de titularidade foi ilidida, já que a A. entrou na posse do imóvel desde 1990, quer procedendo a trabalhos de construção civil, quer recolhendo frutos da terra, quer apresentando pedidos de licenciamento para obras a edificar ali.
Quid juris?
Nos termos do art. 892º do CCivil, é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la o vendedor de boa fé o comprador doloso.
Ou seja, o comprador de má fé pode opor a nulidade ao vendedor de má-fé, tal como o vendedor de má fé a pode opor ao comprador de má fé. Já em relação ao comprador de boa fé, isto é, aquele que ignorava ser alheia a coisa vendida, não pode o vendedor invocar o vício de nulidade, tal como o comprador doloso o não pode opor ao vendedor de boa fé.

3.1. Do conceito de terceiro – o art. 291º do CCivil
Nem sempre a declaração de nulidade de um negócio jurídico conduz à destruição dos seus efeitos.
Excepcionalmente, a declaração de nulidade do negócio jurídico respeitante a bens imóveis não prejudica os direitos adquiridos sobre eles a título oneroso por terceiro de boa fé - desconhecedor do vício sem culpa no momento da aquisição - no caso de o registo da aquisição ser anterior ao registo da acção. É o que resulta do disposto no art. 291º, nºs 1 e 3, do CCivil.
Esta excepção sofre, ainda, uma limitação resultante do disposto no nº 2 do ditado preceito legal, nos termos do qual, os direitos de terceiro não são reconhecidos se a acção for proposta e registada nos três anos posteriores à conclusão do negócio.
É precisamente esta limitação que a Apelante diz ocorrer no caso dos autos, já que a presente acção foi registada antes de decorridos 3 anos sobre a compra e venda celebrada com os RR Lopes.
Para a Apelante, a limitação à excepção do art. 291º, nº 1 do CCivil, prevista no seu nº 2, aplica-se a situações como a dos autos, em que ocorreu uma relação triangular, consubstanciada em dupla transmissão, pelo mesmo alienante, de um mesmo bem sujeito a registo, em que o primeiro transmissário não inscreve no registo a aquisição e depois a um segundo, que procede à respectiva inscrição predial. Em sua defesa, socorre-se da posição expendida no acórdão do STJ de 14 de Novembro de 1996 (6), que considerou ser aplicável a limitação do nº 2 do art. 291º do CCivil, ao caso de uma relação triangular, com o argumento de que o citado normativo está em vigor, não tendo sido revogado pelo art. 5º e 17º do CRPredial.
Mas, salvo o devido respeito, afigura-se não assistir razão à Apelante.
Vejamos porquê.
Refere o acórdão do STJ de 11 de Maio de 2006 (7), que o art. 5º, nº 4 do CRPredial reporta-se, designadamente, a casos em que uma pessoa, por contrato afectado de nulidade, vendeu a outra um prédio, tendo esta última vendido o mesmo imóvel invalidamente a outrem, visando proteger, por exemplo, o referido comprador do efeito da declaração da nulidade do primeiro contrato de compra e venda.
Este é também o nosso entendimento.
O terceiro a que este artigo se reporta é, pois, o sub-adquirente posterior à celebração do primeiro contrato afectado de nulidade por ilegitimidade substantiva, portanto no quadro de aquisição a non domino, que é protegido, na medida em que lhe não pode ser oposta a nulidade do primitivo contrato de compra e venda, se tiver adquirido o direito sobre imóveis a título oneroso, de boa fé, tiver inscrito no registo predial a sua aquisição e tenha decorrido um triénio sobre a data do primeiro contrato sem haver sido instaurada a acção de nulidade.
Nesta medida, tal como conclui o citado aresto, que aqui seguimos de perto, o conceito de terceiro a que se refere este artigo, pressupõe a sequência de nulidades e o conflito entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente, pelo que é diverso do conceito de terceiro para efeito de registo predial.

Como é sabido, a transferência de direitos reais sobre determinada coisa dá-se por efeito do contrato (arts. 408º, nº 1 e 879º, al. a) do CCivil). Também é certo que, conforme o art. 1º do CRPredial, o registo predial tem por fim dar publicidade aos direitos inerentes às coisas imóveis. Tem uma função declarativa e não constitutiva, conserva direitos mas não os cria, e não pode suprir a falta do direito nem sanar os vícios que envolvam os direitos transmitidos.
Porém, a aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo (art. 2º, nº 1, alínea a), do CRPredial), prevalecendo o direito primeiramente inscrito. Dessa inscrição emerge a tutela da fé pública por via das presunções ilidíveis, designadamente a de que o direito existe tal como o registo o revela e que pertence a quem estiver inscrito como seu titular (arts. 6º e 7º do CRPredial e 350º do CCivil).
Importa, ainda, ter presente, o disposto no art. 408º nº1 do CCivil, relativo à transferência dos direitos sobre coisas por mero efeito do contrato, que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois de registados (art. 5º, nº 1, do CRPredial).

3.2. O conceito de terceiro, para efeito de registo predial, foi objecto de controvérsia jurisprudencial, até que o legislador o consignou no nº 4 do art. 5º do CRPredial.
Assim, inicialmente, o plenário do Supremo Tribunal de Justiça expressou serem terceiros para efeito de registo predial todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, vissem esse direito arredado por facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente (8).
Posteriormente, o plenário do Supremo Tribunal de Justiça veio interpretar a lei no sentido de que terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa (9).
Finalmente, o DL nº 533/99, de 11 de Dezembro, estabeleceu que terceiros, para aquele efeito, são os adquirentes de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa de um mesmo transmitente comum de (art. 5º, nº 4, do Código do Registo Predial).
Trata-se, segundo o aresto a que vimos fazendo referência e de acordo com o art. 13º, nº 1 do CCivil, de um normativo de natureza interpretativa, que, por isso, rege para as situações anteriores ao início da vigência daquele diploma que devam ser apreciadas posteriormente.
Donde, o facto de o art. 5º não ter revogado o art. 291º, não conduz, por si só, à solução preconizada pela Apelante, qual seja a da aplicação do art. 291º do CCivil a situações, como a dos autos, em que ocorre uma relação triangular consubstanciada em dupla transmissão pelo mesmo alienante de um bem imóvel ou de um bem móvel sujeito a registo a um primeiro transmissário, que não inscreve no registo a aquisição, e depois a um segundo, que opera a respectiva inscrição registal.
Aqui estamos perante uma situação de conflito entre dois adquirentes, sendo válido o primeiro negócio de transmissão e não o segundo. Porém, o primeiro adquirente não pode opor ao segundo a sua aquisição, porque ela não constava no registo e o último não podia, dada a fé pública derivada do registo, conhecer que o alienante já não era o titular do direito em causa.
Como é bom de ver, este conceito de terceiro para efeito do registo, tal como acima se referiu, não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na relação triangular o conflito é entre dois adquirentes e, na situação prevista no art. 291º, esse conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente.
Na primeira situação é pressuposta a validade do primeiro negócio de transmissão e na segunda a sua invalidade, ali é protegida a confiança do adquirente nos dados constantes no registo, aqui a estabilidade dos negócios jurídicos em termos de excepção ao disposto no artigo 289º, nº 1, do Código Civil”(10).

3.3. E, agora, concretizando, no caso sub judice a Apelante adquiriu validamente o direito de propriedade sobre o prédio identificado, por virtude do contrato de compra e venda que celebrou com o R. (permuta) em 17 de Setembro de 1990.
Como a Recorrente passou a ser titular do direito de propriedade sobre o referido prédio por virtude da celebração do referido contrato de compra e venda, a posterior alienação do direito de propriedade sobre o mesmo prédio pelo R. R, representado pela R. H, a favor dos RR. Lopes, por contrato de compra e venda celebrado por escritura pública em 8 de Março de 1999, não pode deixar de ser qualificada como venda de bens alheios.
Portanto, o contrato de compra e venda celebrado entre estes Réus é nulo no confronto do R. vendedor e dos RR compradores e afectado de ineficácia em relação à Apelante (artigos 408º, nº 1, e 892º do Código Civil).
Porém, a referida nulidade, em relação a quem o celebrou e a concernente ineficácia face à Apelante, não pode implicar o deferimento da sua pretensão.
Como resulta de tudo quanto se explanou, na esteira do douto aresto a que vimos aludindo, não é aplicável ao caso em análise - duplo contrato de compra e venda da mesma coisa celebrado pelo mesmo vendedor a compradores diversos - o disposto no nº 2 do artigo 291º do Código Civil, “certo que este normativo só é aplicável às situações em que o comprador da coisa invalidamente alienada, por seu turno, a alienar a outrem, a quem a lei concede a protecção” (11).
Donde, o disposto no nº 2 do art. 291º do CCivil, não pode sustentar a pretensão formulada pela Recorrente, no confronto dos Recorridos António e Helena Lopes.
Uma vez que a A/Apelante não procedeu à inscrição, no registo predial, da sua aquisição do direito de propriedade sobre o prédio em causa, e os Recorridos, que adquiriram depois o direito de propriedade sobre o mesmo prédio, do mesmo alienante, procederam à respectiva inscrição registal, subsiste a favor destes a presunção derivada do registo, por virtude de a primeira não lhe poder opor a sua aquisição.
Assim, tal como o citado acórdão concluiu, também aqui, por virtude das regras do registo predial, o contrato de compra e venda celebrado entre a Recorrente e o R. S e Ré H, porque não foi levado ao registo predial, não produz efeitos em relação aos compradores, os Recorridos/ RR. LL.
Só assim não seria se a A. tivesse sido alegado e provado que os RR adquirentes estavam de má fé, isto é, tinham conhecimento que se tratava de venda de bem alheio.
Não pode, por isso, proceder a pretensão formulada pela Recorrente.

4. A Apelante suscita ainda outras questões laterais, com vista à procedência do recurso.
4.1. Contudo, no que respeita à alegação de que a segunda venda não chegou a ser concluída, porque o preço não foi pago integralmente no acto da escritura, não lhe assiste razão.
Efectivamente, a transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, sem prejuízo do regime relativo ao registo predial no que concerne a imóveis e a móveis sujeitos a registo (artigos 408º, nº 1 e 879º, alínea a), do Código Civil).
A questão pode eventualmente colocar-se a nível do cumprimento do contrato. Mas, ainda assim, apenas invocável entre os contraentes, isto é entre o R. vendedor e os RR compradores. A esta relação é estranha a Apelante.

4.2. Invoca, ainda a Apelante que o imóvel descrito no contrato de 8 de Março de 1999, não correspondia aquele que existia na realidade.
Na verdade, à propriedade inscrita inicialmente sob os artigos 10 da Secção "II" e 190 da matriz, foram retirados 1215 m2, por efeitos de Expropriação, pelo que a indicação desta propriedade, como sendo a totalidade dos artigos referidos e ainda da descrição predial n.° 803 da freguesia do Caniço, é também incorrecta, tornando o objecto do negócio escriturado a 8 de Março de 1999, legalmente impossível.
Vejamos.
No que tange às considerações feitas a propósito do regime de aquisições derivadas, bem como quanto à identidade do objecto adquirido pelo RR., não obstante a redução da sua área face à expropriação feita, vale aqui o explanado na sentença recorrida. Ademais o que ficou provado foi que a área do prédio referido em F) resultou da separação de uma parcela de terreno com a área de 1215 m2 que foi expropriada pela declaração de utilidade pública.
Na aquisição translativa, a extensão do direito adquirido, para além de depender da amplitude do facto aquisitivo, depende ainda da extensão do direito do transmitente, não podendo em regra ser maior que a deste direito. De harmonia com isto, o comprador só adquire bens que o vendedor lhe quis transmitir se eles pertenciam ao mesmo vendedor, e não pode adquirir sobre esses bens um direito mais amplo do que o do vendedor (12).
Em face de todo o exposto, deverá ser reconhecido aos Réus a propriedade do prédio denominado "Vila Surpresa" em detrimento da Autora, sendo que a eventual modificação da configuração do prédio em causa em consequência da expropriação de que o mesmo foi alvo, não obsta à aquisição por banda dos RR Lopes, já que, mantendo-se ainda parte desse mesmo prédio, o mesmo mantém a sua identidade, pelo que esse objecto é legalmente possível.
Ademais, a eventual divergência quanto à área do imóvel, entre o que consta da escritura e a efectiva área do imóvel, eventualmente menor, apenas seria invocável pelos compradores.

4.3. Também não pode a Apelante retirar qualquer efeito da posse sobre o imóvel desde 1990.
Na verdade, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (artigo 1287º do C. Civil).
A usucapião faculta, assim, ao possuidor a constituição do direito real correspondente à sua posse, desde que reunidos determinados pressupostos. Assentando a usucapião na posse, torna-se necessário que esta assuma certas características, que seja mantida dentro dos prazos que a lei fixa e, obviamente, que o direito a constituir seja usucapível.
Porém, no caso dos autos, o facto de a Apelante ter procedido a trabalhos de construção civil, ou outros, não chega para que da posse se possam retirar os pretendidos efeitos, já que não estão reunidos os pressupostos que permitem seja reconhecida a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio em causa uma vez que, além do mais, esta não foi mantida dentro dos prazos que a lei fixa.
Falecem, portanto, as conclusões da Recorrente.
Assim, ainda que com fundamento diverso do adoptado na sentença recorrida, improcede o recurso.

IV – DECISÃO
Termos em que se acorda em julgar improcedente a Apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Apelante.

Lisboa, 30 de Novembro de 2006.

(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)
________________________________________________
(1) Cfr., entre outros, o Ac. RP de 19.9.2000, CJ, ano XXV, 4º-186.
(2) Vide Ferrer Correia, A procuração na teoria da representação voluntária, em Estudos Jurídicos, II, pags. 19 e segs.
(3) Cfr. Ac. STJ de Lisboa, 23 de Setembro de 2004 (Salvador da Costa), www.dgsi.pt.
(4) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., 1987, pag. 264.
(5) Cfr. Ac. STJ de 14.10.2004 (Araújo de Barros), www.dgsi.pt.
(6) Ac. STJ de 14.11.1996 (almeida e Silva), CJSTJ, IV, 3º-104 e, no mesmo sentido, ainda o AC. STJ de 27/04/2005 (Azevedo Ramos), www.dgsi.pt.
(7) Ac. STJ de 11/5/2006 (Salvador da Costa), www.dgsi.pt
(8) Ac. nº 15/97, de 20 de Maio, Diário da República, I Série, de 4 de Julho de 1997.
(9) Ac. nº 3/99, de 18 de Maio, Diário da República, I Série, de 10 de Julho de 1999.
(10) Ac. STJ de 11/5/2006 (Salvador da Costa), www.dgsi.pt.
(11) Ac. STJ de 11/5/2006 (Salvador da Costa), www.dgsi.pt
(12) Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pags. 14 e segs.