Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1079/21.7T8BRR-E.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: CONTRATO PROMESSA
DIREITO REAL SOBRE EDIFÍCIO OU FRACÇÃO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
EXPURGAÇÃO DE HIPOTECA
REMOÇÃO DE ÓNUS E ENCARGOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I– Caso o promitente-comprador de direito real sobre edifício ou fracção autónoma dele pretenda expurgar a hipoteca que o onera, de acordo com o artigo 830º, nº 4 do Código Civil, terá de requerer, em juízo, que a decisão – que vier a fazer operar a execução específica – condene igualmente o faltoso na entrega ou “do montante do débito garantido” ou “do valor correspondente à fracção do edifício ou do direito objecto do contrato e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até pagamento integral”.

II– Não é admissível, numa acção de verificação ulterior de crédito, o pedido para se proceder à marcação de escritura de compra e venda prometida com a remoção dos ónus e encargos que recaiam sobre as fracções objecto do contrato-promessa, havendo registo de hipotecas anteriores à propositura dessa acção sobre as mesmas fracções.

III– A resolução do contrato-promessa apenas se pode fundar no incumprimento definitivo, resultante da não realização da prestação, dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, e da perda do interesse que o credor tinha na prestação, a ser apreciado objectivamente.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,



1.SO, UNIPESSOAL, LDA., veio, por apenso ao processo de insolvência nº 1079/21.7T8BRR,  propor a presente acção de verificação ulterior de créditos, nos termos do disposto no artigo 146º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), contra EV, LDA., a MASSA INSOLVENTE DE EV, LDA. e seus CREDORES, pedindo que se ordene ao senhor Administrador da Insolvência “para proceder à marcação da escritura de compra e venda prometida com a remoção dos ónus que recaiam sobre as frações” ou, em alternativa, que seja julgado verificado e reconhecido um crédito da A., no valor de € 36 000,00 (trinta e seis mil euros), a graduar como garantido, “por força da garantia real com privilégios creditórios especiais e direito de retenção que sobre tais frações recaem”.

Alegou, para tanto, em síntese, ter celebrado com a insolvente um contrato-promessa de compra e venda, com eficácia real, relativo a duas garagens da propriedade da ora insolvente, que esta última não cumpriu. Para o efeito, alegou ainda já ter pago à insolvente a quantia acordada (inicialmente, de €16.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento e, mais tarde, os remanescentes €2.000,00), mas não ter sido possível realizar a escritura pública de compra e venda porque “a insolvente nunca logrou levantar as hipotecas que recaíam sobre as referidas frações autónomas”.
Mais afirmou que, desde 2013, tem a posse das referidas garagens e que as vem utilizando e usufruindo publicamente como se fossem suas.

Regularmente citada, apenas a credora XYQ, SARL deduziu a respectiva contestação, pugnando pela improcedência da acção, quer por não resultar da documentação junta pela A. prova suficiente de ter esta realizado qualquer pagamento à insolvente, quer por não se verificar qualquer situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa, quer ainda por não ter a A., em caso de recusa de cumprimento pelo Administrador da Insolvência, direito ao dobro dos valores que alegadamente já pagou, por o disposto no artigo 442.º do Código Civil ser inaplicável ao caso dos autos – por força do regime especial previsto no CIRE e ainda por aquela não poder ser considerada “consumidor”.

Após realização de audiência prévia e frustrada a tentativa de conciliação, considerando o tribunal ser possível conhecer de imediato do mérito da causa, proferiu sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, negou provimento à pretendida marcação de escritura pública com remoção dos ónus e encargos registados, mais julgando não verificados os créditos reclamados pela Autora.

Inconformada com esta sentença, dela interpôs recurso a Autora, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, no próprio apenso e com efeito meramente devolutivo.

Termina as respectivas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
A)–A Douta sentença recorrida peca por não entender que existiu incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda celebrado entre a ora Recorrente e a insolvente.
B)–É entendimento pacifico na Doutrina e Jurisprudência que tal incumprimento tem lugar no caso de o comportamento ou ações do devedor indicarem sem dúvida a sua recusa em cumprir.
C)–O comportamento do Exmo. Sr. Administrador de insolvência nos presentes autos, nomeadamente a venda judicial a terceiros das frações objecto do contrato promessa de compra e venda celebrado, claramente impossibilitam o cumprimento do contrato pois o objecto do mesmo deixa de ser possível.
D)–É assim claro que existe por parte do devedor, representado pelo Exmo. Sr. Administrador de insolvência, uma recusa em cumprir o contrato.
E)–E que o Exmo. Sr. Administrador de insolvência, não o podendo fazer, na prática e para todos os efeitos recusa o cumprimento do contrato vendendo as frações em questão a terceiros
F)–Pelo que existe um incumprimento definitivo do contrato celebrado.
G)–Pelo que deveria ser ordenado pelo tribunal que o Exmo. Sr. Administrador de insolvência que cumprisse com a sua obrigação legal, provendo pela realização da escritura.
H)–Ou não sendo tal possível, face ao preço já pago pela ora recorrente, devia ter sido reconhecido o crédito desta sobre a insolvente,
I)–Crédito esse no valor de 36 mil e que deveria ser graduado como garantido em relação ás frações designadas pelas letras “V” e “AC” do prédio urbano sito da Rua projectada à Rua …, n.º 1 a 41 Alhos Vedros descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o número 2550 e inscrito na matriz sob o artigo …, por força da garantia real com privilégios creditórios especiais e direito de retenção que sobre tais frações recaem a favor da ora Recorrente.

Pela credora XYQ, SARL foram deduzidas contra-alegações, que conclui do seguinte modo:
I.–A Autora ora Recorrente não alegou em nenhum momento que o Senhor Administrador de Insolvência se recusou a cumprir o contrato-promessa, ou que este se inferiu do seu comportamento – facto essencial cujo ónus de alegação lhe incumbia, nos termos do artº 5º do CPC; pelo contrário, o que peticionou foi que o Senhor Administrador cumprisse o contrato promessa, com a remoção dos ónus que recaiam sobre as frações.
II.–Tal remoção – de ónus e encargos – não é legalmente possível, pois que o Recorrente não exerceu a faculdade prevista no 830º nº 4 do CC.
III.–Não foi demonstrada sequer a efectiva existência de crédito – a documentação junta é insuficiente para prova do pagamento.
IV.–Mesmo que demonstrada a existência de crédito –  no que não se concede – sempre o valor reconhecido corresponderá ao valor pago em singelo e não ao seu dobro.
V.–Acresce ainda que em caso algum poderia ser reconhecido qualquer direito de retenção porquanto o recorrente não detém a qualidade de “consumidor”.
VI.–Não merece, assim, qualquer reparo a douta sentença recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2.–Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pela recorrente define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, atendendo ao teor das alegações apresentadas pela Recorrente, impõe-se verificar se ocorreu ou não incumprimento definitivo do contrato-promessa celebrado entre a Autora e a Ré Insolvente, imputável a esta, que justifique, a título principal, o reconhecimento à ora Recorrente do direito às fracções objecto da aludida promessa com celebração de escritura de compra e venda das fracções sem ónus e encargos, e, a título subsidiário, o reconhecimento do crédito que aquela reclamou.

3.– Na sentença deram-se por provados os seguintes factos:
1)-No Cartório Notarial Notário C... B... foi celebrado, no dia 4 de Dezembro de 2012, escritura pública de “Contrato Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real”, conforme certidão junta com a petição inicial e cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido;
2)-De acordo com o documento aludido em 1), a EV, Lda. declarou prometer vender à aqui A., SO, Unipessoal, Lda., livre de ónus ou encargos e pelo preço de €18.000,00 (€9.000,00 por cada fracção), a fracção designada pela letra “V” e a fracção designada pela letra “AC” do prédio urbano sito na Rua projetada à Rua …, nº 1, e números 1, 2, 3, e 10 a 41, do Impasse “A” – impasse a tardoz), da freguesia de A____V____, descrito na Conservatória do Registo Predial da M____ sob o número .... e inscrito na matriz sob artigo ....;
3)-Nos termos da escritura referida em 1), o representante da ora insolvente no acto declarou “Que sobre os referidos imóveis incidem registadas duas hipotecas a favor da Caixa Geral de Depósitos, SA, pelas apresentações seis, de vinte e seis de Outubro de dois mil e sete e apresentação cinco mil seiscentos e noventa, de oito de Maio de dois mil e nove, que se mantêm em vigor”;
4)-De acordo com a alínea a) da Cláusula Segunda, as partes declararam que, na data da assinatura do contrato-promessa referido em 1), a ora A. entregou a importância de oito mil euros referente à fração “V” e oito mil euros referente à fração “AC”, a título de sinal e início de pagamento, que o representante da insolvente no acto declarou expressamente ter recebido e da qual deu quitação;
5)-Nos termos da alínea b) da Cláusula Segunda, o remanescente do preço seria pago na data de realização da escritura pública de compra e venda, “momento este em que serão liquidadas as importâncias devidas à Caixa Geral de Depósitos, SA contra a entrega de documento que permita o cancelamento das atrás mencionadas inscrições hipotecárias”;
6)-Nos termos da alínea c) da Cláusula Segunda, “A entrega dos referidos imóveis terá lugar na data da outorga da escritura pública de compra e venda”;
7)-De acordo com a Cláusula Terceira, “A escritura de compra e venda ora prometida terá lugar no prazo de cinco anos a contar da presente data”;
8)-Nos termos da Cláusula Sexta, “Todos os outorgantes atribuem eficácia real ao presente contrato, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413.º do Código Civil”;
9)-A promessa de compra e venda identificada nos números anteriores foi objeto de registo na Conservatória do Registo Predial da M____, em 05.12.2012, conforme certidão do registo predial junta ao apenso de apreensão de bens em 30.11.2021;
10)-Do mesmo registo predial constam registadas duas hipotecas voluntárias a favor da Caixa Geral de Depósitos, inscritas em 08.05.2009, tendo a Caixa Geral de Depósitos, SA transmitido os respetivos créditos para a XYQ LUXCO SARL, conforme registo de 17.03.2020;
11)-De acordo com o mesmo registo predial, encontra-se ainda registada hipoteca legal a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, conforme inscrição de 23.11.2020;
12)-Por documento datado de 05.02.2013, denominado “Adenda ao Contrato-Promessa de Compra e Venda Com Eficácia Real” e por referência ao contrato identificado em 1), foi feito constar que a ora insolvente e a A., através dos respetivos representantes cuja assinatura e poderes de representação foi reconhecida por advogado, declararam que “A tradição material das frações, a concretizar com a entrega das chaves das garagens, tem lugar no dia de hoje, trinta de Janeiro de dois mil e treze e formalizado pela presente adenda”.

4.–De acordo com as conclusões formuladas pela Recorrente a questão a resolver passa por apurar se ocorreu ou não incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a ora Recorrente e a insolvente e que teve por objecto duas fracções (garagens) de um determinado prédio urbano.
Do que se deduz da sentença, esse alegado incumprimento definitivo do contrato-promessa não foi reconhecido, “porque em momento algum a A. sustenta que a insolvente ou o Administrador da Insolvência incumpriram definitivamente o contrato promessa. Pelo contrário, a A. afirma (…) a sua firme vontade em que o mesmo seja cumprido – reconhecendo, assim, que ainda é possível e mantendo o interesse no mesmo.”
Apesar do que consta na sentença, a Recorrente conclui que existe incumprimento definitivo do contrato celebrado (alínea F) das conclusões de recurso), devido ao comportamento do administrador da insolvência, nomeadamente a venda judicial a terceiros das fracções objecto do contrato-promesa, que, assim, impossibilita o cumprimento do contrato.
Contudo, da factualidade dada por assente não se vislumbra que tivesse havido por parte da insolvente qualquer vontade de incumprir definitivamente o contrato-promessa celebrado.
Vejamos.

4.1.-Cumpre, em primeiro lugar, conhecer da possibilidade de o tribunal ordenar a marcação da escritura para celebração do contrato definitivo de compra e venda.
Com efeito, apesar de a Recorrente não ter formulado qualquer pedido de execução específica do contrato, pretendia que se ordenasse ao administrador da insolvência para proceder à marcação da escritura de compra e venda com a remoção dos ónus e encargos que recaiam sobre as fracções.
Mas, como bem se refere na sentença recorrida, tal pedido esbarra com o regime legal previsto no CIRE para os negócios em curso (artigos 102º e ss.).
É questão assente que o referido contrato-promessa goza de eficácia real e houve tradição das fracções autónomas a favor da promitente-compradora, a ora Recorrente sociedade.
Nestes casos, o direito que assiste ao beneficiário da promessa dotada de eficácia real é o de solicitar ao administrador da insolvência que a venda lhe seja feita directamente, nos termos do artigo 831º do CPC. Caso este se recuse a tal ou não exista acordo quanto a algum elemento da venda, resta ao promitente comprador o recurso à via coerciva, mediante a execução específica.
Assim, no caso de o promitente-vendedor ser declarado insolvente, “caso o administrador da insolvência não cumpra o contrato-promessa, ou seja, não celebre o contrato prometido, estando a tal vinculado pelo estatuído no art. 106º, nº 1, o promitente-comprador poderá, nos termos gerais, recorrer à execução específica, conforme previsto no art. 830º do CC, ou à resolução do contrato, tendo direito, no caso de promessa sinalizada, à restituição do sinal em dobro ou à indemnização correspondente ao aumento do valor da coisa, conforme dispõe o art. 442º, nº 2 do CC (…).”[1] O que o artigo 830º do CC concede ao promitente que recorre à execução específica (e que, por isso, mantém o interesse na celebração do contrato definitivo) é a faculdade de obter sentença que substitua a declaração negocial do faltoso em caso de não cumprimento ou recusa de cumprimento.[2] Por isso, “a decisão do tribunal que julgue procedente o pedido de execução específica produz os efeitos do contrato prometido, quer dizer, fica valendo como seu título constitutivo. (…). Deste modo, substitui-se, não só a manifestação de vontade do promitente faltoso, mas também a da parte que estaria disposta a emiti-la.”[3]
Contudo, a execução específica do contrato-promessa não tem por efeito o cancelamento de ónus que tenham sido anteriormente registados sobre o bem objecto do contrato-promessa.[4] Daí que “a transmissão dos bens ao promitente adquirente operada pela sentença de execução específica não extinga a hipoteca previamente constituída sobre os mesmos bens, podendo o credor hipotecário executá-los no património do transmissário”.[5], Como bem refere ISABEL MENÉRES CAMPOS, “o efeito de sequela, que caracteriza a hipoteca, implica que, em caso de alienação, o adquirente da coisa hipotecada sofra as consequências da acção executiva, podendo ter de abrir mão do adquirido, se este vier a ser vendido judicialmente. Tal resulta do carácter absoluto da garantia real: seja quem for o titular do bem, o credor hipotecário pode fazer valer o seu direito, opondo-o a todos os terceiros que com ele possam conflituar.”[6]  Assim, tal como decidido pelo STJ no já citado Acórdão de 18/06/2015 (proc. 4323/12.8TBVNG.P1.S1), havendo registo de hipoteca anterior à propositura da acção de execução específica, a transferência de propriedade que venha ser decretada não contende com a garantia conferida aos credores.[7]
É certo que as fracções que foram objecto do contrato-promessa de compra e venda de que trata os presentes autos estão oneradas com duas hipotecas voluntárias, actualmente a favor da credora XYQ, SARL, bem como com uma hipoteca legal a favor do INSTITUTO DE GESTÃO FINANCEIRA DA SEGURANÇA SOCIAL, IP.
Assim, caso a ora Recorrente (na qualidade de promitente-compradora) tivesse requerido a execução específica e pretendesse expurgar aquelas hipotecas, teria sempre de cumprir as condições e recorrer a um dos modos de expurgação previstos no artigo 721º do Código Civil.[8] Contudo, de acordo com o nº 4 do artigo 830º do Código Civil, o promitente-adquirente (de direito real sobre edifício ou fração autónoma dele) tem de requerer, em juízo, que a decisão – que faz operar a execução específica – condene igualmente o faltoso na entrega ou “do montante do débito garantido” ou do “valor nele correspondente à fração do edifício ou do direito objecto do contrato e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até pagamento integral”.
Como resulta dos autos, não foi esta a opção da ora Recorrente, que, para além de não ter pedido a execução específica do contrato-promessa celebrado,[9] insiste no pedido de marcação da escritura de compra e venda, mas com a remoção dos ónus e encargos que recaiam sobre as fracções.
Pelos motivos sobejamente enunciados, esse pedido não é admissível, uma vez que, estando aquelas fracções oneradas por hipoteca, da execução específica – faculdade que a Recorrente, aliás, não pretendeu usar – não decorre para a promitente adquirente o direito de propriedade sobre aquelas fracções, livre de ónus e encargos.
Em suma, pelas razões supra expostas, nunca o primeiro pedido poderia proceder, por não ter qualquer fundamento legal.

4.2.-Conclui, no entanto, a Recorrente que, não sendo admissível o pedido principal, deveria ser atendido o subsidiariamente formulado, que seria o do reconhecimento do seu crédito sobre a insolvente.
Mas, também este pedido não poderá proceder, pelas razões que a seguir se enunciam.
Na verdade, face ao não cumprimento de um contrato-promessa, o contraente não faltoso poderá, em princípio optar pela execução específica ou pela resolução.
Assim, se estiver interessado na celebração do contrato prometido é-lhe reconhecida a faculdade de obter sentença que substitua a declaração negocial do faltoso em caso de não cumprimento ou recusa de cumprimento (artigo 830º, nº 1 do Código Civil). Com efeito, pese embora a execução específica possa ser desencadeada em caso de recusa categórica de cumprimento  ou na hipótese de resolução infundada do contrato, a mora é o seu pressuposto privilegiado, na medida em que “a delimitação da situação de incumprimento definitivo assenta na perda do interesse do credor”[10]. Por outras palavras, na situação de um dos promitentes (quando se trate de promessa bilateral), não cumprir pontualmente, nos termos devidos, o contrato-promessa, a outra parte pode intentar a acção de execução específica, manifestando, deste modo, a sua vontade de ainda obter a prestação devida.
Como já vimos, não foi essa a escolha da Recorrente.
Já no caso de ocorrer uma situação de incumprimento culposo, mas temporário, em lugar de requerer a execução específica da promessa (sendo esta possível), o promitente cumpridor poderá, nos termos do artigo 808º do Código Civil, “determinar a convolação da mora em incumprimento definitivo, em consequência da perda de interesse no cumprimento da prestação ou através da fixação ao promitente faltoso de um prazo razoável para o cumprimento da prestação, findo o qual, não se verificando o cumprimento, a obrigação se considera definitivamente não cumprida (é a chamada interpelação admonitória), podendo o promitente in bonis resolver o contrato, nos termos do art. 432º do CC.”[11]
A perda do interesse do credor como causa geradora do incumprimento definitivo é apreciada objectivamente, não podendo operar de forma imediata e automática. Por isso, é necessário uma declaração resolutiva do credor dirigida ao devedor, “em que aquele declare a resolução do negócio e exija ao mesmo tempo a indemnização dos danos já sofridos, ou a indemnização integral pelo não cumprimento e se prontifique a fazer a sua prestação (se ainda a não fez, e se for caso disso)”.[12]
Pode ainda a mora converter-se em incumprimento definitivo em resultado do decurso do prazo estabelecido na interpelação admonitória (artigo 808º, nº 1 do Código Civil). No entanto, para se alcançar tal resultado, é necessário a verificação de três requisitos, a saber: a existência de uma intimação para o cumprimento; a consagração de um prazo peremptório, suplementar, razoável e exacto para cumprir; a declaração (cominatória) de que findo o prazo fixado sem que ocorra a execução do contrato se considera este definitivamente incumprido.[13]
Ora, da factualidade dada por assente não resulta que a insolvente não tivesse cumprido definitivamente o contrato-promessa. Na verdade, como se refere na sentença, “em momento algum a A. sustenta que a insolvente ou o Administrador da Insolvência incumpriram definitivamente o contrato-promessa.” Contrariamente, é a própria Recorrente quem afirma que “mantém a sua pretensão de adquirir as frações em causa e pretende ver o contrato cumprido” (artigo 13º da petição inicial)
Também não resulta dos autos que a Recorrente tivesse sequer alegado factos que levassem a concluir que havia perdido o interesse que tinha na prestação por parte da promitente-vendedora, a ora insolvente. E, muito menos resultou provado que alguma vez tivesse interpelado formalmente a insolvente para cumprimento do contrato-promessa de compra e venda das fracções, fixando-lhe um prazo peremptório, suplementar, razoável e exacto para cumprir.
Acresce que também não resulta dos autos qualquer declaração inequívoca de não cumprimento por parte da insolvente ou do administrador da insolvência, sendo certo que, no caso dos autos, essa recusa de cumprimento sempre seria inadmissível, uma vez que já tinha havido tradição das fracções a favor da ora Recorrente (artigo 106º, nº 1 do CIRE).
Refira-se, por último, que o administrador da insolvência ainda não concretizou a venda a terceiros das fracções em causa nos autos, como resulta do apenso da liquidação.
Desta feita, não se pode concluir, como a Recorrente, que “existe um incumprimento definitivo do contrato celebrado” (conclusão F) das alegações de recurso).
Conforme tem sido decidido, unanimemente, pela jurisprudência, “a resolução do contrato-promessa apenas se pode fundar no incumprimento definitivo, que não na simples mora, sendo que o incumprimento definitivo resulta da não realização da prestação, dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, e da perda do interesse que o credor tinha na prestação – interesse esse que tem de ser apreciado objectivamente.”[14]
Esta lacuna probatória basta para a improcedência do pedido subsidiário.

No momento em que foi deduzida a presente impugnação a ora Recorrente não era credora para efeitos do disposto no artigo 128º do CIRE, uma vez que o cumprimento do contrato-promessa celebrado ainda era possível, podendo aquela recorrer à execução específica. Somente a declaração, expressa ou tácita, do administrador de não celebrar o contrato definitivo conduziria à extinção do contrato-promessa. Nessa altura, haveria a certeza de o contrato não ser cumprido e só aí se tornaria efectivo o direito do credor à indemnização. E, mesmo que se admita que os direitos de crédito previstos no artigo 102º, nº 3, alíneas c) e d) do CIRE se constituem no momento da declaração da insolvência, “só com a declaração (tácita) de recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência, ou seja, com a verificação da condição, fica o credor plenamente em condições de exigir o crédito e de exercer o ónus de reclamação”.[15]

Improcedem, pois, as alegações de recurso.

5.Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a presente apelação, assim confirmando a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.


Lisboa, 16/05/2023


Nuno Teixeira - (Relator)
Rosário Gonçalves - (1ª Adjunta)
Manuel Marques - (2º Adjunto)



[1]Cfr. GISELA CÉSAR, Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-Promessa em Curso: em particular o contrato-promessa sinalizado no caso de insolvência do promitente-vendedor, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 146.
[2]Como explica HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1990, pág. 242, “quando requere a execução específica, o promissário não se arroga direitos  sobre uma coisa; arroga-se o direito a uma prestação do devedor (a um acto de cooperação que este se vinculou a praticar) e pede ao tribunal que, substituindo-se ao obrigado, a realize coercivamente”.
[3]Cfr. ALMEIDA COSTA, Contrato-Promessa – Uma síntese do Regime Vigente, 7ª Edição, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 64-65.
[4]Cfr. neste sentido STJ, Ac. de 18/06/2015 (proc. 4323/12.8TBVNG.P1.S1), publicado em www.dgsi.pt/jstj.
[5]Cfr. TRP, Ac. de 10/05/2018 (proc. 692/07.0TYVNG-B.P1), publicado em www.direitoemdia.pt.
[6]Anotação ao artigo 721º, in Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral [coord. de JOSÉ BRANDÃO PROENÇA], Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 965.
[7]Cfr. ANA AFONSO, Anotação ao artigo 830º, in Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, pág. 1243. Também nesta Relação, por Ac. de 26/06/2007 (proc. 4544/2007-1) se decidiu que a garantia hipotecária constituiria sempre uma limitação ao exercício pleno do direito de propriedade – independentemente de quem fosse o proprietário da fracção transmitida – enquanto aquela não fosse expurgada por uma das formas previstas no artigo 721º do Código Civil.
[8]As condições são as seguintes: a aquisição de bens hipotecados; o registo do título de aquisição; que o adquirente do bem hipotecado não seja pessoalmente responsável pelo cumprimento das obrigações garantidas.
Quanto aos modos de proceder à respectiva expurgação, a lei prevê dois: através do pagamento integral aos credores hipotecários das dívidas em que os bens estão hipotecados (alínea a) do artigo 721º); mediante a declaração, a realizar por aquele que adquire bens hipotecados, de que está pronto a entregar aos credores, para pagamento do seus créditos, até à quantia pela qual obteve os bens, ou aquela em que os estima, quando a aquisição tenha sido feita a título gratuito ou não tenha havido fixação do apreço (alínea b) do artigo 721º) – Cfr. GRAVATO MORAIS, Manual do Contrato-Promessa, Editora d’Ideias, Coimbra, 2022, pp. 303-304.
[9]Pedido que, aliás, não poderia ser formulado numa acção de verificação ulterior de créditos, como é o caso dos autos.
[10]Cfr. ANA AFONSO, “Anotação ao artigo 830º”, [coord. JOSÉ BRANDÃO PROENÇA], Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 1241.
[11]Cfr. GISELA CÉSAR, Ob. Cit., pág. 123.
[12]BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, II, Iuridica, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Número Especial), Coimbra, 1979, pág. 379.
[13]Cfr. GRAVATO MORAIS, Manual do Contrato-Promessa, pág. 169, que cita BAPTISTA MACHADO, Ob. Cit., pág. 382/383. Segundo este autor, “a interpelação admonitória (…) é uma intimação formal dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo”. Acrescenta ainda que se trata, de uma declaração receptícia, tornando-se definitiva e irrevogável a partir do momento em que chega ao poder do devedor ou é dele conhecida (artigo 224º do Código Civil). 
[14]Cfr. STJ, Ac. de 18/06/2019 (proc. 88/14.7T8OVR.P1.S1), publicado em www.direitoemdia.pt. Ver ainda no mesmo sentido, TRL, Ac. de 26/01/2023 (proc. 547/20.2T8ALM.L1-8), TRE, Ac. de 19/11/2020 (proc. 5383/19.6T8STB.E1) e TRG, Ac. de 15/10/2020 (proc. 2094/18.3T8VRL.G1), todos publicados em www.direitoemdia.pt.
[15]Cfr. declaração de voto da Conselheira CATARINA SERRA proferida no Acórdão do STJ de 12/02/2019 (proc. 5685/15.0T8GMR-G.P1.S1), publicado em www.direitoemdia.pt.