Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
24524/22.0T8LSB.L1-6
Relator: GABRIELA FÁTIMA MARQUES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
GARANTIA BANCÁRIA ON FIRST DEMAND
ABUSO DE DIREITO
CONTRATO DE EMPREITADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A garantia bancária na modalidade on first demand é uma figura corrente no comércio internacional mas que ainda não encontra regulamentação específica na generalidade dos ordenamentos.
II. Nas garantias bancárias autónomas, em que se estabelece a interpelação on first demand, o garante apenas ficará desobrigado de cumprir com o pagamento que lhe for exigido pelo credor garantido, caso seja manifesta e patente a má fé deste.
III. Ocorre uma actuação abusiva e ofensiva do princípio da boa fé quer perante a circunstância da Requerida se ter apossado da obra sem que a mesma fosse concluída e formalmente entregue pela empreiteira, aqui Requerente, quando a própria Requerida, dona da orba, se encontrava em incumprimento perante a Requerente no que respeita à sua obrigação de pagamento do preço dos trabalhos executados.
IV. Quer ainda perante o facto de ter sido na pendência da acção em que a empreiteira veio solicitar o pagamento dos trabalhos executados que a requerida vem alegar a existência de defeitos na obra, interpelando a Requerente para os corrigir no prazo de 8 dias, sob pena de accionar a garantia bancária prestada por esta última a favor da primeira.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
R…, LDA intentou procedimento cautelar não especificado contra as V… LDA. e C…, S.A., pedindo com o presente procedimento cautelar que se impeça que a 1ª Requerida accione a garantia bancária autónoma constituída pela Requerente junto da 2.ª Requerida e, consequentemente, que a 2ª Requerida se abstenha de pagar o montante garantido.
Para tanto, alega, em síntese, que celebrou um contrato de empreitada com a 1ª Requerida V… – LDA, na sequência do qual prestou uma garantia autónoma junto da 2ª Requerida, C…, S.A. em benefício da 1ª Requerida. Nesta sequência, a 1ª Requerida interpelou a Requerente para corrigir alegados defeitos na obra, sob pena de proceder ao accionamento da garantia prestada, sendo que a Requerente invoca que tal é manifestamente ofensivo do princípio da boa fé e que se o accionamento da garantia vier a acontecer lhe provocará sérios prejuízos, que urge evitar com as providências requeridas.
A R…, LDA requereu ainda a dispensa de audição prévia das Requeridas e a inversão do contencioso, alegando que o processo contém já todos os elementos necessários para a decisão definitiva do litígio. Determinou-se a dispensa de contraditório prévio das Requeridas. Foram inquiridas as testemunhas arroladas pela requerida.
De seguida foi proferida decisão que julgou procedente o pedido da Requerente e, em consequência: A) Determinou-se que 1ª Requerida, V… – LDA, se abstenha de accionar a garantia bancária n.º 01… datada de 17 de setembro de 2019, no valor actual de € 32.159,80 (trinta e dois mil, cento e cinquenta e nove euros e oitenta cêntimos); B) Determinou-se que a 2ª Requerida, C…, S.A., na qualidade de banco garante, se abstenha de proceder ao pagamento, à 1ª Requerida, da garantia referida no ponto A). C) Determinou-se a inversão do contencioso, dispensando a Requerente do ónus de propositura da ação principal.
Citadas as Requeridas para os termos do presente procedimento cautelar, de acordo com o disposto nos artigos 366º, n.º 6 e 372º do Código de Processo Civil, veio a 1ª Requerida, V… – LDA deduzir oposição peticionando que seja revogada a providência cautelar decretada, porquanto entende não estarem preenchidos os pressupostos da mesma.
A 2ª Requerida nada disse quanto à providência cautelar decretada nestes autos.
A Requerente exerceu o contraditório à oposição deduzida pela 1ª Requerida.
Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pela 1ª Requerida e após  foi proferida decisão que decidiu manter o procedimento cautelar decretado, nos exactos termos em que foi determinado, pelo que a 1ª Requerida, V… – LDA, se deve abster de accionar a garantia bancária n.º 01… datada de 17 de Setembro de 2019, no valor actual de 32.159,80€  e, consequentemente, a 2ª requerida C…, na qualidade de banco garante, se abstenha de proceder ao pagamento, à 1ª Requerida, da garantia referida no ponto A). Manteve-se igualmente, a decisão de inversão do contencioso.
Inconformada veio a 1ª requerida recorrer, pedindo a revogação da decisão e em consequência, pugnando que deve o Tribunal levantar a proibição de a 1ª Requerida, V… – LDA, accionar a garantia bancária n.º 01…. datada de 17 de Setembro de 2019, no valor actual de €32.159,80 e que consequentemente, a 2ª Requerida, C…, S.A., na qualidade de banco garante, não se abstenha de proceder ao pagamento, à 1ª Requerida, da garantia em apreço nos presentes autos. Apresentou, para tanto, as seguintes conclusões:
«A. Em 28 de junho de 2019, a Requerente e a 1ª Requerida celebraram um contrato de empreitada para reabilitação do prédio urbano sito na …, em Cascais.
B. No dia 17 de setembro de 2019, a Requerente/Recorrida prestou uma garantia bancária
(operação n.º 01…), à primeira solicitação, junto da 2.ª Requerida, cujo valor actual é de € 32.159,80.
C. Nos termos da cláusula quarta do contrato de empreitada, o valor total da empreitada foi fixado em 803.994,79 €, acrescido de IVA à taxa de 6%.
D. De acordo com a cláusula n.º 11.3, as partes fixaram o prazo de 12 meses para conclusão da empreitada, contados desde a consignação, a qual ocorreu no dia 9 de setembro de 2019.
E. As partes acordaram que os pagamentos seriam mensais e efectuados na proporção dos
trabalhos de empreitada realizados, devendo a 1ª Requerida proceder à respectiva liquidação no prazo de 15 dias a contar da data da recepção da factura.
F. Os factos dados como provados na sentença de que se recorre sob os números 6), 7), 8), 9), 10), 11), 12 e 13) devem considerar-se a final como não provados, atenta a matéria
carreada para os autos pelas testemunhas da Requerida/Recorrente.
G. Os factos não provados A) e B) devem considerar-se provados.
H. A conclusão da empreitada foi acordada para o dia 9 de Setembro de 2020.
I. As regras da experiência e da normalidade da vida quotidiana justificam que a Requerida/Recorrente se considerasse legitimada a não cumprir pontualmente com a liquidação de facturas referentes a uma obra que se atrasava sucessivamente há mais de 7 meses.
J. É público e notório que os primeiros relatos chegados a Portugal de doença Covid-19 que começava a espalhar-se pela China surgiram no final de Dezembro de 2019 e que os primeiros casos de Covid 19- em Portugal surgiram em Março de 2020, tendo o primeiro lock down sido decretado já corrido metade desse mês, isto é, aproximadamente 7 meses após a data em que a obra se iniciou e apenas a 5 meses da data acordada para conclusão da mesma.
K. É publico e notório que a Construção Civil foi uma das áreas menos afectadas pelos sucessivos lock downs, tendo as obras em curso prosseguido em todo o país dentro de um quadro de quase normalidade durante e esses períodos.
L. O Tribunal a quo entendeu que um dos factores que levou à não conclusão atempada de uma obra que deveria ter sido concluída até Setembro de 2020, foi uma pandemia que só começou a produzir efeitos em meados de Março de 2020 e que, apesar de devastadora para muitos sectores, pouco afectou o sector da Construção Civil!
M. O que não se coaduna com as regras da experiência e essencialmente da lógica que não permitem que a ocorrência de um facto seja consequência de facto que aconteceu posteriormente!
N. O atraso na obra, que deveria estar acabada em Setembro de 2020, não pode dever-se
a “falhas de pessoal [que] começaram a agudizar-se em meados de 2020”, por imperativo lógico.
O. Não se provando que os factos 6) a 10) tiveram na origem do atraso na entrega da obra,
o que resulta da prova testemunhal apresentada é que o atraso é da exclusiva responsabilidade da Requerente/Recorrida.
P. Apesar da boa-fé da Requerida/Recorrente a Recorrente/Requerida nunca conseguiu finalizar a obra, deixando-a abandonada.
Q. O não pagamento parcial de facturas não descriminadas ocorrido a partir de Abril de 2020 está legitimado pelo enorme atraso a que o obra já estava votada, apenas e só por responsabilidade da Requerente/Recorrida.
R. O Tribunal a quo confundiu (i) trabalhos não realizados com (ii) defeitos.
S. O Tribunal a quo não percebeu que os defeitos que deram origem às infiltrações e que eram ocultos até Outubro de 2022, deram necessariamente origem a prejuízos.
T. Até Outubro de 2022 a Requerida/Recorrente nunca se apercebeu de quaisquer defeitos
na obra (por serem ocultos), os quais só se revelaram com as fortes chuvas deste Inverno, bem como com a utilização efectiva do segundo andar do prédio que passou a ser habitado.
U. O Tribunal a quo não percebeu que a carta referida no ponto 22) surgiu na sequência
das infiltrações referidas no ponto 26), ambos dos factos provados!
V. Os defeitos em causa só foram detectados com as infiltrações, daí que não tenham sido comunicados anteriormente, por absoluto e comprovado desconhecimento.
W. A Requerida/Recorrente não podia comunicar defeitos ocultos que ainda não se tinham manifestado!
X. Não é abusivo solicitar a reparação de danos ocultos no momento que estes aparecem
sob pena do accionamento de uma garantia bancária que foi contratualizada precisamente para garantir quaisquer defeitos na realização da obra
Y. O Tribunal a quo dá como provado que houve infiltrações e, ao mesmo tempo, considera não provado que existiram prejuízos, apenas e só porque estes não foram quantificados!
Z. Desconsidera, ainda, inexplicavelmente, que na data em que tais defeitos foram comunicados, ainda não estavam quantificados por ser impossível fazê-lo, já que os danos continuavam a aumentar diariamente!
AA. Decorre das regras da lógica e da experiência, que alguém que solicita uma reparação
de algo que está na sua posse, compromete-se a cedê-la para que a reparação possa ser realizada.
BB. A jurisprudência maioritária nacional segue o entendimento de que quando a providência cautelar é requerida como forma de obstar a uma solicitação abusiva ou fraudulenta por parte do beneficiário, deve ser exigida a prova líquida, inequívoca, pronta e irrefutável, sob pena de se subverter a finalidade para a qual a garantia foi configurada, o que se torna evidente quando tratamos de uma garantia à primeira solicitação especialmente desenhada para as situações em que o credor pretende uma garantia forte, semelhante ao depósito de dinheiro, em que se abdica de qualquer possível discussão por parte do garante das relações subjacentes à emissão da garantia e de qualquer comprovação do incumprimento.
CC. Atenta a natureza da garantia autónoma à primeira solicitação, compreende-se que o
decretamento de uma providência inibitória deve ser reservado para as situações de alegação e prova de circunstâncias concretas que traduzam a fraude manifesta ou o abuso evidente do beneficiário.
DD. A Garantia Bancária foi emitida à primeira solicitação e, como tal, não carece de qualquer justificação para ser accionada, pelo que a sentença que impede o seu accionamento nos termos em que o faz, limita o direito da Requerida/Recorrente de forma violenta e abusiva, ferindo a ordem jurídica e as mais elementares garantias de cumprimento de obrigações licita e livremente prestadas.
EE. Pelo que a sentença é injusta, impondo-se a sua urgente reversão no sentido de que o
accionamento da garantia bancária não é abusivo nem em violação dos princípios da boa-fé, sendo antes o exercício legitimo de um direito.»
A recorrida apresentou contra alegações, concluindo pela improcedência da apelação.
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- É de alterar a matéria de facto nos termos pretendidos pela recorrente;
- É de declarar improcedente a providência dada a natureza da garantia autónoma à primeira solicitação, inexistindo no caso uma situação de fraude manifesta ou o abuso evidente do beneficiário.
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II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados indiciariamente provados os seguintes Factos:
1) Em 28 de junho de 2019, a Requerente e a 1ª Requerida celebraram um contrato de empreitada para reabilitação do prédio urbano sito na …, em Cascais.
2) No dia 17 de setembro de 2019, a Requerente prestou uma garantia bancária (operação n.º 01…), à primeira solicitação, junto da 2.ª Requerida, cujo valor actual é de € 32.159,80.
3) Nos termos da cláusula quarta do contrato de empreitada, o valor total da empreitada foi fixado em 803.994,79 €, acrescido de IVA à taxa de 6%.
 4) De acordo com a cláusula n.º 11.3, as partes fixaram o prazo de 12 meses para conclusão da empreitada, contados desde a consignação, a qual ocorreu no dia 9 de setembro de 2019.
5) As partes acordaram que os pagamentos seriam mensais e efectuados na proporção dos trabalhos de empreitada realizados, devendo a 1ª Requerida proceder à respectiva liquidação no prazo de 15 dias a contar da data da recepção da fatura.
6) Em abril de 2020, a 1.ª Requerida começou a incumprir o pagamento das faturas que lhe iam sendo enviadas.
7) A falta de pagamento das faturas em causa comprometeu os pagamentos das obrigações que a Requerente estava adstrita junto dos seus fornecedores.
8) Por outro lado, a pandemia COVID-19 gerou dificuldades na mobilização e contratação de mão de obra pela Requerente e na recepção e aplicação de material em obra.
9) As falhas no projecto de obra da 1ª Requerida levaram à realização de alterações e de trabalhos adicionais.
10) Em diversas ocasiões, a 1ª Requerida solicitou realização de trabalhos que não tinham sido previamente acordados entre as partes.
11) O circunstancialismo descrito nos pontos 6 a 10 levou a que não fosse cumprido o prazo inicialmente estipulado para a conclusão da obra.
12) Nessa sequência, as partes acordaram, por mais do que uma vez e ainda que sem redução a escrito, a prorrogação do prazo geral de conclusão da empreitada.
13) A Requerente interpelou diversas vezes a 1ª Requerida para liquidar os valores em atraso, contudo esta última nada pagou.
14) Em data concretamente não apurada, mas situada entre os meses de setembro e outubro de 2021, as partes elaboraram uma vistoria à obra.
15) Em 26 de novembro de 2021, a 1.ª Requerida enviou uma carta à Requerente, na qual, imputou os atrasos da obra à Requerente e fixou o dia 10 de dezembro de 2021 para entrega da mesma.
16) Em 20 de dezembro de 2021 a 1.º Requerida enviou outra missiva à Requerente, na qual: 16.1) Interpelou a Requerente para o pagamento de multas contratuais, correspondentes a 20% do valor da empreitada, nos termos da cláusula 17 do contrato; 16.2) Procedeu à resolução do contrato;
16.3) Interpelou para o pagamento de uma indemnização no valor de 15% do valor da empreitada “por prejuízos sérios causados”;
16.4) Operou uma compensação em relação ao montante que reconhece que se encontrava em dívida para com a Requerente – à data de € 157.699,35 (cento e cinquenta e sete mil, seiscentos e noventa e nove euros e trinta e cinco cêntimos);
16.5) Interpelou para a entrega efectiva da obra.
17) A Requerente reteve a obra e o estaleiro.
18) No entanto, em dezembro de 2021 e janeiro de 2022, a 1ª Requerida apossou-se da obra e do estaleiro, impedindo a Requerente de entrar na mesma.
19) Na sequência da factualidade descrita no ponto anterior, não foi permitido à Requerente concluir a obra.
20) Face à ausência de qualquer pagamento por parte da 1.ª Requerida, em 28 de abril de 2022, a Requerente apresentou, junto do Balcão Nacional de Injunções, requerimento de injunção, ao qual foi atribuído o n.º …YIPRT, peticionando o pagamento das faturas em dívida, no valor global de €193.735,41.
21) A 1.ª Requerida opôs-se ao requerimento inicial, passando o processo a correr como ação de processo comum, no Juízo Central Cível de Lisboa, Juiz 18.
22) No dia 12 de outubro de 2022 a 1.ª Requerida endereçou uma carta à Requerente, invocando defeitos na obra e interpelando a Requerente para os corrigir no prazo de 8 dias, sob pena de accionar a garantia bancária mencionada no ponto 2.
23) A carta mencionada no ponto anterior foi igualmente remetida à Requerente, através de email, no dia 13 de outubro de 2022.
24) Nunca, em qualquer outro momento prévio às comunicações referidas nos pontos 22 e 23, a 1ª Requerida, comunicou à Requerente, quaisquer defeitos na obra.
25) O accionamento da garantia autónoma indicada no ponto 2 é susceptível de afectar seriamente o bom nome da Requerente junto do Banco garante e junto das restantes instituições do sistema financeiro, entidades adjudicantes de obras públicas ou particulares e restantes empresas do sector, nomeadamente os seus fornecedores.
26) Em outubro de 2022, surgiram infiltrações no 1.º andar do prédio urbano identificado no ponto 1.
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Considerou-se que a boa decisão da causa não se provou que:
A) Na sequência da vistoria mencionada no ponto 14 dos factos indiciariamente provados, foi elaborada uma listagem de tarefas desconformes e não concluídas na obra, a qual foi comunicada à Requerente.
B) Na sequência das infiltrações referidas no ponto 26 dos factos indiciariamente provados, a 1ª Requerida sofreu prejuízos.
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Da impugnação da decisão de matéria de facto:
Face ao teor do art.º 640º do Código de Processo Civil quando seja impugnada a matéria de facto:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes ( ver ainda Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., Almedina, 2017, pp. 158-159 e Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt. ).
Abrantes Geraldes ( in ob. Cit.), salienta que o S.T.J. «tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.»( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores).
Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objectivos que o art.º 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.
Acresce que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”. Mas apesar da apreciação em primeira instância ter sido construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida (…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
No caso dos autos estamos perante uma providência cautelar e face à natureza da mesma haverá que considerar que o legislador dotou tal procedimento de instrumentos que permitem conferir ao mesmo celeridade, por um lado, através de mecanismos relativos à marcha do processo, que visam torná-lo mais simples e mais rápido, por outro lado, mediante a natureza sumária do conhecimento.
Ora, é tendo por base a celeridade que a apreciação sumária da situação se justifica, apreciação essa a que usualmente se designa por summaria cognitio. Como refere Rita Lynce de Faria “com este objectivo (a celeridade), a ordem jurídica confere ao juiz cautelar a possibilidade de emitir uma decisão, com base numa apreciação sumária” ficando a apreciação completa para a acção principal (in “A função instrumental da tutela cautelar não especificada” pág. 172). Assim, no âmbito do procedimento cautelar é suficiente a mera justificação ou verosimilhança, ou seja, não a prova do facto, mas apenas a simples probabilidade da sua verificação. Donde, a sumariedade constitui “instrumento essencial ao procedimento cautelar. Se este não fosse dotado de meios que permitissem que a decisão fosse tomada de forma mais célere do que na acção não cautelar, o seu objectivo ficaria defraudado, constituindo o procedimento cautelar uma mera duplicação inútil” (in ob. Cit. Pág. 173). Nesta medida “o legislador entendeu dever conceder ao julgador do procedimento cautelar a possibilidade de, na apreciação da pretensão cautelar, se limitar a efectuar uma análise meramente perfunctória do litígio, menos aprofundada que nos processos de cognição plena” (Rita Lynce de Faria in “A Tutela Cautelar Antecipatória no Processo Civil Português”, pág. 186 e ss.).
Ora, “tornar verosímil um facto, tem significado entre nós e em geral na doutrina italiana de Calamandrei em que o legislador português se inspirou, torná-lo credível através de meios de prova que permitam concluir que é provável que ele efectivamente exista, nos termos em que o requerente o configura. Ou seja, trata-se de um meio termo entre a prova e a mera alegação. A segunda não é suficiente e a primeira não é necessária” (cf. Rita Lynce de Faria in ob. Cit. Pág. 195)
Deste modo, para construir o quadro ideal no qual irá basear-se a decisão de conceder, ou rejeitar a providência cautelar requerida, o juiz pode bastar-se com a forte probabilidade da realidade dos factos, e a certeza é substituída por esta e a prova é substituída por prova sumária.
Feito este enquadramento, haverá que aferir quais os pontos concretos que devem ser apreciados por este tribunal no que diz respeito à impugnação dos factos indiciariamente considerados pelo Tribunal recorrido.
Insurge-se a recorrente quanto aos factos provados nos pontos 6), 7), 8), 9), 10), 11), 12), 19, o que apelida de conclusivo contido no ponto 13) e ainda a interpretação do ponto 24). Pretende ainda que se considerem provados os factos contidos em A) e B) considerados como não provados.
Vejamos cada uma das alterações pretendidas.
(…)
Daqui resulta a inalterabilidade total dos factos a considerar e a subsumir ao direito.
*
III. O Direito:
Consolidada que está a questão da alterabilidade da matéria de facto haverá que aferir do acerto ou não da subsunção dos factos ao direito.
As providências cautelares asseguram a defesa preventiva do direito, consagrando-se, quer a proteção cautelar conservatória, quer antecipatória ( cfr. a previsão quanto ao âmbito das providências cautelares não especificadas – Art.º 362º do CPC).
No caso que ora nos ocupa releva a natureza antecipatória, pois é perante a situação de urgência invocada que se pretende que se antecipam os efeitos jurídicos da decisão a ser proferida na acção principal, bem como a realização do direito. Deste modo, entende-se que as “providências cautelares antecipatórias têm como finalidade principal prevenir a ocorrência de um dano, obtendo adiantadamente a disponibilidade de um bem ou o gozo de um benefício”, ou seja “visam impedir, mediante a antecipação da satisfação da pretensão do requerente, o prejuízo que o prolongamento de uma situação antijurídica provoca ao titular do direito” ( Marco Filipe Carvalho Gonçalves”, in “Providências cautelares” pág. 93/94). Neste tipo de tutela cautelar está ainda subjacente quer a provisoriedade, quer instrumentalidade, pois a mesma, por norma, só produz efeitos até que se verifique a composição definitiva do litígio. Aliado a esta última encontra-se o facto de as medidas poderem ser modificadas ou revogadas, sendo que tal decorre da circunstância de serem decretadas com recurso a um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança. Pois, como refere Teixeira de Sousa ( in Estudos sobre o NCPC” pág. 228) a tutela cautelar é “qualitativamente distinta daquela que exige uma prova stricto sensu dos factos relevantes”.
A estas características soma-se ainda a sua autonomia, dispondo o art.º 364º nº 4 que o julgamento da matéria de facto ou a decisão final proferida no procedimento cautelar não têm influência no julgamento da acção principal. 
Logo, o princípio da efectiva tutela judicial pressupõe a composição provisória da situação controvertida antes da decisão definitiva, de molde a prevenir a violação de direitos e/ou a assegurar a utilidade da decisão que os haja reconhecido, tarefa prosseguida através de procedimentos cautelares, de natureza urgente, cuja especificidade visa a garantia desses objectivos. Pode-se, assim, afirmar que a “tutela processual provisória decorrente das decisões provisórias e cautelares é instrumental perante as situações jurídicas decorrentes do direito substantivo, porque o direito processual é o meio de tutela dessas situações. A composição provisória realizada através da providência cautelar não deixa de se incluir nessa instrumentalidade, porque também ela serve os fins gerais de garantia que são prosseguidos pela tutela jurisdicional (…). E tal composição provisória pode visar uma de três finalidades: aquela composição pode justificar-se pela necessidade de garantir um direito, de definir uma regulação provisória ou de antecipar a tutela requerida. Sempre que a tutela provisória se legitime pela exigência de garantir um direito, deve tomar-se uma providência que garanta a utilidade da composição definitiva, quer dizer, uma providência de garantia”(Cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 08.04.2000 in www.dgsi.pt/jrc).
Assim, é na instrumentalidade que encontra fundamento a tutela cautelar, e ainda que tal tutela exija tempo, é necessário que se criem mecanismos que permitam que o procedimento cautelar se processe de forma mais célere que o processo principal, para que lhe seja possível desempenhar a sua função instrumental. Como refere Alberto dos Reis (in “A figura do processo cautelar”pág. 45)  “visto que o processo cautelar se propõe remover o periculum in mora, a sua tramitação há-de ser forçosamente simples e rápida, sob pena de a estrutura estar em flagrante desarmonia com  a função”.
Diversamente do que está consagrado para os restantes procedimentos cautelares, cujo campo de aplicação está perfeitamente delimitado pelas normas jurídicas que os enquadram e que, por isso, apenas são adequados a decretar providências de conteúdo específico, as medidas a inserir no procedimento comum variam consoante a natureza do direito que lhes subjaz e a situação de perigo de lesão que se verifica. Para o decretamento das providências basta que sumariamente (“summaria cognitio”) se conclua pela séria probabilidade da existência do direito invocado (aparência do direito) e pelo justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação. Dada a extensão da área dos direitos subjectivos que pode ser coberta pelos procedimentos cautelares, são exigidos requisitos que nem sempre encontram reflexo tão claro nas normas reguladoras de alguns dos restantes procedimentos específicos.
Assim, dispõe o art.º 381.º, n.º 1, do CPC que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado” e o art.º 387.º do mesmo diploma legal que “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão” (n.º 1) e “a providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar” (n.º 2).
Dos preceitos aplicáveis ao caso resulta que constituem requisitos de uma providência cautelar não especificada:
a) – Probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni juris);
b) – Fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora);
c) – Adequação da providência à situação de lesão iminente;
d) – Não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar;
e) – Não existência de providência específica que acautele aquele direito.
O fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável constitui nas medidas cautelares atípicas, a manifestação do requisito comum a todas as providências : o “periculum in mora”. Tal como decorre com a generalidade das providências, o receio tanto pode manifestar-se antes de proposta a acção, como na sua pendência. Em qualquer das situações pode o autor solicitar a adopção da medida que julgue mais adequada a acautelar o efeito útil que através do processo principal pretenda ver reconhecido ou satisfeito. Mas não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera da contraparte.
Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão. Determina a lei que o receio deve ser fundado, ou seja, apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo. Não bastam simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade.
No caso dos autos visou a providencia evitar o accionamento da garantia bancária, à primeira solicitação, prestada pela requerente, intento conseguido face à decisão recorrida. Entende, contudo, a requerente que a jurisprudência maioritária nacional segue o entendimento de que quando a providência cautelar é requerida como forma de obstar a uma solicitação abusiva ou fraudulenta por parte do beneficiário, deve ser exigida a prova líquida, inequívoca, pronta e irrefutável, sob pena de se subverter a finalidade para a qual a garantia foi configurada, o que se torna evidente quando tratamos de uma garantia à primeira solicitação especialmente desenhada para as situações em que o credor pretende uma garantia forte, semelhante ao depósito de dinheiro, em que se abdica de qualquer possível discussão por parte do garante das relações subjacentes à emissão da garantia e de qualquer comprovação do incumprimento.
Pois sustenta que sendo a natureza da garantia autónoma à primeira solicitação, compreende-se que o decretamento de uma providência inibitória deve ser reservado para as situações de alegação e prova de circunstâncias concretas que traduzam a fraude manifesta ou o abuso evidente do beneficiário, pelo que conclui que a decisão proferida é injusta, impondo-se a sua urgente reversão no sentido de que o accionamento da garantia bancária não é abusivo nem em violação dos princípios da boa-fé, sendo antes o exercício legitimo de um direito.
A questão jurídica essencial aponta para a correção da abordagem da recorrente, porém, é na análise do caso em concreto que podemos alicerçar a existência ou não da possibilidade de paralisar o accionamento da garantia bancária em causa.
Revisitando a decisão recorrida, nomeadamente a proferida inicialmente e confirmada após a oposição «(n)o caso dos autos, entre as partes foi celebrado um contrato de empreitada, contrato este que já se encontra resolvido por iniciativa da 1ª Requerida. No âmbito desse contrato, a Requerente constituiu a favor da 1ª Requerida, uma garantia bancária à primeira solicitação (vulgarmente, on first demand), a prestar pela instituição bancária, 2ª Requerida nestes autos.
O valor da garantia corresponde actualmente a 32.159,80€ A referida garantia consiste num contrato inominado celebrado entre a Requerente (mandante) e a 2ª Requerida (garante), a favor da 1ª Requerida (beneficiária da garantia). Através deste contrato, a 1ª Requerida, enquanto beneficiária adquiriu o direito potestativo de exigir a execução da garantia, à primeira interpelação ou solicitação, não lhe podendo ser opostos quaisquer meios de defesa. Desta feita, a garantia assume natureza autónoma, na medida em que não é, nem pode ser afectada pelas vicissitudes da relação principal (Neste sentido, Menezes Cordeiro, “Manual de Direito Bancário”, 2ª ed., 2001, pág. 654).
Com efeito, uma vez exigida a garantia, o garante só poderá opor ao beneficiário as exceções literais que constem do próprio texto da garantia, nunca as derivadas da relação principal. Do exposto resulta que, estruturalmente, a garantia bancária autónoma é uma figura triangular, que supõe três ordens de relações, traduzidas em três contratos distintos: o contrato base, entre o dador da ordem e o beneficiário; o contrato pelo qual o garante (Banco) se obriga perante o dador de ordem; e o contrato de garantia, entre o garante e o beneficiário. Por outro lado, o escopo da garantia não é assegurar o cumprimento do contrato principal, mas antes, “assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da própria garantia, uma determinada quantia em dinheiro”(Menezes Cordeiro, ibidem).».
A garantia bancária na modalidade on first demand é uma figura corrente no comércio internacional mas que ainda não encontra regulamentação específica na generalidade dos ordenamentos, não tendo ainda sido assinada por Portugal a “Convenção sobre as Garantias Independentes e as Letras de Crédito Stand by” que foi aprovada pela Resolução nº 50/48, das Nações Unidas, de 11-12-85, apesar do parecer favorável emitido pelo Conselho Consultivo da PGR, datado de 07.11.1997 (in www.dgsi.pt nº PGR00000945).
No entanto, dúvidas não há que se trata de um negócio atípico, mas perfeitamente legítimo no âmbito do princípio da liberdade contratual a que alude o art.º 405º do C. Civil e que consiste, na definição do Prof. Galvão Telles, no "contrato pelo qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base) sem poder invocar em seu beneficio quaisquer meios de defesa relacionados com esse contrato" (inO Direito, ano 120, III-IV, 1988, pág. 283).
Logo, uma das suas características fundamentais repousa na sua autonomia relativamente à obrigação garantida, tal como ensina Menezes Cordeiro, o banco só pode opor ao beneficiário as excepções que constem do próprio texto da garantia e nunca as derivadas da relação principal. Ou seja, "perante uma garantia autónoma à primeira solicitação, de nada servirá esgrimir argumentos retirados do contrato principal. A garantia tem fins próprios e é auto-suficiente (Cfr. Manual de Direito Bancário pág. 609-610).
Engrácia Antunes (in “Direito dos Contratos Comerciais”, 3ª Reimpressão da edição de Outubro de 2009, Almedina, 2014, p. 537) a propósito desta figura e a par do já constante da decisão recorrida refere que  «(a)s garantias bancária autónomas – que já chegaram a ser reputadas de “sangue da vida comercial internacional” – devem a sua difusão essencialmente à eficácia e segurança conferidas aos direitos dos terceiros beneficiários: o garante obriga-se a pagar ao terceiro garantido logo que para tanto solicitado, independentemente da sorte da obrigação principal – isto é, independentemente de saber se esta obrigação é válida ou inválida, ou se foi ou não cumprida.».
No Acórdão da Relação do Porto de 23/10/2014, (proc. nº 2072/11.3TJPRT.P1, in Jurisprudencia.pt ) alude-se ainda que «(a) em vez do garantido, é um contrato de intervenção tripartida muito aproximado ao contrato a favor de terceiro para remição de dívida com beneficiário determinado, garantia bancária à primeira solicitação, em que o banco se compromete a pagar ao beneficiário genericamente regulado pelo art.º 443 do CC (anota-se que essa condição tripartida exclui a aplicação do regime específico dos contratos de garantia financeira previsto no Decreto-Lei 105/2004, de 8/5). Sucede que também o regime jurídico do contrato a favor de terceiro para remição de dívida com beneficiário determinado não deve ser aplicado, por analogia, à regulação do contrato de garantia bancária à primeira solicitação, na medida em que o art.º 449º do CC prevê que o garante/promitente pode opor ao beneficiário/terceiro todos os meios de defesa que lhe poderiam ser opostos pelo garantido/promissário.».
Ora, como bem se alude no Acórdão do STJ de 30/03/2023 (proc. nº 3088/20.4T8MAI-A.P1.S2, endereço da net aludido ): «Há, porém, que ter presente que esta posição dos três intervenientes na equação não é absoluta, pois que em determinadas situações o garante poderá recusar o pagamento.
Socorramo-nos das palavras do Conselheiro Sebastião Póvoas que, em Acórdão do STJ (2/09/2006, Proc.º 06A2211, in www.dgsi.pt), assim refere: «Movemo-nos no âmbito de uma relação contratual, que não é puramente abstracta mas causal, na estrita medida em que exerce uma função de garantia, objectivada no contrato.
Mas, como autónoma, independe da substância, ou até da validade, do contrato-base, sendo, por isso, que a banca garante está impedida de usar os meios de defesa do devedor. O primeiro dever do garante é o de prestar; o dever do beneficiário é o de informar o garante da falta de percebimento da prestação.
Coexistindo com estes deveres primários, estão os deveres laterais que resultam, ou da lei ou de princípios gerais e que se prendem com o "iter" da relação obrigacional ("Nebenpflichten").
São os deveres acessórios de conduta (cf. Prof. Antunes Varela, in "Das Obrigações em geral", I, 7ª ed, nota 1, 126). De entre eles, podem destacar-se os deveres de cuidado, de previdência, de segurança e, como paradigma da eticidade que deve estar presente em qualquer negócio, o princípio da boa-fé, ao qual se associam o dos bons costumes ou o do fim social e económico do direito. (cf. v.g. os artigos 227º nº1, 239º, 762º nº2 e 334º do Código Civil).
O Prof. Vaz Serra ("Efeitos dos Contratos - princípios gerais") diz que o contrato "obriga não só ao que nele se determina, mas também às consequências que, segundo a lei, ou, na falta dela, os usos e a boa fé, dele resultam." (cf., a propósito, Des. Gonçalves Salvador, "A boa-fé nas obrigações", R.T., 86º, 7 ss; Prof. Menezes Cordeiro, "A boa fé no Direito Civil", 1984; Prof. Baptista Machado, "A cláusula do razoável", RLJ 199, 65 ss).
A boa-fé deve ser vista no plano dos princípios normativos, tendo sempre presente - na parte que agora releva - o artigo 762.º n.º 2 do Código Civil, que impõe que tanto a actuação do credor, no exercício do seu crédito, como a do devedor, no cumprimento da obrigação actuem com probidade e lealdade. Isto porque, e como resulta do que ficou dito, "o ditame da boa-fé impera no cumprimento de todas e quaisquer obrigações, tanto contratuais, como derivadas de outras fontes." (Prof. Almeida Costa, in "Direito das Obrigações", 6ª ed., 871).»
Do que se deixa dito, há pois que concluir que nas garantias bancárias autónomas, em que se estabelece a interpelação on first demand, o garante apenas ficará desobrigado de cumprir com o pagamento que lhe for exigido pelo credor garantido, caso seja manifesta e patente a má fé deste( É este o entendimento da maioria da doutrina, de onde se destacam, o Prof. Galvão Telles (ob. Citada a pág. 289), Profs. Almeida Costa e Pinto Monteiro ("Garantias Bancárias - O Contrato de Garantia à Primeira Solicitação" C.J. XI-1986-V, 20) e o Dr. José Simões Patrício ("Preliminares sobre a garantia on first demand", R.O.A. 43º, III, 1983, 715-716).
Donde, são muito limitados os motivos que podem ser invocados pela entidade garante para recusar o seu cumprimento. Pelo que face a tal limitação, como referimos, a jurisprudência e a doutrina têm procurado encontrar algumas das excepções ditadas, em regra, pelos princípios da boa-fé ou do abuso de direito ou pela necessidade de evitar benefícios decorrentes de factos ilícitos, envolvendo fraudes ou falsificação de documentos. E é pacífico o entendimento de que os factos pertinentes devem resultar de uma prova sólida e irrefutável, não bastando a formulação de meros juízos de verosimilhança sobre a ocorrência dos respectivos requisitos substanciais.
Sobre tais requisitos importa ter presente o decidido no Acórdão do STJ de 5/07/2012 (Proc. nº 219/06.06TVPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt, com vasta referência doutrinárias sobre a questão) ao indicar que a legitimidade da recusa tem sido defendida designadamente nas seguintes circunstâncias:
- Manifesta má fé ou a má fé patente, isto é, que não oferece a menor dúvida, por decorrer com absoluta segurança de prova documental em poder do ordenante ou do garante;
- Casos de fraude manifesta ou de abuso evidente por parte do beneficiário;
- Quando o contrato garantido ofender a ordem pública ou os bons costumes;
- Sempre que exista prova irrefutável de que o contrato-base foi cumprido.» (no mesmo sentido, entre outros, Acórdãos do STJ de 25/11/2014, proc. 526/12.3TBPVZ-A.P1.S1, de 20/03/2012, proc. 7279/08.8TBMAI.P1.S1 e de 13/04/2011, proc. 41342/04.YYLB-A.L1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.).
Na análise de tais requisitos a decisão recorrida aprecia a questão da seguinte forma: «Tendo em consideração as características da garantia, facilmente se depreende que o decretamento de providências cautelares que impeçam o seu accionamento deve ser excepcional e limitado a situações de flagrante violação das regras da boa fé que norteiam o direito das obrigações.
Não obstante estar em causa a apreciação de uma providência cautelar, a jurisprudência tem entendido que para impedir a execução da garantia, é necessário um abuso manifesto, fundado numa “prova inequívoca, permitindo a percepção imediata e segura da invocada fraude ou aproveitamento abusivo por parte do beneficiário”( Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-07-2018 (Processo n.º 761/18.0T8LSB.L1-2/ Relatora: Ondina Alves), disponível em http://www.dgsi.pt.), não bastando assim um juízo de mera plausibilidade quanto a tal abuso.
É precisamente na violação dos limites gerais impostos pelo princípio da boa-fé que a Requerente funda o seu pedido.
Vejamos então:
Resultou indiciariamente provado que, não obstante as partes terem fixado inicialmente o prazo de 12 meses para conclusão da obra, tal prazo não foi cumprido em consequência de uma conjugação de factores, concretamente: o incumprimento no pagamento de diversas faturas pela 1ª Requerida, a pandemia COVID-19, diversas falhas no projecto de obra da 1ª Requerida, que motivaram a realização de alterações e de trabalhos adicionais e ainda a realização de outros trabalhos a pedido da 1ª Requerida. Nesta sequência, as partes prorrogaram o prazo de entrega da obra, embora não tenham reduzido tal acordo a escrito.
Ainda assim, em novembro de 2021, a 1ª Requerida interpelou a Requerente para
entregar a obra. Havendo ainda incumprimento no pagamento por parte da 1ª Requerida, a Requerente exerceu o seu direito de retenção. Porém, a 1ª Requerida apossou-se da obra, mantendo-se em incumprimento em relação ao pagamento das faturas. Com a sua conduta, a 1ª Requerida impossibilitou a Requerente de concluir a obra, nunca tendo havido uma entrega formal da mesma.
A manutenção da situação de incumprimento do pagamento pela 1ª Requerida, levou a Requerente a intentar procedimento injuntivo, ao qual a Requerida se opôs, passando a ação a correr como processo comum. É já na pendência da referida ação que a 1ª Requerida vem alegar a existência de defeitos na obra, interpelando a Requerente para os corrigir no prazo de 8 dias, sob pena de accionar a garantia bancária prestada por esta última a favor da primeira. Ora, como decorre do supra exposto, a 1ª Requerida apossou-se da obra sem que a mesma fosse concluída e formalmente entregue pela empreiteira, aqui Requerente. Isto quando a própria Requerida se encontrava em incumprimento perante a Requerente no que respeita à sua obrigação de pagamento do preço dos trabalhos executados. Acresce que pende ação judicial em que se discute o cumprimento ou incumprimento das obrigações recíprocas das partes, sem que nela a 1ª Requerida alguma vez tivesse alegado os defeitos invocados na carta de interpelação datada de 12 de outubro de 2022 ou quaisquer outros. Assim, ao interpelar a Requerente para corrigir os alegados defeitos, sob pena de acionar a garantia bancária, a 1ª Requerida age de forma notoriamente abusiva e ofensiva do princípio da boa fé, um dos princípios basilares da ordem jurídica portuguesa.».
Prossegue-se ainda de forma acertada na decisão recorrida no sentido que: «De facto, para além de estar em incumprimento quanto a faturas devidas à Requerente, foi a própria Requerida que impediu a Requerente de aceder à obra, o que impediu a sua conclusão. Por todo o exposto, e conforme já se explanou em sede de decretamento da providência cautelar, é possível concluir pela probabilidade séria de existência do direito invocado pela Requerente, concretamente que o accionamento da garantia constitui uma inequívoca violação aos limites gerais impostos pelo princípio da boa-fé.
Resultou também indiciariamente assente que o accionamento da garantia bancária, tendo em conta o circunstancialismo apurado, trará consequências nefastas ao nível do bom nome da Requerente junto das instituições bancárias, podendo inclusivamente ficar impossibilitada de obter outras garantias autónomas. Efectivamente, se a Requerente for rotulada como incumpridora, a sua actividade será fortemente afectada porquanto terá maiores dificuldades em obter garantias bancárias. Ora, na medida em que tais garantias são comuns no âmbito dos contratos de empreitada, ficando impossibilitada de as obter, a Requerente perderia necessariamente oportunidades de negócio.
Acresce que, conforme se salientou em sede de decisão de decretamento da providência cautelar, e uma vez que a prova agora produzida não afasta tal entendimento, o decretamento da providência cautelar tem resultados menos gravosos que os danos que a Requerente pretende evitar com o accionamento da garantia bancária. Ademais, a 1ª Requerida não fez prova dos prejuízos que alega ter sofrido com a conduta da Requerente, pelo que não podemos concluir que o não accionamento da garantia bancária seja manifestamente desproporcional e prejudicial para a 1ª Requerida. Assim, tendo a presente providência cariz meramente conservatório, ou seja, visa a manutenção de uma situação existente até à prolação de decisão definitiva, face aos elementos constantes dos autos, não se afigura, pelo menos por agora, que a providência decretada seja excessiva face aos prejuízos que se pretendem evitar.».
Analisados estes princípios e face à consideração dos factos tal como foram dados como sumariamente demonstrados pelo Tribunal recorrido e inalterados nesta sede, entendemos que nada nos permite concluir de forma diferente à subsunção efectuada, a qual merece a concordância desta instância de recurso.
Improcede assim, a apelação.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela requerida e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 11 de Maio de 2023
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas
Vera Antunes