Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9764/18.4T8SNT-B.L1-8
Relator: OCTÁVIO DOS SANTOS DIOGO
Descritores: EXECUÇÃO
PENHORA
TRANSMISSÃO DO BEM PENHORADO
INOPONIBILIDADE
INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A aquisição por terceiro de um bem imóvel onerado pela penhora é inoponível à execução, cf. art.º 819º, do Código Civil.
2. Tendo a alienação do imóvel ocorrido posteriormente à data da realização da penhora daquele bem e do respetivo registo, não há que fazer intervir o terceiro adquirente na ação executiva.
3. A execução prossegue como se o bem penhorado continuasse a pertencer ao devedor/executado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

1. Relatório.
Na presente execução que Banco Comercial Português, S.A., move contra A, B e C, no desenrolar da execução foi, em 23/11/2022, proferido o seguinte despacho:
“Resultando da certidão permanente relativa ao imóvel penhorado que o mesmo pertence a terceiro, que o adquiriu ao executado após a realização da penhora (AP. 1637 de 2021/04/29 14:05:17 UTC – Aquisição), determino se notifique o exequente para requerer o que tenha por conveniente, sem o que o bem não poderá ser vendido.”
Notificado do referido despacho veio o exequente apresentar requerimento no qual terminou e requereu nos seguintes termos “(…) a presente execução deve prosseguir sobre o imóvel penhorado como se este continuasse a pertencer aos executados, o que expressamente se requer.”
Na sequência do requerido pela Exequente foi proferido despacho onde se conclui “(…), face ao exposto, indefiro o requerido pelo exequente, ficando a venda a aguardar seja requerida a intervenção do atual proprietário do imóvel penhorado.
Inconformada com esta decisão veio a exequente interpor o presente recurso de apelação pedindo que seja dado provimento ao recurso, e, consequentemente, revogar-se o despacho recorrido, e ser substituído por um outro que ordene o prosseguimento da execução nos termos requeridos pelo exequente tendo, para tanto, formulado as seguintes conclusões:
1.º - Em 22 de maio de 2018, foi instaurada a presente execução contra a A, B e C.
2.º - No âmbito da presente execução foi penhorado em 16 de julho de 2018 o prédio urbano sito na Rua Heliodoro Salgado, freguesia de Queluz, inscrito na matriz predial urbana sobre o artigo ... e descrito na conservatória predial de Queluz sob o número ..., propriedade do executado B, conforme auto de penhora junto aos autos com a ref. 13293502.
3.º - Em 27 de março de 2019, foi celebrado um acordo de pagamento entre exequente e executados, no qual foi requerido a conversão da penhora em hipoteca do imóvel, nos termos do artigo 806.º do CPC.
4.º - Os executados não cumpriram o acordo de pagamento, tendo sido requerido o prosseguimento da execução em 3 de janeiro de 2020 nos termos do artigo 808.º do Código Civil.
5.º - Após o prosseguimento dos autos, em 6 de janeiro de 2021, foi penhorado novamente o prédio urbano sito na Rua Heliodoro Salgado, freguesia de Queluz, inscrito na matriz predial urbana sobre o artigo … e descrito na conservatória predial de Queluz sob o número …, propriedade do executado B, registada através da apresentação 3326 de 2021/01/06.
6.º - O prédio urbano identificado no número antecedente foi adquirido pela sociedade "Traços Dinâmicos, Lda", conforme apresentação 1637 de 2021/04/29.
7.º - O registo de aquisição do bem identificado supra pela sociedade "Traços Dinâmicos, Lda" é posterior ao registo da penhora efetuada nos presentes autos.
8.º - Uma vez que a penhora efetuada nos presentes autos foi registada antes da referida alienação a execução prossegue como se os bens penhorados ainda pertencessem ao executado, nos termos da norma do artigo 819.º do Código Civil, que consagra o Princípio da Ineficácia em relação ao credor dos atos de disposição de bens penhorados.
9.º - Com efeito, a penhora de imóveis é um ato sujeito a registo e terceiros adquirentes não podem alegar desconhecimento da situação real dos bens e interferir na execução.
10.º - A inoponibilidade prevista no artigo 819.º do Código Civil significa que o terceiro adquirente não pode se opor à execução, nem deve ser chamado a intervir no processo executivo.
11.º - O douto despacho recorrido fez assim uma errónea aplicação do Direito aos factos, não sendo aplicável ao caso dos autos o artigo 818.º do Código Civil e artigo 54.º n.º 2 do Código de Processo Civil, violando, deste modo, o disposto no artigo 819.º do Código Civil.
Não houve resposta ao recurso.
Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa apreciar e decidir.
*
II - Mérito do recurso.
1. Objeto do recurso.
Este objeto é, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente [artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC)].
Assim, observando aquele critério, a questão que se coloca no presente recurso é a de saber se o terceiro que adquiriu o bem imóvel na pendência da execução, após a respetiva penhora, tem de ser chamado à ação executiva, como foi o entendimento o tribunal a quo.
2. Fundamentação de facto.
2.1. Em 22 de maio de 2018, foi instaurada a presente execução contra a A, B e C .
2. 2. No âmbito da presente execução foi penhorado em 16 de julho de 2018 o prédio urbano sito na Rua Heliodoro Salgado, freguesia de Queluz, inscrito na matriz predial urbana sobre o artigo … e descrito na conservatória predial de Queluz sob o número …, propriedade do executado B, conforme auto de penhora junto aos autos com a ref. 13293502.
2.3. Em 27 de março de 2019, foi celebrado um acordo de pagamento entre exequente e executados, no qual foi requerido a conversão da penhora em hipoteca do imóvel, nos termos do artigo 806.º do CPC.
2.4. Os executados não cumpriram o acordo de pagamento, tendo sido requerido o prosseguimento da execução em 3 de janeiro de 2020 nos termos do artigo 808.º do Código Civil.
2.5. Após o prosseguimento dos autos, em 6 de janeiro de 2021, foi penhorado novamente o prédio urbano sito na Rua Heliodoro Salgado, freguesia de Queluz, inscrito na matriz predial urbana sobre o artigo … e descrito na conservatória predial de Queluz sob o número …, propriedade do executado B, registada através da apresentação 3326 de 2021/01/06.
2.6. O prédio urbano identificado no número antecedente foi adquirido pela sociedade "Traços Dinâmicos, Lda", conforme apresentação 1637 de 2021/04/29.
 2.7. O despacho sob recurso é do seguinte teor:
“Notificado para, em face da aquisição do imóvel penhorado por terceiro, requerer o que tivesse por conveniente, para que o imóvel pudesse ser vendido, veio o exequente invocar que resulta do disposto no art.º 819.º do Código Civil que, “não obstante os atos ali mencionados (alienação/oneração/arrendamento), a execução prossegue como se os bens penhorados continuassem a pertencer aos executados constantes na penhora, desde que a penhora haja sido registada em data anterior àquela em que ocorreu o registo daqueles atos”, requerendo que a execução prossiga sobre o imóvel penhorado como se este continuasse a pertencer aos executados, sem necessidade de fazer intervir os novos adquirentes na ação executiva.
Vejamos,
O bem onerado para garantir o pagamento de uma obrigação pecuniária pode pertencer a um terceiro, quer porque a garantia foi originariamente constituída sobre bens de terceiro, quer porque o terceiro adquiriu os bens onerados com essa garantia.
Dispõe o art.º 818.º do Código Civil que “o direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito, ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente impugnado”.
Por sua vez, prescreve o art.º 54.º, no seu n.º 2, do Código de Processo Civil, que “A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor”, no seu n.º 3 que “Quando a execução tenha sido movida apenas contra o terceiro e se reconheça a insuficiência dos bens onerados com garantia real, pode o exequente requerer, no mesmo processo, o prosseguimento da ação executiva contra o devedor, que é demandado para completa satisfação do crédito exequendo” e no seu n.º 4 que “Pertencendo os bens onerados ao devedor, mas estando eles na posse de terceiro, poderá este ser desde logo demandado juntamente com o devedor”.
Sendo intenção do legislador legitimar na execução a presença do terceiro possuidor ou proprietário do bem dado em garantia, é de considerar que se impõe também essa presença, a exercitar através da intervenção de terceiro, quando se pretenda fazer valer a garantia, também no caso de só após a execução ocorrer a transmissão ou ser conhecida essa transmissão.
Com efeito, não estando o terceiro na execução e pretendendo o exequente continuar a usar da garantia real não há qualquer obstáculo a que o faça intervir, antes se impondo essa intervenção, continuando o devedor originário também na execução.
Efetivamente, conforme se decidiu, entre outros, nos acórdãos do TRL, de 14/12/2004, CJ Tomo V, pág. 122, do TRP, de 21/03/2002, CJ. Tomo II, pág. 203, e do TRE, de 03/11/94, CJ Tomo V, pág. 278, o instrumento processual adequado para fazer intervir o adquirente do bem hipotecado é o incidente de habilitação de adquirente, sendo as razões aí apontadas aplicáveis, mutatis mutandis, também ao adquirente do bem penhorado na execução.
Termos em que, face ao exposto, indefiro o requerido pelo exequente, ficando a venda a aguardar seja requerida a intervenção do atual proprietário do imóvel penhorado.
Notifique.”
2. Fundamentação de direito.
É certo, como se afirma no despacho em crise, que o bem onerado para garantir o pagamento de uma obrigação pecuniária pode pertencer a um terceiro, quer porque a garantia foi originariamente constituída sobre bens de terceiro, quer porque o terceiro adquiriu os bens onerados com essa garantia e, nesse caso, a execução é intentada desde logo contra esse terceiro ou, não o sendo, querendo o exequente valer-se da garantia real terá que fazer intervir nos autos esse terceiro, cf. art.ºs 818º e 54º do CPC., através do incidente de habilitação de adquirente.
Mas esta solução e citados normativos não tem aplicação nos casos em que, como aconteceu nos presentes autos, o bem penhorado foi adquirido por terceiro após a penhora.
Parece que no despacho sob recurso, ao citar e transcrever o nº 4, do art.º 54º do CPC, foi decisivo o facto do bem penhorado estar na posse de terceiro, a sociedade "Traços Dinâmicos, Lda.".
É certo que - conforme prescreve o citado normativo -“Pertencendo os bens onerados ao devedor, mas estando eles na posse de terceiro, poderá este ser desde logo demandado juntamente com o devedor”, mas a tese defendida pelo  tribunal “a quo” e citados normativos não tem aplicação nos casos em que, como aconteceu nos presentes autos, o bem penhorado foi adquirido por terceiro após a penhora.
Com efeito, o que importa apurar, para se saber se o terceiro, que está na posse do bem penhorado, deve ou não ter intervenção da execução, é saber quando adquiriu a posse/propriedade do bem penhorado.
Ora, do citado normativo, conclui-se que o momento relevante é a data da penhora, ou seja, quando se efetiva a penhora constata-se que o bem penhorado, que é pertença do devedor/executado, está na posse/pertence a terceiro, nesse caso, porque a posse/propriedade do terceiro é posta em causa pela penhora, deverá ser requerida a intervenção do terceiro na execução.
Ora, nada disto se passou no caso concreto.
A solução encontrada pelo tribunal “a quo” e os citados normativos não tem aplicação nos casos em que, como aconteceu nos presentes autos, o bem penhorado foi adquirido por terceiro após a penhora, ou seja, no momento em que efetivada a penhora o bem era pertença do devedor e estava na posse deste, sendo de todo irrelevante que o tenha vendido depois de penhorado.
O terceiro adquiriu um bem onerado com a penhora, bem objeto da presente execução, a penhora mantém-se e o bem pode ser executado sem que o terceiro tenha que ter intervenção no processo de execução, cf. art.º 819º do Código Civil, sob a epígrafe “Disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”, ao prescrever “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”.
O art.º 54.º, n.º 2, do CPC aplica-se tanto as situações em que o terceiro, não devedor, onerou uma coisa de que é proprietário para garantir o pagamento de uma dívida alheia, como os casos em que o terceiro adquiriu a propriedade já onerada com uma garantia em benefício de outrem.
No segundo caso, a alienação é plenamente eficaz, passando o bem a pertencer ao património de um terceiro, mas o credor continua a poder realizar o seu direito de crédito à custa da coisa onerada, na medida em que a prévia constituição da garantia, a penhora, fez nascer sobre o imóvel um vínculo de natureza real que é oponível erga omnes.
Ocorrendo, antes da propositura da ação executiva, qualquer uma das situações enunciadas - Terceiro, não devedor, onerou uma coisa de que é proprietário para garantir o pagamento de uma dívida alheia ou Terceiro adquiriu a propriedade já onerada com uma garantia em benefício de outrem -, o credor/exequente, querendo beneficiar da garantia real constituída em seu benefício por um terceiro não devedor, tem de propor a ação executiva contra este.
O art.º 819.º do CC sob a epígrafe “Disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”, prescreve «Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os atos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.»
O citado normativo aplica-se quer às situações em que o bem penhorado pertencia ao devedor/executado, quer àquelas em que o bem penhorado pertence a terceiro, mas está vinculado, pela penhora, à garantia do crédito do exequente.
O que resulta do art.º 819.º, do Código Civil é que, não obstante os atos ali mencionados, a execução prossegue como se os bens penhorados continuassem a pertencer ao devedor/executado, desde que a data da penhora seja anterior àquela em que ocorreu a prática do acto de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.
A inoponibilidade ali prevista significa que o terceiro adquirente não se pode opor a que a execução prossiga contra o seu bem, onerado com a penhora.
Assim, não faz sentido que ele, o terceiro adquirente, tenha que intervir, como “parte”, na execução, não podendo aquele defender que pode ser prejudicado com a execução.
Com efeito, sendo a penhora de imóveis um ato sujeito a registo, quando o terceiro adquire o bem penhorado, não pode alegar desconhecimento da situação real do mesmo e, consequentemente, interferir na marcha do processo executivo, cuja finalidade é a venda do bem penhorado e subsequente pagamento ao credor/exequente.
Ora, resultando dos autos que a exequente, no âmbito da presente execução, registou a seu favor, pela AP. 3326 de 2021/01/06, uma penhora sobre o prédio urbano sito na Rua Heliodoro Salgado, freguesia de Queluz, inscrito na matriz predial urbana sobre o artigo … e descrito na conservatória predial de Queluz sob o número …, propriedade do executado B, e que o identificado imóvel foi adquirido pela sociedade "Traços Dinâmicos, Lda", conforme AP. 1637 de 2021/04/29, esta aquisição, porque posterior à penhora, é inoponível à execução, nos termos do citado art.º 819º do Código Civil.
Ao contrário do entendimento do tribunal “a quo”, in casu, não está em causa uma dívida garantida por hipoteca constituída sobre o imóvel penhorado, mas sim uma dívida garantida por penhora efetuada sobre um imóvel que, à data da instauração da execução e da penhora, se encontravam na esfera jurídica do executado/devedor, e responde pela divida, cf. art.º 817.º, do Código Civil.
Tendo a alienação do imóvel ocorrido posteriormente à data da realização da penhora daquele bem e do respetivo registo, não há que fazer intervir o terceiro adquirente na ação executiva porquanto, em face do disposto no art.º 819.º, do Código Civil, a transmissão do bem é inoponível ao exequente.
Nem faz sentido falar na produção do “efeito útil normal da execução” - que é a venda dos bens do executado e afetação do produto da mesma à satisfação dos créditos do exequente e dos demais credores que tenham vindo reclamar os respetivos créditos na execução - na medida em que a execução prossegue sobre o bem como se este continuasse a pertencer ao executado B.
Em conclusão, o despacho recorrido fez uma errónea aplicação do direito aos factos, não sendo aplicável ao caso dos autos o art.º 818.º do Código Civil e artigo 54.º do CPC, violando, deste modo, o disposto no artigo 819.º do Código Civil, pelo que, na procedência das conclusões impõe-se a revogação do despacho recorrido.
III - Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, decidem revogar a decisão recorrida e ordenar o prosseguimento da execução nos termos requeridos pelo exequente.
Sem custas na apelação.
Notifique.

Lisboa, 27/4/2023
Octávio dos Santos Moutinho Diogo
Cristina da Conceição Pires Lourenço
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira.