Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2672/2007-1
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: TRIBUNAL ARBITRAL
COMPETÊNCIA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1. As decisões - de facto de de direito – dos tribunais arbitrais, têm de ser fundamentadas sob pena de tal falta acarretar a sua nulidade nos termos do artº 23º nº3 e 27º nº1 al. d) da Lei nº31/86 de 29 de Agosto – LAV.
2. É pela análise do modo como o autor delineia a acção - causa de pedir e pedido - na petição inicial que deve aferir-se da (in)competência do tribunal arbitral, devendo, ainda, operar-se uma interpretação do preceito a aplicar que, partindo da sua letra, determine – atentos v.g., os elementos, lógico e teleológico da hermenêutica jurídica - o seu verdadeiro, adequado e sensato sentido, imanente ao pensamento legislativo– artº 12º nº1 do CC.
3. Assim, não obstante estatuir o artº 1º do Regulamento do Centro de Informação Mediação e Arbitragem de Seguros Automóveis que: «o CIMASA visa promover a resolução de litígios emergentes de acidentes de viação dos quais resultem unicamente danos materiais», tal Centro cobra ainda competência para os casos em que, mesmo causando o acidente ferimentos para o reclamante, este por eles não invoca danos nem pelos mesmos impetra qualquer indemnização.
(C.M.)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
1.
A, na sequência de acidente de automóvel em que foi interveniente, apresentou reclamação no Centro de Informação Mediação e Arbitragem de Seguros Automóveis contra a Companhia de Seguros, seguradora do veículo, cujo condutor alega ter embatido, com culpa, no seu.

Peticionou o pagamento da quantia de 9.941,92, posteriormente ampliada para 13.188,87 euros, a título de danos materiais.
Frustrada a conciliação foi o processo remetido para a fase de julgamento arbitral.
Nesta, contestou a requerida excepcionando a incompetência do CIMASA para apreciar o pedido, dado que do sinistro referido resultou um ferido - a reclamante - conforme consta da participação policial.

2.
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento no Tribunal Arbitral do CIMASA.

Finda a produção da prova e conforme se constata a fls.208/210, foram fixados os factos assentes, tendo, designadamente, sido dado como provado que a reclamante sofreu ferimentos – conforme auto de declaração amigável e fotocópia da participação policial.
Pelo que, e atento o disposto no artº 1º do Regulamento de Arbitragem do CIMASA, foi entendido que: «para a questão de decisão das responsabilidade no acidente de viação citado, este tribunal não tem qualquer competência».

3.
Inconformada recorreu a reclamante.

Terminando as suas alegações com a seguintes conclusão:
Por ter o Tribunal Arbitral deixado de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, como sejam a declaração/confissão da reclamante em que não sofreu ferimentos, ainda que ligeiros e apreciar o depoimento da única testemunha a agravada…que inequivocamente salientou não ter sofrido a reclamante ferimentos e que não viu quaisquer sinais de ferimentos, deve a sentença arbitral ser anulada, nos termos do disposto no artº 27º nº1 al. e) da Lei nº31/86 de 29 de Agosto.

Contra-alegou a reclamada pugnado pela manutenção do decidido face à literalidade do artº 1º do Regulamento do CIMASA.

O Sr. Juiz arbitro recebeu o recurso e ordenou a subida oportuna dos autos o que revela a sustentação tácita do decidido.

4.
Sendo que, por via de regra – de que o presente caso não constitui excepção – o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

(in)competência do Tribunal Arbitral (perante o invocado pela reclamante, os factos apurados e a lei aplicável).

5.
Os factos a considerar são os emergentes do relatório supra.

6.
Apreciando.

6.1.
A reclamante funda a sua pretensão no Regulamento do Centro de Informação Mediação e Arbitragem de Seguros Automóveis –CIMASA.

Este Regulamento foi elaborado:
«No quadro da Lei nº 32/86 de 29 de Agosto e do DL nº425/86 de 27 de Dezembro e resultou de um protocolo estabelecido entre o Ministério da Justiça, a Presidência do Conselho de Ministros a APS-Associação Portuguesa de Seguradores, a DECO-Associação Portuguesa Para a Defesa do Consumidor e o ACP- Automóvel Club de Portugal.»

Nos termos do seu artº 1º nº 1:
«O CIMASA…visa promover a resolução de litígios emergentes de acidentes de viação dos quais resultem unicamente danos materiais.»

A recorrente funda a sua pretensão na nulidade da decisão porque esta terá deixado de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, como sejam a declaração/confissão da reclamante em que não sofreu ferimentos, ainda que ligeiros e apreciar o depoimento da única testemunha a agravada…que inequivocamente salientou não ter sofrido a reclamante ferimentos e que não viu quaisquer sinais de ferimentos.
Porém e como facilmente é atingível, tal pretensa actuação do tribunal não consubstancia omissão de pronúncia da sentença arbitral.
Antes se prende com a decisão sobre a matéria de facto nela dada como provada e com a sua fundamentação.
Pois que, bem vistas as coisas, o que a recorrente pretende significar é que não devia ser dado como provado que ela sofreu ferimentos, já que não obstante tal ter sido mencionado em documentos juntos aos autos, foi contrariado e infirmado pela reclamante e por testemunha.
Tendo, assim, ocorrido uma errada apreciação da prova com consequente inexactidão dos factos dados como assentes e posteriormente considerados.
Só que, não impugnado ela a matéria de facto na forma legal, nem constando nos autos os elementos de prova que pudessem permitir a este tribunal ad quem operar a sua reapreciação, há que manter o acervo factual atendido pelo tribunal recorrido.

Diga-se, todavia, que a decisão recorrida não prima pela perfeição no que à decisão de facto tange, rectius, no atinente à sua fundamentação, na medida em que deu como provados certos factos sem que, de seguida, plasmasse a sua fundamentação probatória.
Podendo, assim, perspectivar-se a sua nulidade nos termos do artº 23º nº3 e 27º nº1 al. d) da Lei nº31/86 de 29 de Agosto –LAV – cfr. neste sentido, o Acs. da Relação de Lisboa de 02.10.2006 e do STJ de 15.05.2007, in dgsi.pt, p.1465/2006-2 e 07A924, respectivamente.
Todavia e no que ao presente recurso concerne – maxime quanto à prova ou não prova dos ferimentos da reclamante -, o Sr. Juiz a quo, já em sede de decisão de direito, fundamentou a prova de tais ferimentos nos documentos juntos aos autos, a saber: o auto de declaração amigável e a participação policial.
O que, neste particular, basta para afastar tal nulidade.

6.2.
Não obstante a pretensão da recorrente não poder proceder pelo fundamento por ela invocado, importa apurar se, mesmo assim, a decisão recorrida deverá, ou não, manter-se, em face da lei aplicável e da interpretação que dela se pode considerar mais sensata e razoável, sendo certo que, como é consabido, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – artº 664º do CPC.

Vejamos.
A competência do tribunal arbitral para cada caso concreto depende da vontade das partes expressa numa convenção de arbitragem, modificativa da competência atribuída aos tribunais judiciais.
O tribunal arbitral nasce para dirimir um conflito determinado pelas partes e tem todos os poderes para conhecer da questão – ou questões – que lhe é submetida pelas partes.
Deste modo, é a convenção de arbitragem que delimita o âmbito da competência do tribunal arbitral.
Assim, a fonte dos poderes dos árbitros e seus limites resultam da convenção de arbitragem – cfr. Ac. da Relação de Lisboa de 24.11.2005, in dgsi.pt, p.10593/2005-6.

No caso sub judice certo é que o referido artº 1º nº1 do Regulamento do CIMASA parece restringir a competência do tribunal arbitral à resolução de litígios emergentes de acidentes de viação dos quais resultem unicamente danos materiais.

Este segmento normativo tem, como qualquer outro que se pretende aplicar a uma concreta situação, de ser interpretado, pois que a interpretação é sempre necessária – cfr. Oliveira Ascensão in O Direito, 2ª edição, p.349.
Ou seja, partindo da letra da norma, importa determinar - atentos, designadamente, os elementos, lógico e teleológico da hermenêutica jurídica - o seu verdadeiro e adequado sentido, imanente ao pensamento legislativo– artº 12º nº1 do CC.
Assim sendo, in casu, há que concluir que com tal normativo o que se pretendeu foi limitar a intervenção do tribunal arbitral à resolução de casos em que a pretensão do reclamante se confine ao impetramento de uma indemnização por danos patrimoniais.
Tendo-se pretendido excluir os danos não patrimoniais, decorrentes da afectação de direitos da personalidade.
Exclusão esta que, estamos em crer, radica, pelo menos em parte, na complexidade que, normalmente, a análise e dilucidação de tais prejuízos acarreta, o que implicaria uma maior morosidade instrutória e decisória que não se compadece com a natureza e a pretensão de agilização e celeridade ínsita aos tribunais arbitrais.
Note-se que a decisão tem de ser prolatada no prazo de seis meses, cujo desrespeito pode acarretar, inclusive, a responsabilização pessoal dos árbitros pelos danos do atraso decorrentes – artº 19º nºs 2 e 5 da LAV.
Assim e partindo do princípio que se do acidente rodoviário sobrevierem prejuízos decorrentes da afectação de direitos pessoais, o respectivo lesado impetrará, sempre ou por via de regra, a sua indemnização, o legislador, quiçá cautelosamente, apenas se referiu aos danos materiais.
Contudo há que atentar nos casos em que o reclamante, mesmo que tenha sofrido prejuízos e sido lesado a nível físico e/ou pessoal, renuncie à indemnização nesta vertente ou simplesmente deixe de a peticionar no tribunal arbitral, cingindo-se apenas aos danos materiais.
Nestas situações não se alcança razão para excluir a competência do tribunal arbitral, pois que objecto do processo nele instaurado, está limitado -auto-limitado – e inserto no legalmente permitido.
Na verdade deve ser pela análise do modo como o autor delineia a acção na petição inicial e não, também e designadamente, em função da sorte ou resultado final da mesma, que deve aferir-se da (in)competência do tribunal arbitral– cfr. Ac. da relação de Lisboa de 15.05.2007, dgsi.pt, p.1473/2007-1

Ora no caso em apreço, certo é que a reclamante nunca invocou danos físicos ou pessoais e nunca peticionou indemnização a eles atinente, mas apenas e tão somente impetra indemnização pelos danos materiais sofridos na sua viatura.
Negando, inclusive, a ocorrência de tais danos físicos no acidente.
Destarte e porque nem o pedido nem a causa de pedir se reportam a danos que não sejam de cariz material e patrimonial, é completamente irrelevante, dispiciendo e inócuo, designadamente para determinar a competência do tribunal, que se tenha provado que ela sofreu ferimentos, até porque nem sequer se apurou se dos mesmos resultaram danos, ou, aqui ainda concedendo, danos relevantes e com dignidade para serem indemnizáveis.

7.
Decisão.
Termos em que se acorda – posto que com fundamento diverso – julgar procedente o recurso e, consequentemente, declarar a competência do tribunal arbitral para apreciar e decidir.
Custas pela reclamada.
Lisboa, 2007.06.19.
Carlos António Moreira
Isoleta Almeida Costa
Maria Rosário Gonçalves