Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
610/22.5YLPRT.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
TÍTULO ESPECIAL DE DESPEJO
SUSPENSÃO DA ENTREGA DO LOCADO
VIGÊNCIA DA LEI Nº 1-A/2020
DE 19/3
SUSPENSÃO NOS TERMOS DO NRAU
PRESSUPOSTOS E ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Não tendo a Lei nº 1-A/2020, de 19-03 sido revogada, mantém-se a mesma em vigor, nomeadamente no que respeita ao seu art.º 7º, nº 6.
II- A procedência do incidente de suspensão da entrega do locado, seja nos termos previstos no art.º 7º, nº 6, al. c) da Lei 1-A/2020, seja nos termos previstos no art.º 15º-M, nº 2 do NRAU depende da alegação e prova, pelo detentor do imóvel (ex-arrendatário) dos factos que integram os pressupostos de tal suspensão.
III- O ónus da alegação e prova de tais factos incide sobre o detentor do imóvel (art.º 342º, nº 2 do CC), e o momento próprio para a apresentação dos meios de prova com vista à demonstração de tais factos é o da dedução do mesmo incidente (art.º 293º, nº 1 do CPC).
IV - Não sendo tal prova apresentada nesse momento, cumpre ao juiz proferir decisão imediata (art.º 295º do CPC), julgado o incidente improcedente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
Em 25-03-2022 A intentou procedimento especial de despejo B, tendo por objeto o imóvel sito na Rua …, Vale da Amoreira. Para tanto juntou contrato de arrendamento relativo a tal imóvel[1], e celebrado com a requerida, bem como cópia de comunicação de não renovação do mesmo contrato, com efeitos a partir de 30-11-2021.
Notificada a requerida, a mesma deduziu oposição pelo que o procedimento foi remetido ao Tribunal apelado.
No desenvolvimento da causa, não tendo a requerida pago a taxa de justiça devida pela apresentação da oposição, nem feito prova da apresentação de requerimento de apoio judiciário ou de decisão que o tivesse concedido, em 07-10-2022 foi proferido despacho com o seguinte teor:
 “Não tendo o Réu procedido ao pagamento da taxa de justiça e da multa em falta, nos termos previstos nos artigos 570.º, n.º 3 e 5, do Código de Processo Civil, ao abrigo do disposto no artigo 570.º, n.º 6, desse mesmo diploma, ordena-se o desentranhamento (físico e electrónico) da oposição.
Não havendo oposição válida, devolva-se ao BNA para os autos aí prosseguirem os seus normais trâmites.”
Remetidos os autos, de novo, ao Balcão Nacional do Arrendamento, para execução da desocupação do locado, foi emitido título de desocupação do locado[2].
Notificada a requerida da emissão de tal título[3], e ainda antes de ter sido levada qualquer diligência para desocupação do locado, em 22-12-2022 a requerida apresentou requerimento com o seguinte teor:
B, tendo sido interpelada para proceder à entrega das chaves da casa de morada de família até 19 de Janeiro de 2023, com base no douto despacho que se junta sob a forma de parecer, como Doc. 1, sustentando que a Lei 1 - A/2020, de 19/3 mantem-se em vigor e por força da mesma ficam suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo… relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família,
Vem Requerer a Vexa se digne ordenar a imediata suspensão da execução para salvaguarda da casa de morada de família acrescentando-se a colocação do agregado familiar na rua faz que os filhos menores com 15, 13, 7 e 3 anos de idade fiquem em perigo de vida o de 15 com problemas de asma e o progenitor com reumatismo agravado o que conjugado com dificuldades financeiras faz periclitar a vida dos 6 membros.”[4]
Tal requerimento foi apreciado por despacho proferido em 23-01-2023[5], com o seguinte teor[6]:
“REF. 44218113:
Vem a Requerida requerer a suspensão da desocupação do locado.
Para tal invoca o disposto na Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, assim como que a colocação do agregado familiar na rua faz com que os filhos menores de 15,13,17 e 3 anos de idade fiquem em risco de vida, tendo o de 15 anos problemas de asma e o progenitor reumatismo agravado.
Nos termos do disposto no artigo 15.º-M do NRAU:
“[…]
(…)
No caso, ainda não foram concretizadas quaisquer diligências executórias do despejo, pelo que não poderia a Sra. Agente de Execução suspender as diligências executórias nos termos previstos no transcrito artigo, seguindo-se os trâmites aí previstos.
Por outro lado, a Requerente não junta qualquer prova do seu agregado familiar, dos alegados problemas de saúde dos seus membros e muito menos um risco de vida para algum deles.
Quanto à aplicação do disposto na Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, há que ter em consideração que a referida Lei visou a “ratificação dos efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março” (primeiro diploma a estabelecer medidas excepcionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus - COVID 19) e a “aprovação de medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19” (artigo 1.º) [sublinhado e negritos nossos].
Embora a Requerida não especifique a norma em causa, presume-se estar em causa o disposto no artigo 6.º-E, com a epígrafe “Regime processual excepcional e transitório” [negrito e sublinhados nossos] e que tem aplicação “no decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” [negrito e sublinhados nossos].
Nos termos do n.º 7, al. c), desse artigo, “ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo […] os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa” [negrito e sublinhados nossos].
Quanto à questão da revogação da referida norma há que ter em consideração que, nos termos do disposto no artigo 7.º do Código Civil:
“(…)”.
Reportando-nos à norma em causa, é manifesto que a mesma tinha uma vigência excepcional e transitória, justificada pela necessidade de mitigação dos efeitos da pandemia por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
Concretamente, no que aos despejos diz respeito, a suspensão dos despejos (verificados os requisitos acima mencionados) era compensada por apoios financeiros também eles excepcionais aos senhorios.
Esses apoios já não se encontram em vigor e a grande maioria das normas excepcionais de mitigação dos efeitos da pandemia já foram revogadas expressamente, as últimas delas pelo Decreto-Lei n.º 66-A/2022, que refere expressamente, no seu preâmbulo:
“Desde o início da pandemia da doença COVID-19, o Governo tem vindo a adoptar uma série de medidas de combate à pandemia, seja numa perspectiva sanitária, seja nas vertentes de apoio social e económico às famílias e às empresas, com o intuito de mitigar os respectivos efeitos adversos.
Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas.
Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 consubstanciou-se num número significativo de decretos-leis com medidas aprovadas com o objectivo de vigorar durante um período justificado.
Neste contexto, através do presente decreto-lei, procede-se à clarificação dos decretos-leis que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que actualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de decretos-leis já caducos, anacrónicos ou ultrapassados pelo evoluir da pandemia.
[…]” [sublinhados nossos]
Tal Decreto-Lei não procedeu à revogação da Lei n.º 1-A/2020, obviamente porque um Decreto-Lei do Governo não pode revogar uma Lei da Assembleia da República.
Mas é manifesto do mesmo o entendimento (que resultava já do conhecimento generalizado) que o período durante o qual se justificavam as medidas excepcionais e transitórias já terminou, consequência do evoluir positivo da situação epidemiológica.
Pelo que, nos termos do transcrito artigo 7.º, n.º 1, a contrario, do Código Civil, a Lei n.º 1-A/2020 deixou de vigorar porque findou o período da sua vigência temporária.
Assim, a Sr. Agente de Execução tem toda a legitimidade para prosseguir com as diligências tendentes à efectiva desocupação, particularmente com utilização dos expedientes previstos no artigo 15.º-J, n.º 3, ex vi artigo 15.º-L, n.º 5, do NRAU, caso não se verifique a colaboração da Requerida e da sua família, isto tudo sem prejuízo de se assegurar a colaboração do Instituto da Segurança Social para assegurar a acomodação da Requerida e seus outros familiares, caso se verifique carência económica.
Note-se que os direitos de personalidade, nomeadamente de reserva da intimidade da vida privada, não são inatingíveis, tendo de se acautelar um equilíbrio entre esses e os direitos reais dos senhorios, o qual é alcançado por via normativa. Particularmente, a Requerida, citada em 13/05/2022, teve já várias oportunidades tanto para se opor ao despejo como para proceder à entrega voluntária do locado (diligenciando previamente pela obtenção de nova habitação para o seu agregado familiar), pelo que não poderá continuar a obstar à efectivação dos direitos da Requerente sobre o mesmo, sua propriedade.
Pelo exposto, por falta de fundamento legal, indefere-se a requerida suspensão da desocupação do locado.
(…)”
Inconformada com tal decisão, veio requerida interpor o presente recurso, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:
1ª O presente processo teve origem numa ação de despejo intentada no Balcão Nacional do Arrendamento na qual a Executada deduziu a competente Oposição tendo sido proferida sentença já transitada em julgado.
2ª Sucedeu que foi ordenado o prosseguimento da entrega judicial da habitação o que fez com que de imediato a ora Recorrente invocando a vigência da Lei 1-A/2020, de 19/3 solicitou que com base no aí disposto de que ficam suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo…relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família. 
3ª Contrariamente a uma eventual tese de que tal pedido não pode ser deferido por alegadamente não se estar no âmbito de um processo executivo ou de insolvência.
4ª Inexistem dúvidas de que está alegado e demonstrado que se trata de casa de morada de família onde a Recorrente reside, sem ter outra habitação, com o companheiro e quatro filhos menores tal como foi alegado e demonstrado, assim se contrariando o despacho recorrido segundo o qual “a Requerente não junta qualquer prova do seu agregado familiar, dos alegados problemas de saúde dos seus membros e muito menos um risco par algum deles. Recorde-se que para além da documentação junta no AJ, em 21/12/2022 foi alegada a factualidade em causa.
5ª Mais, contrariamente ao sustentado no despacho recorrido o DL nº 66-A/2022, de 30/9 que determina a cessação da vigência de diversos diplomas publicados no âmbito da pandemia. Mas não revogou aquela Lei nº 1 A/2009, de 19 de março, que assim se mantem em vigor. Ainda se poderia perguntar se a intenção de fugir à aplicação do regime do processo executivo em manifesto abuso de direito deverá impedir o morador de ver protegida a casa de morada de família?
6ª A fundamentação da sentença, como a de qualquer outra decisão judicial, sendo exigência muito antiga, tem actualmente assento constitucional. De facto, art.º 205º nº 1 da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Não se trata de mera exigência formal, já que a fundamentação cumpre uma dupla função: de carácter objetivo - pacificação social, legitimidade e autocontrole das decisões; e de carácter subjetivo - garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários.  
7ª A fundamentação da douta sentença recorrida afigura-se contrária com os fundamentos na medida em que:
8ª As decisões judiciais sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.
9ª A falta de fundamentação gera a nulidade do despacho ou da sentença. Tratando-se da decisão sobre a matéria de facto, pode determinar-se em recurso a baixa do processo a fim de que o tribunal da 1ª instância a fundamente.
10ª Por outro lado, a douta sentença não faz uma análise crítica, nem completa nem mínima, da versão apresentada pelo A, limitando-se a reproduzir um conjunto de considerações que são válidas para “N” ações, mas que não consubstanciam minimamente o cumprimento do imposto.
11ª Prescreve, então e no que ora nos interessa, o artigo 334.º do C.C., primeira fonte do instituto do Abuso de Direito, que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. 
12ª Quer-se, pois, tutelar ou permitir uma válvula de escape perante um determinado modo de exercício de direito ou direitos, que, apresentando-se formal e aparentemente admissível, redunda em manifesta contrariedade à ordem jurídica.
13ª Há abuso de direito quando um determinado direito – em si mesmo válido –, é exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social (Ac. RL, de 16 de Maio 1996, processo nº 0012472, sumário em dgsi.pt).
Rematou as suas conclusões nos seguintes termos:
“(…) deve o presente Recurso ser admitido, com efeito suspensivo e subindo nos próprios autos, julgado procedente por provado, revogando-se o despacho recorrido, ordenando-se a suspensão das diligências de despejo do locado.”
A apelada não apresentarou contra-alegações.
O Tribunal a quo admitiu o recurso, que qualificou como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo. Nesse mesmo despacho concluiu que a decisão apelada não padece das nulidades invocadas pela apelante.
Remetidos os autos a este Tribunal, e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[7]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[8].
Assim sendo, e uma vez que nas suas alegações a apelante invocou a exceção de abuso do direito, exceção essa que só neste momento foi suscitada[9], a oportunidade dessa invocação poderá ser questionada.
Como é sabido, o abuso do direito obsta ao exercício do mesmo, ou seja, constitui uma causa impeditiva, pelo que configura uma exceção perentória – art.ºs 334º do CC, e 576º, nº 3 do CPC.
Contudo, estabelece o art.º  573º do nº 1 do CPC que “toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado”, acrescentando o nº 3 do mesmo preceito que “Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes, e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente”.
O preceito citado consagra o princípio da concentração da defesa, do qual decorre que o demandado deve deduzir na contestação ou oposição todos os meios de defesa que tenha ao seu alcance, sob pena de preclusão dos mesmos.
Não obstante, a lei processual consagra quatro exceções a esse princípio:
- os incidentes que devem ser deduzidos em separado;
- os meios de defesa supervenientes, ou seja, os fundados em factos que se verifiquem depois de esgotado o prazo para contestar ou deduzir oposição (superveniência objetiva), ou de que o demandado só tenha conhecimento depois de esgotado esse prazo (superveniência subjetiva);
- os meios de defesa que a lei expressamente admita após tal momento;
- os meios de defesa de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente.
Como decorrência deste princípio, a doutrina e a jurisprudência têm sublinhado que os recursos não servem para apreciar questões (de direito ou de facto) novas, mas apenas reapreciar questões já debatidas.
Nessa medida, bem aponta ABRANTES GERALDES[10], “A natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Segundo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos um modelo de reponderação que vis o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”
Por seu turno sustenta FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA[11]: “No nosso sistema processual (no que concerne à apelação e à revista) predomina o «esquema do recurso de reponderação: o objeto do recurso é a decisão impugnada, encontrando-se à partida, vedada a produção de efeitos jurídicos “ex-novo”. Através do recurso, o que se visa é a impugnação de uma decisão já ex ante proferida, que não o julgamento de uma qualquer questão nova.”
RUI PINTO[12] sintetiza os efeitos práticos do sistema de reponderação nos seguintes termos: “não se admitem nem novos factos, nem novos fundamentos de ação ou de defesa, nem novas provas. A estes recursos dá-se a qualificação de recursos de reponderação: a decisão impugnada é reavaliada no quadro do seu próprio objeto e em razão dos seus vícios específicos, pelo que o objeto do pedido é na parte da revogação a própria decisão e na substituição a matéria que fora objeto da decisão revogada, tal e qual fora conhecida pelo tribunal a quo.”
Este entendimento foi amplamente acolhido pela jurisprudência. Como se refere no ac. STJ de 07-07-2016 (Gonçalves Rocha), p.156/12.0TTCSC.L1.S1, “Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação”. – No mesmo sentido, cfr. RC 14-01-2014 (Mª Inês Moura), p. 154/12.3TBMGR.C1, e RP 16-10-2017 (Miguel Baldaia de Morais), p. 379/16.2T8PVZ.P1.
Mas precisamente porque a lei processual admite a invocação de exceções de conhecimento oficioso após a contestação, a jurisprudência tem sublinhado que essas questões podem ser suscitadas apenas em sede de recurso – neste sentido cfr. ac. STJ 17-11-2016 (Ana Luísa Geraldes), p. 861/13.3TTVIS.C1.S2.
No caso em apreço, é inegável que só nas alegações de recurso é que a requerida e ora apelante veio suscitar a exceção de abuso do direito.
Contudo, a jurisprudência tem entendido que colhendo a figura do abuso de direito o seu fundamento em princípios de ordem pública (art.º 334º do CC), a mesma constitui uma exceção de conhecimento oficioso (art.º 579º do CPC), e que por tal razão pode ser invocada pela primeira vez em sede de alegações perante a Relação, no âmbito de recurso de apelação [vd. acs. STJ 21-09-1993 (Fernando Fabião), p. 083983; STJ 01-07-2004 (Salvador da Costa), p. 04B4671; STJ 28-11-2013 (Salazar Casanova), p. 161/09.3TBGDM.P2.S1; STJ 14-07-2018 (João Camilo), p. 1530/15.5T8STS-C.P1.S1; e STJ 12-07-2018 (Rosa Ribeiro Coelho), p. 2069/14.1T8PRT.P1.S1], ou mesmo perante o Supremo em alegações de recurso de revista [cfr. acs. STJ 09-10-2001 (Araújo de Barros), p. 02B749 e STJ 04-04-2002 (Araújo de Barros), p. 02B749][13].
Assim sendo, cumpre conhecer da invocada exceção de abuso do direito.
Contudo, como bem apontou o ac. RG 04-10-2018 (Jorge Teixeira), p. 1047/14.5TBGMR-A.G1 não obstante deva apreciar oficiosamente a mencionada exceção, “isso não significa que o Tribunal considere ocorrido o abuso de direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos”.
Em consequência, as questões essenciais a apreciar decidir na presente apelação são as seguintes:
a) A nulidade da decisão recorrida – Conclusões 6ª a 10ª;
b) A suspensão da entrega do locado nos termos previstos no art.º 6º-A, nº 7, al. c) da Lei 1-A/2020 – Conclusão 5ª;
c) A suspensão da entrega do locado nos termos previstos no art.º 15º-M do NRAU – Conclusões 3ª e 4ª
3. Fundamentação
3.1. Os factos
A decisão apelada não contém qualquer elenco de factos provados e não provados.
Não obstante, sempre se dirá que para além do já descrito no relatório, da decisão apelada resulta igualmente que o Tribunal a quo considerou não provados todos os factos alegados no requerimento que deu início ao incidente de suspensão da entrega do locado, e que são os seguintes:
1. A requerente tem 4 filhos, de 15, 13, 7, e 3 anos de idade;
2. A requerente reside no imóvel locado juntamente com os seus filhos e o pai destes;
3. O filho da requerente que tem 15 anos de idade sofre de asma;
4. O pai dos filhos da requerente sofre de reumatismo agravado;
5. A requerente e a sua família sofrem de “dificuldades financeiras”;
6. A execução da entrega do locado colocará a requerente, os seus filhos, e o pai destes em perigo de vida.
As razões pelas quais entendemos que o Tribunal a quo considerou estes factos como não provados serão expostas adiante, no ponto 3.2.1.1.[14]
3.2. Os factos e o Direito
3.2.1. Das nulidades do despacho recorrido
3.2.1.1. Da falta de fundamentação
Nos termos do disposto no artigo 615º, nº1, alínea b) do CPC, a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
O preceito em causa é aplicável, com as necessárias adaptações, aos despachos – art.º 613º, nº 3, 2ª parte, do CPC.
O vício em questão reside na violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no art.º 208º, nº 1 da Constituição da República, e no art.º 154º, do CPC.
Dispõe o nº 1 deste preceito que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
E acrescenta o nº 2 que “a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Esta disposição que o dever de fundamentação das decisões judiciais conhece diferentes graus, consoante o tipo de decisão a proferir e a sua complexidade.
O grau máximo da exigência legal de fundamentação das decisões judiciais é representado pela sentença em ação contestada (art.º 607º, nºs 3 e 4 do CPC), sendo a lei processual menos exigente, por exemplo, no caso das ações não contestadas (vd. art.º 567º, nº 3 do CPC), nas decisões relativas aos incidentes da instância e procedimentos cautelares (art.ºs 295º e 365º, nº 2 do mesmo Código[15]), e nos despachos interlocutórios em que não tenha sido deduzida oposição e a questão a proferir seja manifestamente simples (art.º 154º, n.º 2 do CPC).
Não obstante, não será qualquer infração ao dever de fundamentação que configura a nulidade em apreço.
Com efeito, a doutrina e a jurisprudência têm salientado com insistência que tal vício só se verifica em situações de falta absoluta ou total ininteligibilidade da indicação das razões de facto e de Direito que justificam a decisão e não também quando tais razões constem da sentença, mas de tal forma que pela sua insuficiência, laconismo ou mediocridade, se deve considerar a fundamentação deficiente.
Com efeito, já ALBERTO DOS REIS[16], ensinava que «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.»
Por outro lado, como bem salientou TOMÉ GOMES [17], «(…) a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão7.»
No mesmo sentido se pronunciou o ac. STJ de 26-04-1995 (Raul Mateus), CJ 1995 – II, p. 58[18], “(...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância.”
Em sintonia com tal entendimento vd. ac. STJ 15-12-2011 (Pereira Rodrigues), p. 2/08.9TTLMG.P1 [19] onde se sustentou que o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação não ocorre em situações de escassez, deficiência, ou implausibilidade das razões de facto e/ou direito indicadas para justificar a decisão, mas apenas quando se verifique uma total falta de motivação que impossibilite o escrutínio das razões que conduziram à decisão proferida a final.
No fundo, como lapidarmente se consignou no sumário do ac. STJ 02-06-2016 (Fernanda Isabel Pereira), p. 781/11.6TBMTJ.L1.S1, “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.”
E porque assim é, concluímos, como fez o ac. RL 17-05-2012 (Gilberto Jorge), p. 91/09.9T2MFR.L1-6, em cujo sumário se pode ler que “A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (…)”.
A exigência do caráter absoluto da falta de fundamentação incide separadamente sobre os fundamentos de facto e os fundamentos de Direito. Tal significa que se uma sentença ou despacho que aprecie uma questão de Direito suscitada pelas partes contiver a indicação dos factos em que se estriba, mas for absolutamente omissão quanto às razões de Direito que a sustentam, será nula. E o inverso é igualmente verdadeiro: a mesma decisão será nula se contiver a indicação das razões de Direito que a determinam, mas for absolutamente omissa quanto aos factos que a sustentam.
No caso vertente, se bem interpretamos as conclusões de recurso, à luz da respetiva motivação, sustentou a apelante que a decisão apelada é nula, por falta de fundamentação, por não conter a indicação dos factos em que se sustentou (conclusão 9ª), e porque “não faz uma análise crítica, nem completa nem mínima, da versão apresentada pelo A (…)” (conclusão 10ª).
Apreciemos então.
Antes de mais, importa ter presente que a decisão apelada dirimiu um incidente de suspensão da desocupação do locado.
Tendo a apelante invocado, aquando da dedução do mencionado incidente, o disposto na Lei nº 1-A/2020, de 19-03, e muito embora não tenha referido qual ou quais dos preceitos desta lei, no seu entender, sustentavam aquela pretensão, cremos que só pode estar em causa o art.º 6º-E, nº 7, al. c), que dispõe que:
“Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;”.
Não dispondo a mencionada lei sobre a forma como o arrendatário pode exercer este direito potestativo à suspensão da entrega do locado, só pode concluir-se que ´tal exercício se traduz na dedução de um incidente da instância, inominado, cuja tramitação se acha prevista nos art.ºs 292º a 295º do CPC.
Trata-se, assim, de um incidente declarativo, de tramitação simplificada, “enxertado” na tramitação da ação judicial ou procedimento judicial de despejo.
Serve este excurso para significar que no caso em apreço, a medida do dever de fundamentação a que já fizemos referência é significativamente menos exigente do que no caso da sentença proferida em ação contestada após produção de prova em audiência final.
No caso vertente, é manifesto que a decisão apelada não contém um elenco formal de factos provados e não provados.
Contudo, importa ter presente que o Tribunal a quo considerou inaplicável ao caso dos autos o mecanismo legal a que nos vimos referindo, por entender que, aquando da dedução do incidente, a Lei nº 1-A/2020 já não estava em vigor. Donde, perante este entendimento, seria desnecessário enunciar, de modo explícito e separado, os factos alegados pela apelante, que considerava provados e não provados.
Não obstante, o certo é que da leitura da decisão apelada resulta de forma clara que o Tribunal a quo considerou não provados todos os factos invocados no requerimento inicial do incidente em apreço.
Com efeito, como já referimos, no requerimento que deu início ao incidente, alegou a apelante que:
- O locado constitui a “casa de morada da sua família”;
- “tem filhos menores com 15, 13, 7, e 3 anos”;
- O seu filho/a “de 15 anos” sofre de “problemas de asma”;
- O progenitor tem “reumatismo agravado”;
- O agregado familiar tem “dificuldades financeiras”;
- Por todas as razões expostas, “a colocação do agregado familiar na rua” “faz periclitar a vida dos 6 membros”.
Ora, no penúltimo parágrafo da 1ª página da decisão apelada escreveu o referido Tribunal que “A Requerente não junta qualquer prova do seu agregado familiar, dos alegados problemas de saúde dos seus membros e muito menos um risco de vida para algum deles”.
Da leitura deste trecho só pode resultar a conclusão de que o Tribunal a quo considerou não provados todos os factos acima enunciados.
Tanto basta, em nosso entender, para concluir que a decisão apelada não padece de nulidade por falta de fundamentação, decorrente da omissão da indicação dos factos que considerou provados e não provados.
No que respeita à fundamentação de Direito, verifica-se que ao longo de três páginas, o Tribunal a quo expôs as razões pelas quais considerava que à data da dedução do incidente dos autos a Lei nº 1-A/2020 já não se encontrava em vigor. Tal entendimento dispensava o Tribunal a quo de analisar os fundamentos de facto invocados pela apelante, mas ainda assim, como vimos, o Tribunal a quo não deixou de assinalar, ainda que de forma indireta, que considerava não provados os factos alegados pela apelante.
Termos em que se conclui que a decisão apelada também não é nula por falta de fundamentação de Direito.
A decisão apelada não padece, pois, da nulidade a que se reporta o art.º 615º, nº 1, al. b) do CPC.
3.2.1.2. Da contradição entre os fundamentos e a decisão
Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. c) do CPC que a sentença é nula “quando os fundamentos estejam em contradição com a decisão, ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Como ensinava ALBERTO DOS REIS[20], a sentença ou acórdão serão obscuros quando neles se contenha “algum passo cujo sentido seja ininteligível” ou cujo sentido exato não se logre alcançar. Já a ambiguidade ocorre quando “alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”.
Por seu turno, sustenta MANUEL TOMÉ SOARES GOMES[21]:
“segundo o artigo 607º, nº 3, parte final, o juiz na sentença deverá concluir pela decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação discursiva entre:
· A base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável – a dita premissa maior;
· A factualidade dada como provada – a dita premissa menor; e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro normativo.
Entre tais premissas e conclusão deve existir portanto um nexo lógico que permita, no limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa relação de exclusão lógica. Na verdade, sobre dois termos excludentes nem tão pouco é possível formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de uma relação de mera inconcludência, sobre a qual é possível formular um juízo de demérito.
Ora, a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da acção.”
Finalmente, dizem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[22]:
“9. A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.
10. A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.”
No caso vertente, sustentou a apelante que “a fundamentação da douta sentença recorrida afigura-se contrária com os fundamentos”[23], mas não esclarece por que razão entende que tal contradição se verifica.
Pela nossa parte, não descortinamos qualquer incoerência lógica entre os pressupostos da decisão (a inaplicabilidade da Lei 1-A/2020), e aquilo que se decidiu (julgar o incidente improcedente). Assim sendo, concluímos que a decisão apelada não padece da invocada nulidade.
3.2.2. Da suspensão da entrega do locado nos termos previstos no art.º 6º-A, nº 7, al. c) da Lei 1-A/2020
Como já referimos, o incidente deduzido pela apelante estribou-se no disposto no art.º 6.º E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 13-B/2021, de 05-04.
Estabelece a referida disposição legal que “Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
(…)
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
(…)”.
O Tribunal a quo considerou que a Lei nº 1-A/2020 já não está em vigor, sustentado na seguinte argumentação:
“Quanto à aplicação do disposto na Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, há que ter em consideração que a referida Lei visou a “ratificação dos efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março” (primeiro diploma a estabelecer medidas excepcionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus - COVID 19) e a “aprovação de medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19” (artigo 1.º) [sublinhado e negritos nossos].
Embora a Requerida não especifique a norma em causa, presume-se estar em causa o disposto no artigo 6.º-E, com a epígrafe “Regime processual excepcional e transitório” [negrito e sublinhados nossos] e que tem aplicação “no decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID19” [negrito e sublinhados nossos].
Nos termos do n.º 7, al. c), desse artigo, “ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo […] os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa” [negrito e sublinhados nossos].
Quanto à questão da revogação da referida norma há que ter em consideração que, nos termos do disposto no artigo 7.º do Código Civil:
“1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.
2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
[…]”.
Reportando-nos à norma em causa, é manifesto que a mesma tinha uma vigência excepcional e transitória, justificada pela necessidade de mitigação dos efeitos da pandemia por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
Concretamente, no que aos despejos diz respeito, a suspensão dos despejos (verificados os requisitos acima mencionados) era compensada por apoios financeiros também eles excepcionais aos senhorios.
Esses apoios já não se encontram em vigor e a grande maioria das normas excepcionais de mitigação dos efeitos da pandemia já foram revogadas expressamente, as últimas delas pelo Decreto-Lei n.º 66-A/2022, que refere expressamente, no seu preâmbulo:
“Desde o início da pandemia da doença COVID-19, o Governo tem vindo a adoptar uma série de medidas de combate à pandemia, seja numa perspectiva sanitária, seja nas vertentes de apoio social e económico às famílias e às empresas, com o intuito de mitigar os respectivos efeitos adversos.
Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas. 
Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 consubstanciou-se num número significativo de decretos-leis com medidas aprovadas com o objectivo de vigorar durante um período justificado.
Neste contexto, através do presente decreto-lei, procede-se à clarificação dos decretos-leis que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que actualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de decretos-leis já caducos, anacrónicos ou ultrapassados pelo evoluir da pandemia.
[…]” [sublinhados nossos]
Tal Decreto-Lei não procedeu à revogação da Lei n.º 1-A/2020, obviamente porque um Decreto-Lei do Governo não pode revogar uma Lei da Assembleia da República.
Mas é manifesto do mesmo o entendimento (que resultava já do conhecimento generalizado) que o período durante o qual se justificavam as medidas excepcionais e transitórias já terminou, consequência do evoluir positivo da situação epidemiológica.
Pelo que, nos termos do transcrito artigo 7.º, n.º 1, a contrario, do Código Civil, a Lei n.º 1-A/2020 deixou de vigorar porque findou o período da sua vigência temporária.”
Sobre a mesma matéria disse J. H. DELGADO DE CARVALHO[24]:
“1. O DL 66-A/2022, de 30/9, revogou a maioria do corpo normativo estabelecido pelo DL 10-A/2020, de 13/3. A produção de efeitos da L 1-A/2020, de 19/3 (que prevê medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS- CoV -2 e da doença COVID-19), é reportada à data da produção de efeitos do DL 10-A/2020 (cf. art. 10.º L 1-A/2020). Este é um argumento para se poder considerar revogada tacitamente a L 1-A/2020, e, por conseguinte, o Regime Processual Excecional e Transitório previsto no art.º 6.º-E deste diploma legal.
Só que as normas estabelecidas pelo DL 10-A/2020 relativas a atos e diligências processuais e procedimentais (ou seja, os seus art.ºs 14.º, 15.º e 15.º-A) já haviam sido revogadas pelo art.º 9.º DL 78-A/2021, de 29/9. Deste modo, o argumento de que a L 1-A/2020 foi revogada tacitamente pelo DL 66-A/2022 não procede.
2. Também se poderá considerar que a L 1-A/2020 (e, decorrentemente, o Regime Processual Excecional e Transitório estabelecido no seu art.º 6.º-E) cessou por caducidade, porque a situação de alerta não foi renovada pelo Governo a partir das 00:00 do dia 1 de outubro de 2022. A L 1-A/2020, na redação original, estabelecia que o regime processual excecional sobre prazos e diligências só por decreto-lei poderia deixar de se aplicar (cf. art.º 7.º, n.º 2). Entretanto, este preceito foi revogado pelo art.º 8.º L 16/2020, de 29/5. Por conseguinte, neste momento, nada impede que se defenda a cessação da vigência da L 1-A/2020 por caducidade, dado que a revogação deixou de ser a forma prevista para aquela lei deixar de vigorar. Está em causa a caducidade em virtude de deixar de existir a realidade que ela se destinava a regular (ou seja, a situação excecional da pandemia).
3. Para já, talvez seja mais avisado aguardar algum tempo para ver se a Assembleia da República se vai pronunciar sobre o tema (revogação expressa da L 1-A/2020). Pode imaginar-se que será publicada, em breve, uma lei com a finalidade de revogar as diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, à semelhança do que sucedeu com a entrada em vigor do DL n.º 66-A/2022. Há que estar atento ao que possivelmente possa constar da próxima Lei sobre o Orçamento de Estado.
No entanto, se essa lei não vier a ser publicada, então deverá entender-se que a L 1-A/2020 cessou a sua vigência por caducidade às 23h59m do dia 30 de setembro de 2022 (data em que cessou por caducidade a Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 26/8).”
Em sentido diverso se pronunciaram os acs. RL 13-10-2022, p. 17696/21.2T8LSB.L1-6 (António Santos), p. 17696/21.2T8LSB.L1-6; RL 09-02-2023 (Laurinda Gemas), p. 8834/20.3T8SNT.L1-2 , e RL 23-02-2023 (Eduardo Petersen Silva), p. 16142/12.7T2SNT-F.L1-6 concluíram precisamente em sentido inverso, considerando que a mencionada Lei nº 1-A/2020 ainda se mantém em vigor, por não ter sido objeto de revogação.
Como se refere no segundo dos mencionados arestos:
“Ora, não parece que o citado n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03 possa ser qualificado como lei temporária (isto é, limitada a um determinado período de vigência, por estar na mesma prevista a sua vigência durante um período temporal fixado ou enquanto durar um certo acontecimento aí indicado) – neste sentido, veja-se o referido acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022, proferido no proc. n.º 17696/21.2T8LSB.L1-6.
Ademais, apesar de o legislador ter já vindo reconhecer - no Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30 de setembro (que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação) - a cessação de vigência de diversos artigos de decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, tal ainda não sucedeu com a referida Lei n.º 1-A/2020. Isto mesmo foi, aliás, reconhecido pelo acima citado acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022, referindo-se no ponto 4 do respetivo sumário que «O art.º Artigo 6.º-E, nº 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, não foi pelo Decreto-Lei 66-A/2022, de 30 de Setembro, visado/atingido, mantendo-se em vigor, o que deverá suceder enquanto permanecer a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.»
(…)
A questão que se coloca é, assim, a de saber se, à data da prolação do despacho recorrido já não era aplicável o regime legal em causa, o que pressupõe a demonstração, posto que não se está perante facto notório [cf. artigos 5.º, n.º 2, al. c), e 412.º, n.º 1, do CPC] da cessação da “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.
No referido acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022 entendeu-se que «nada permite concluir que a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, deixou já de existir [antes tudo obriga a considerar que continuamos ainda hoje a viver em estado de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica, ainda que, é verdade, já não em período de estado de emergência - a qual se iniciou em Portugal ao abrigo do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, tendo sido objecto de diversas renovações, v.g. operadas pelo Decreto n.º 17-A/2020, de 2 de abril, pelo Decreto n.º 20-A/2020, de 17 de abril e pelo Decreto do Presidente da República n.º 41-A/2021, de 14 de abril, mas já cessado -, de calamidade - estado que foi decretado pelo Governo através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de abril, aprovada ao abrigo do artigo 19.º da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, prorrogada por diversas vezes também, mas já cessado - , ou sequer de alerta - estado v.g. decretado e regulamentado através de Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 30 de Agosto e para vigorar até às 23:59 h do dia 30 de Setembro de 2022], continua portanto a justificar-se o atrás decidido no tocante ao prosseguimento dos autos e dos seus termos, sem prejuízo todavia de, em face do requerido pela apelada, decidir o tribunal a quo que se mostra alegada e provada factualidade que preenche a previsão da parte final da alínea c), do nº 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março , e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.»
Tendemos a concordar com esta posição.
Efetivamente, importa ter presente que o n.º 2 do art.º 7.º da referida Lei n.º 1-A/2020, de 19-03 (cuja epígrafe era “Prazos e diligências”) dispunha na sua redação primitiva (não tendo sido alterado pela Lei n.º 4-A/2020, de 06-04), que “(O) regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.”. Este artigo foi expressamente revogado pelo art.º 8.º da Lei n.º 16/2020, de 29-05, tendo essa mesma lei, no seu art.º 2.º, logo aditado à Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, o art.º 6.º-A acima citado, com a epígrafe “Regime processual transitório e excecional”, o qual já não aludia à definição de data para cessação a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional. Deixou então de estar previsto que o Governo poderia, mediante decreto-lei, vir declarar o termo da situação excecional prevista naquela.
Por outro lado, embora tecnicamente não se confundam tais situações, não há dúvida que o legislador, ao aludir à “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” estava a considerar a situação epidemiológica vivida em Portugal na sequência da pandemia da doença COVID-19 que motivou as sucessivas declarações do Estado de Emergência e das Situações de Calamidade e Alerta.
Como é sabido, a declaração do estado de emergência é da competência do Presidente da República [cf. artigos 19.º, 134.º, al. d), e 138.º da CRP], o que já não sucede com a declaração das situações de calamidade, contingência e alerta, matérias reguladas na Lei n.º 27/2006, de 03-07 (Lei de Bases da Proteção Civil).
O Estado de Emergência vigorou em todo o território nacional entre 19 de março e 2 de maio de 2020 (cf. Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18-03, n.º 17-A/2020, de 02-04, e 20-A/2020, de 17-04) e de 9 de novembro de 2020 a 30 de abril de 2021 (cf. Decretos do Presidente da República n.º 51-U/2020, de 06-11, n.º 59-A/2020, de 20-11, n.º 61-A/2020, de 04-12, º 66-A/2020, de 17-12, n.º 6-A/2021, de 06-01, n.º 6-B/2021, de 13-01, n.º 9-A/2021, de 28-01, n.º 11-A/2021, de 11-02, n.º 21-A/2021, de 25-02, nº 25-A/2021, de 11-03, n.º 31-A/2021, de 25-03, n.º 41-A/2021, de 14-04).
Foram igualmente declaradas as situações de calamidade, contingência e alerta, em moldes que seria fastidioso enumerar, com âmbito territorial diversificado (municipal, nacional, continental nacional), pelo que destacamos a Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30-04 - que estabeleceu “uma estratégia de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia da doença COVID 19” -, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2020, de 26-06 - que declarou “a situação de calamidade, contingência e alerta, no âmbito da pandemia da doença COVID-19” tendo em consideração o território, nos termos da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual - e a Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2022, de 30-06 - que veio prorrogar a declaração da Situação de Alerta, no âmbito da pandemia da doença COVID-19 até 31 de julho de 2022, em todo o território nacional continental.
De referir que esta última Resolução veio a ser considerada expressamente revogada, a partir de 25-10-2022, conforme Resolução do Conselho de Ministros n.º 96/2022, de 24-10-2022, que determina a cessação de vigência de resoluções do Conselho de Ministros publicadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, tendo o respetivo sumário o seguinte teor (sublinhado nosso):
“Desde o início da pandemia da doença COVID-19, o Governo tem vindo a adotar uma série de medidas de combate à pandemia, seja numa perspetiva sanitária, seja nas vertentes de apoio social e económico às famílias e às empresas, com o intuito de mitigar os respetivos efeitos adversos.
Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas.
Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 consubstanciou-se num número significativo de resoluções do Conselho de Ministros com medidas aprovadas com o desidrato de vigorar durante um período justificado de tempo.
Neste contexto, através da presente resolução do Conselho de Ministros, procede-se à clarificação das resoluções do Conselho de Ministros que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de resoluções do Conselho de Ministros já caducas, anacrónicas ou ultrapassadas pelo evoluir da pandemia.
Desta forma, ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber - sem qualquer margem para dúvidas - quais as normas relativas à pandemia da doença COVID-19 que se mantêm aplicáveis.”
Em comunicado oficial, disponível em https://www.portugal.gov.pt, o Governo veio, aliás, informar o seguinte (sublinhado nosso):
“Fim do estado de alerta
Atenta a atual situação da pandemia pela Covid-19, o Governo decidiu não prorrogar a situação de alerta no território continental, bem como a cessação de vigência de diversos decretos-leis e resoluções aprovados no âmbito da pandemia.
A não prorrogação do estado de alerta visa adequar a legislação ao estado epidemiológico atual, equiparando, em termos legais e procedimentos daí decorrentes, a infeção Covid-19 às outras doenças.
Ao longo do tempo, para orientar e proteger a população portuguesa perante uma situação de excecional imprevisibilidade e gravidade, foi sendo criado um conjunto de diplomas legais e normas que acompanharam os estados de exceção que o país foi vivendo, nomeadamente o estado de alerta.
Agora, são eliminados do ordenamento jurídico os atos legislativos cuja vigência se mostrou desnecessária ou ultrapassada, mantendo-se em vigor disposições dirigidas à proteção das pessoas mais vulneráveis à Covid-19, bem como salvaguardando-se os efeitos futuros de factos ocorridos durante a vigência das respetivas disposições.”
Mas, como é evidente, a Resolução falha no seu propósito de permitir aos cidadãos saber, sem qualquer margem para dúvidas, quais as normas relativas à pandemia da doença COVID-19 que se mantêm aplicáveis, sendo certo que não poderia ter o alcance, até pelo princípio da hierarquia das leis, de “eliminar do ordenamento jurídico” leis da Assembleia da República, que nem sequer foram contempladas pelo referido Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30 de setembro.
A Resolução veio, é certo, evidenciar que o território continental de Portugal já não se encontra em situação de alerta no âmbito da pandemia da doença COVID-19.
No entanto, não podemos olvidar que, além de se manterem em vigor no território nacional continental algumas medidas de prevenção, contenção e mitigação como a obrigatoriedade do uso da máscara nas unidades de saúde e nas unidades residenciais para pessoas idosas, o território nacional também abrange as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, tendo aí sido aprovadas ao longo do tempo um vasto leque de medidas no âmbito da pandemia de COVID-19, destacando-se a Resolução do Conselho do Governo (Regional dos Açores) n.º 173/2022 de 18-10-2022, que “declara que todas as ilhas do arquipélago dos Açores se encontram em situação de alerta - COVID 19”, sendo-lhes aplicáveis as medidas de cumprimento obrigatório previstas no anexo à referida resolução.
Nesta senda, apenas nos parece possível afirmar que, com o fim do estado de alerta em território continental nacional, a partir das 23h59 de 30 de setembro, foi pelo Governo dado um sinal claro de que já seria oportuno que a Assembleia República legislasse sobre a cessação de vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia, incluindo naturalmente as citadas normas legais previstas para vigoraram no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
Aliás, que assim é resulta inequívoco da circunstância de ter sido pelo Governo apresentada na Assembleia da República, em 11-11-2022, a Proposta de Lei n.º 45/XV, aprovada em Conselho de Ministros de 29 de setembro de 2022, em que, além do mais, está previsto o seguinte:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei considera revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei.
Artigo 2.º
Norma revogatória
Nos termos do artigo anterior consideram-se revogadas:
a) A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, com exceção do artigo 5.º;
(…)
Artigo 3.º
Efeitos
1 - Quando incida sobre normas cuja vigência já tenha cessado, a determinação expressa de não vigência de atos legislativos efetuada pela presente lei não altera o momento ou os efeitos daquela cessação de vigência.
2 - A revogação operada pelo artigo anterior não prejudica a produção de efeitos no futuro de factos ocorridos durante o período de vigência dos respetivos atos legislativos.”
O processo legislativo está em curso, conforme pode ser verificado em www.parlamento.pt, merecendo-nos destaque o parecer do conselho Superior da Magistratura que aí se encontra publicado, de que citamos, pelo seu interesse, a seguinte passagem (…):
4.1| Pela sua relevância concreta para a presente situação, importa recordar, quanto à cessação da vigência da lei, o que estatui o artigo 7.º do Código Civil.
Assim, nos termos do n.º 1, quando não se destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei, podendo a revogação resultar, conforme prescrito no n.º 2, de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras procedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
Como se vê, o artigo 7.º apenas prevê a caducidade e a revogação como formas de cessação da vigência da lei.
A caducidade ocorre por superveniência de um facto (previsto pela própria lei que se destina a ter vigência temporária) ou pelo desaparecimento, em termos definitivos, da realidade que a lei se destinava regular. Já a revogação pressupõe a entrada em vigor de uma nova lei e pode ser expressa ou tácita, total (ab-rogação) ou parcial (derrogação). A revogação é expressa quando consta de declaração feita na lei posterior e tácita quando resulta da incompatibilidade entre as disposições novas e as antigas ou quando a nova lei regula toda a matéria da lei anterior.
4.2| No preâmbulo da presente proposta de lei, são feitas referências a diversas realidades, nem todas elas coincidentes, nem todas elas, formas de cessação da vigência da lei, atento o antes exposto.
E, no artigo 1.º de tal documento, que define o seu objecto, pode resultar de difícil apreensão a real mens legis. Com efeito, de tal artigo decorre que “a presente lei considera revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão da caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei” (…). Recorde-se que a revogação e a caducidade apenas têm em comum o facto de serem ambas formas de cessação da vigência de diplomas legais, sendo, pois, de questionável acerto técnico a opção consagrada de dizer que se considera um diploma legal revogado em razão da sua caducidade, como é sugerido no artigo 1.º.
Importaria, pois, ter aferido se, e na afirmativa, quais dos vários diplomas legais enunciados no artigo 2.º já se encontram revogados expressa ou tacitamente, total ou parcialmente, quais aqueles que, atenta a sua natureza temporária e face ao evoluir da situação pandémica, já terão cessado a sua vigência por caducidade e quais os outros que, não sendo subsumíveis a nenhuma das referidas situações concretas, ainda mantêm vigência, carecendo, por isso, de uma declaração expressa de revogação como forma de cessação da produção dos seus efeitos na esfera jurídica. Com efeito, apenas uma declaração de revogação será adequada a produzir tal cessação de efeitos e tal declaração, salvo o devido respeito, não é confundível com a expressão “consideram-se revogadas”, lida esta, em termos sistemáticos, como estando inserida num diploma onde o artigo 1.º tem o conteúdo já enunciado e com o preâmbulo também já referenciado. Veja-se que uma “declaração expressa de não vigência” – cf. artigo 3.º da presente proposta de lei - não é, à face do disposto no artigo 7.º, do Código Civil e novamente ressalvado o devido respeito, forma de cessação da vigência da lei.
Tanto assim a presente proposta de lei o reconhece que, no artigo 3.º, n.º 1, salvaguarda – relativamente aos diplomas legais que já tenham cessado efectivamente a sua vigência pelas razões acima referenciadas – que os efeitos daquela cessação de vigência fiquem salvaguardados.
Pese embora, pelas razões que se enunciaram, a formulação do artigo 2.º possa suscitar as dúvidas interpretativas descritas, a verdade é que o n.º 2 do artigo 3.º da presente proposta de lei assume explicitamente que, através do disposto no artigo 2.º, o que se pretende é revogar tais diplomas (ainda que os mesmos já estivessem revogados expressa ou tacitamente ou tivessem caducado). De outro modo, não teria sido utilizada a expressão: “a revogação operada pelo artigo anterior”.
Torna-se, pois, claro que ainda não foi revogado, nem se pode considerar que tenha caducado, o disposto no art.º 6.º-E, n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, que, corresponde ao anterior art.º 6.º-A, n.º 6, perspetivando-se, tão-só, que a sua revogação poderá vir a ocorrer a breve trecho, se vier a ser aprovada pela Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 45/XV/1.”
Concordamos inteiramente com este entendimento, sendo certo que a situação legislativa exposta nos citados arestos se mantém, ou seja, o processo legislativo iniciado com a proposta de Lei nº 45/XV/1 ainda não se completou. Com efeito, de acordo com informação colhida na página internet da Assembleia da República, tal proposta de lei terá baixado à comissão para discussão na especialidade, tendo sido aprovada, ao que seguiu a discussão na generalidade (em 23-03-2023), desconhecendo-se, porém, o resultado de tal discussão. Certo é que o Diário da Assembleia da República relativo a tal data ainda não foi publicado[25], e que mais recentemente, em 18-04-2023 foi publicado o DL nº 26-A/2023, o qual revoga expressamente o artigo 13.º-B do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13-03, o que parece pressupor que a Lei 1-A/2020 ainda se mantém em vigor.
Daqui decorre que ao contrário do que considerou o Tribunal a quo, entendemos que à data em que a apelada deduziu o incidente de suspensão da entrega do locado o art.º 6º-E, nº 7 da Lei nº 1-A/2020 ainda estava em vigor.
Importa, por isso, apreciar se no caso se acham reunidos os requisitos de que depende a procedência do incidente de suspensão da entrega do locado aqui consagrado.
Como se lê naquele preceito legal, a suspensão da entrega do locado tem como fundamento a al. c) daquela norma, a qual assenta no pressuposto de que a execução dessa mesma entrega possa colocar o(s) detentor(es) do mesmo, ou seja, o/a ex-arrendatário/a e respetivo agregado familiar “em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperativa”.
Ora, a suspensão aqui prevista não funciona de modo automático, antes pressupõe que o ex-arrendatário alegue e prove os factos que configuram a causa de pedir deste incidente, a saber:
a) que reside no locado, eventualmente com o seu agregado familiar;
e
b) se acha(m) em situação de fragilidade por não dispo(rem) de habitação própria ou por outra razão social imperativa.
Neste sentido embora parte deles reportados à disposições diversas da Lei 1-A/2020, mas com inteira pertinência para a apreciação do caso dos autos, vd. acs.:[26]
- RE 11-03-2021 (Francisco Matos), p. 7532/19. 5T8STB-H.E1;
- RL 27-04-2021 (Luís Filipe Pires de Sousa), p. 4421/18.4T8FNC.L1-7;
- RL 06-12-2022 (Cristina Lourenço), p. 17895/19.7T8SNT-B.L1-8;
- RL 23-02-2023 (Eduardo Petersen Silva), p. 16142/12.7T2SNT-F.L1-6;
- RL 21-03-2023 (Manuel Espadaneira), p. 17408/19.0T8SNT-F.L1-1.
No caso em apreço, como resulta do ponto 3.1. supra, a apelante não fez prova de nenhuma das circunstâncias alegadas para sustentar a procedência do presente incidente.
Importa ainda considerar que a apelante não impugnou a decisão sobre matéria de facto, nem por qualquer forma demonstrou que os autos contêm elementos probatórios que permitem concluir que os mesmos se acham provados.
Com efeito, o ónus da prova neste domínio cabia à apelante (art.º 342º, nº 2 do CC), e o momento próprio para apresentar as provas que entendia pertinentes era o da dedução do incidente (art.º 293º, nº 1 do CPC), razão pela qual os factos que alegou no requerimento que deu início ao incidente em análise foram considerados não provados.
É certo que a apelante ainda argumentou ter apresentado documentos para prova daqueles factos no âmbito do incidente de apoio judiciário[27]. Contudo, tal incidente não corre no Tribunal nem no Balcão Nacional do Arrendamento, mas sim junto do Instituto da Segurança Social, e se tais documentos foram enviados a esta instituição, os mesmos não constam dos presentes autos, razão pelas quais não podem tais meios de prova ser considerados no âmbito do incidente a que nos vimos reportando.
Nesta conformidade, embora com fundamentação algo diversa, conclui este Tribunal, tal como fez o Tribunal a quo, pela total improcedência do incidente de suspensão da entrega do locado previsto no art.º 7º-E, nº 6 al. c) da Lei nº 1-A/2020, de 19-03.
3.2.3. Da suspensão da entrega do locado nos termos previstos no art.º 15º-M do NRAU.
Não obstante aquando da dedução do incidente de suspensão da entrega do locado a apelante não tenha invocado o disposto no art.º 15º-M, nº 2 do NRAU, o Tribunal a quo não deixou de apreciar o mérito de tal incidente (também) à luz deste preceito legal.
Cremos que uma tal indagação se justifica, atento o disposto no art.º 5º, nº 3 do CPC: “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”
O mencionado art.º 15º-M do NRAU, que tem por epígrafe “Suspensão da desocupação do locado” dispõe nos seguintes termos:       
“1 - O agente de execução, o notário ou o oficial de justiça suspende as diligências para desocupação do locado sempre que o detentor da coisa, ao qual não tenha sido dada a oportunidade de intervir no procedimento especial de despejo, exibir algum dos seguintes títulos, com data anterior ao início daquele procedimento:
a) Título de arrendamento ou de outro gozo legítimo do prédio, emanado do senhorio;
b) Título de subarrendamento ou de cessão da posição contratual, emanado do arrendatário, e documento comprovativo de haver sido requerida no prazo de 15 dias a respetiva notificação ao senhorio ou de este ter especialmente autorizado o subarrendamento ou a cessão ou, ainda, de ter reconhecido o subarrendatário ou cessionário como tal.
2 - Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução, o notário ou o oficial de justiça suspende as diligências executórias quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.
3 - Nos casos referidos nos números anteriores, o agente de execução, o notário ou o oficial de justiça lavra certidão das ocorrências, junta os documentos exibidos e adverte o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que as diligências para a desocupação do locado prosseguem, salvo se, no prazo de 10 dias, requerer ao juiz do tribunal judicial da situação do locado a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto imediato conhecimento ao senhorio ou ao seu representante.
4 - Ouvido o senhorio, o juiz do tribunal judicial da situação do locado, no prazo de cinco dias, decide manter suspensas as diligências para a desocupação ou ordena o levantamento da suspensão e a imediata prossecução daquelas.”
Como referiu o Tribunal a quo, a redação do preceito transcrito sugere que o incidente ali consagrado seja suscitado durante a execução das diligências com vista à desocupação do imóvel. Contudo, ao contrário do que considerou o Tribunal a quo, cremos que nada impede que tal incidente seja deduzido a título preventivo, ou seja, antes de se iniciarem aquelas diligências, desde logo para evitar atos e despesas processuais inúteis (vd. art.º 130º do CPC).
Porém, como se alcança da leitura do nº 2 deste preceito, a procedência deste incidente depende da alegação e prova de factos que consubstanciem os seguintes requisitos:
- uma situação de “doença aguda”
- que possa ser agravada pela execução do despejo …
- … de tal forma que coloque em perigo a vida de pessoa que resida no local.
- … e se prove por meio de atestado médico …
- … devendo este atestado indicar o prazo durante o qual se deve suspender a entrega do locado.
A este propósito, alguma doutrina e jurisprudência salientam que não é qualquer doença grave que pode justificar a suspensão da entrega do locado, mas apenas doença de natureza aguda, com efeitos temporários; o que exclui as situações de doença crónica. Neste sentido vd. ac. RL 12-06-2008 (Granja da Fonseca), p. 4457/2008-6, com anotação favorável de JORGE PINTO FURTADO[28], e RL 20-06-2017 (António Carvalho Martins), p. 2939/14.7T8CBR-F.C1[29].
Ora, como resulta do já exposto, a apelante não logrou provar nenhum dos factos alegados no requerimento que deu início ao incidente de suspensão da entrega do locado, razão pela qual ficou por demonstrar que alguma das pessoas que ali residem padece de qualquer tipo de doença, que se trate de doença aguda, e que a execução do locado possa agravar essa doença, de tal forma que coloque a vida dessa(s) pessoa(s) em perigo.
Donde se conclui que também à luz do disposto no art.º 15º-M do NRAU o presente incidente improcede totalmente.
3.2.4. Do abuso do direito
Invocou ainda a apelante a exceção de abuso do direito.
Estabelece o art.º 334º do Código Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Interpretando este preceito, diz ANTUNES VARELA[30] que “Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. Quer isto dizer que o Código Civil consagrou uma conceção objetiva de abuso do direito.
No que respeita aos limites impostos pela boa-fé, avulta em especial a vertente da tutela da confiança legítima. A este propósito sublinhou BAPTISTA MACHADO[31] que “Dentro da comunidade das pessoas responsáveis (ou imputáveis), a toda a conduta (conduta significativa, comunicativa) é inerente uma “responsabilidade” – no sentido de um “responder” pelas pretensões de verdade, de rectitude ou de autenticidade inerentes à mensagem que essa conduta transmite (...).
Desta “autovinculação” inerente à nossa conduta comunicativa derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas, também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interacção, que o próprio direito não pode deixar de tutelar, já que sem a sua observância nem essa ordem de convivência nem o direito seriam possíveis (...).
Do exposto podemos também concluir que o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem”.
Nesta medida, ensina MENEZES CORDEIRO[32] que a figura do abuso do direito abrange uma tipologia diversificada de situações de exercício inadmissível de posições jurídicas e que compreende, nomeadamente, as seguintes modalidades:

- a exceptio doli: o exercício de uma posição jurídica poderia ser detido com a alegação de que o seu autor incorre em dolo, isto é (neste caso), defronta diretamente a boa fé;
- o venire contra factum proprium: o exercente deixa entender – ou declara – ir tomar uma certa atitude e, depois, toma atitude contrária ou diversa;
- as inalegabilidades formais: o exercente vem alegar a invalidade de um negócio jurídico por vício de forma, em termos contrários à boa fé;
- a supressio: o exercente deixa passar um tal lapso de tempo sem exercer o seu direito que, quando o faça, contraria a boa fé;
- a surrectio: por força da boa fé, o exercente vê, contra ele ou em termos que ele deva respeitar, formar-se um direito que, de outro modo, não existiria;
- o tu quoque: o exercente pratica um facto ilícito ou indevido e depois alega-o contra outrem;
- o exercício em desequilíbrio: o exercente desenvolve uma atividade danosa inútil, o exercente exige algo que deve restituir de seguida (…) ou o exercente provoca uma desproporção inadmissível entre a vantagem própria e o sacrifício que impõe a outrem.”
Por outro lado, assentando no exercício de um direito que excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, os bons costumes ou o fim social ou económico do direito, o funcionamento do instituto do abuso do direito pressupõe o reconhecimento de uma relação de desequilíbrio entre o exercício de determinado direito, e um daqueles limites.
No abuso do direito verifica-se assim um sacrifício desproporcional de um dos mencionados valores.
A verificação de uma tal situação traz à colação a necessidade de aplicação de um teste de proporcionalidade, fortemente inspirado pelo regime do art.º 18º da Constituição da República e por diversas disposições da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (cfr. v.g. os art.ºs 8º, nº 2; 9º, nº 2; 10, nº s; 11º, nº 2).
Esse teste de proporcionalidade é igualmente aflorado em inúmeras disposições do Código Civil (v.g., os art.ºs 566º, nº 1, parte final; 802º, nº 2; e 829º, nº 2), e pode concretizar-se nos seguintes critérios decisórios: a necessidade, a adequação, a justa medida (proporcionalidade stricto sensu), e o interesse legítimo.
Desta forma, será ilegítimo o exercício de um direito, que contrariando um dos seus critérios específicos (boa fé, bons costumes, finalidade económica ou social), revele, em concreto e atendendo à globalidade das circunstâncias, que o benefício decorrente desse direito é injustificadamente desproporcional relação ao sacrifício que para a contraparte representa a estrita observância do correspondente dever, não se revelando aquele ou este como necessários, adequados, na justa medida e para assegurar interesses legítimos.
No caso vertente, não esclarece a apelante quais as concretas razões que justificam a invocação da figura do abuso do direito. Com efeito, nas alegações de recurso e nas respetivas conclusões, a requerente limita-se a tecer considerações genéricas, de pendor exclusivamente teórico, sobre os contornos desta figura, sem, no entanto, expor em que medida o exercício, pela requerente, do direito de requerer e executar o despejo do imóvel dos autos deve ser considerado abusivo.
Não obstante, como referimos, o abuso do direito configurar uma exceção de conhecimento oficioso, o certo é que este Tribunal não descortina qualquer razão para concluir pela verificação daquela.
Assim sendo, resta apenas concluir pela total improcedência da exceção de abuso do direito.
Em consequência, conclui-se igualmente pela total improcedência da presente apelação.
3.2.5. Das custas
Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. art.ºs 529º, nº1, do CPC e 3º, nº 1, do RCP).
sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (art.ºs 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, n.ºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. art.ºs 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os art.ºs 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (art.ºs 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (art.ºs 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o diremos que no caso em apreço, face à total improcedência da presente apelação, as custas deveriam ser suportadas pela apelante.
Não obstante, por via do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido, e que inclui a modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo[33], a mesma acha-se dispensada de as pagar.
Tal dispensa não constitui uma situação de isenção, porquanto aquele benefício pode ser revogado nos termos previstos no Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais[34] (vd. art.ºs 10º e 13º do referido diploma).
Daí que se justifique a condenação da apelante em custas, embora com ressalva do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido[35].
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente, confirmando assim a decisão apelada.
Custas pela apelante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 02 de maio de 2023
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa

_______________________________________________________
[1] Refª 32773173, de 03-06-2022.
[2] Refª 34536052, de 22-12-2022.
[3] Refª 34536051, de 22-12-2022.
[4] Refªs 34536060 e 34536061.
[5] Refª 422406169.
[6] Refª nº 409722372, de 26-10-2021, cuja cópia se acha a fls. 41.
[7] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[8] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[9] Recorda-se que a oposição oportunamente apresentada pela apelante foi dada sem efeito.
[10] Ob. cit., p. 119.
[11] “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2.ª Ed., Almedina, 2019, p. 468.
[12] “O Recurso Civil. Uma Teoria Geral”, AAFDL, 2017, p. 69.
[13] No sentido oposto cfr., no entanto, o ac. STJ 07-05-2009 (Pires da Rosa), p. 09B0057.
[14] Muito embora a apelante não tenha impugnado a decisão sobre matéria de facto, sempre diremos que a não demonstração destes factos emerge da absoluta falta de meios de prova para os sustentar, tendo presente que o ónus da prova cabia à apelante (art.º 342º, nº 2 do CC) e que tal prova deveria ter sido apresentada juntamente com o requerimento inicial do incidente em análise (art.º 293º, nº 1 do CPC), razão pela qual, perante a Absoluta falta de prova, não tinha o Tribunal a quo que proceder a nenhuma diligência probatória, mas tão só proferir decisão (art.º 295º, 2ª parte, do CPC).
[15] Cremos que a expressão “com as necessárias adaptações”, constante do art.º 295º do CPC permite concluir que face à natureza urgente e tramitação simplificada dos procedimentos cautelares, se justifica que a sua fundamentação seja igualmente aligeirada.
[16] “Código de Processo Civil Anotado”, V Volume, 3ª Ed., Coimbra Editora, p. 140.
[17] “Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[18] Tanto quanto apurámos, este aresto não se acha publicado nas bases de dados de jurisprudência de acesso livre e gratuito.
[19] Todos os arestos invocados no presente acórdão sem indicação e proveniência se acham publicados nas bases de dados de jurisprudência dos Tribunais judiciais, de acesso universal e gratuito, disponíveis em https://jurisprudencia.csm.org.pt e http://www.dgsi.pt. A versão digital do presente acórdão contém hiperligações para os acórdãos nele citados.
[20] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 151.
[21] “Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[22] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2018, 737-738.
[23] Conclusão 7ª.
[24] In Blog do IPPC, entrada de 13-10-2022, disponível em:    https://blogippc.blogspot.com/2022/10/cessacao-de-vigencia-da-l-1-a2020-de-193.html.
[25] Vd. hiperligação que antecede.
[26] Alguns destes arestos reportam-se à al. b) do mesmo preceito. Consideramos, porém, que as conclusões que alcançam são inteiramente aplicáveis no contexto da interpretação e aplicação da al. c).
[27] Vd. conclusão 4ª.
[28] “Comentário ao arrendamento urbano”, Almedina, 2019, pp. 793-794.
[29] Este reportado ao mecanismo consagrado no art.º 863º do CPC, mas cujas conclusões temos por válidas no contexto do art.º 15º-M do RAU.
[30] “Das obrigações em geral”, 7ª Ed., p. 536.
[31] RLJ, ano 119, p. 232.
[32] “Teoria Geral do Direito Civil”, AAFDL, 1989, pp. 372-383. Para uma análise detalhada de cada um dos tipos de atos abusivos cfr. do mesmo autor, “Tratado de Direito Civil”, V, 2ª ed., Almedina, 2015, pp. 295-381.
[33] Cfr. requerimento com a refª 5458449/21599600, de 18-01-2016 (no qual o mesmo invoca o deferimento tácito); e no tocante à embargante Alexandra, o ofício do Instituto da Segurança Social junto com o requerimento com a refª 344788, de 19-09-2014, constante de fls. 23.
[34] Aprovado pela Lei nº 34/2004, de 29-07, alterada pela Lei 47/2007, de 28-08, pela Lei nº 40/2018, de 08-08, pelo DL nº 120/2018, de 27-12, e pela Lei nº 2/2020, de 31-03.
[35] Em sentido diverso, considerando inexistir fundamento para condenação em custas da parte que beneficia de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais custas, vd. cfr. SALVADOR DA COSTA “Condenação das partes no pagamento de custas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam”, disponível no seguinte endereço:
https://drive.google.com/file/d/1CiQm3I6JPXJrGXv6PxJAyJ7dtBIfMgat/view.