Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9442/18.4T8SNT-D.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: PENHORA
SUSPENSÃO DA VENDA JUDICIAL
DIREITO DE HABITAÇÃO
DIREITO CONSTITUCIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I) A norma do artigo 751.º do Código de Processo Civil refere-se ao regime da penhora, não ao da suspensão da venda.
II) O direito constitucional à habitação, na sua dimensão negativa, oponível aos particulares, implica o direito a exigir de terceiros que não actuem de forma a prejudicar o exercício ou conteúdo do direito, não vedando a esses terceiros o exercício dos direitos de que sejam titulares.
III) O direito à habitação, intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, pode impor a particulares restrições que se exprimam em limitações do seu direito de propriedade, a resolver por aplicação das normas que as preveem, não sendo admissível a oposição genérica do direito à habitação ao direito de crédito.
IV) Fora das situações excepcionais previstas pelo legislador ordinário, o direito constitucional à habitação configura-se como um direito a prestações sociais no confronto com o Estado e não com particulares.
(AAC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO

S, executada nos autos de execução para pagamento de quantia certa de que estes são apenso, que lhe move e a outros o BANCO …, interpôs recurso do despacho que indeferiu a suspensão durante um ano da venda judicial do imóvel de sua propriedade penhorado nos autos.
Notificada a executado para se pronunciar sobre a modalidade e preço-base da venda desse imóvel, requereu o seguinte:
 1. É verdade que a Executada é uma das devedoras solidarias do crédito exequendo, juntamente com os demais executados.
2. No âmbito do processo já foi vendido o imóvel objeto da execução.
3. Para pagamento do remanescente, e já após a habilitação de herdeiros do executado falecido, encontram-se a decorrer diversas penhoras de vencimento, incluindo da ora Executada.
4. Sempre tentou a mesma, em conjunto com o também executado G, chegar a um acordo de pagamento com o Exequente, pois sozinha a mesma não conseguia, mas por virtude da separação dos mesmos, o falecimento do pai deste, o ex-casal desentendeu-se e nunca foi obtido o acordo efetivamente.
5. Não obstante toda esta situação, a verdade é que além dos vencimentos dos executados, e ainda que existam outros bens dos demais executados (incluindo bens da herança que terão com certeza valor patrimonial para liquidar de imediato o valor em divida), apenas a casa de morada de família desta é que foi penhorada e será levada a venda.
6. A Executada vive sozinha nesta casa, com o seu filho menor, que tem a cargo, vivendo do seu parco ordenado (penhorado), não tendo onde viver caso se efetive a referida venda.
7. Ora, salvo o devido respeito e melhor opinião, é de todo desproporcional a penhora e consequente venda deste imóvel, que tem uma hipoteca bancaria a ser cumprida, face ao valor em divida neste momento.
8. Caso esta venda ocorra, previsivelmente, a ora Exequente nada receberá, pois existe uma hipoteca do credor reclamante, apenas tendo como consequência a perda da casa de morada de família da executada, sendo a única que tem uma criança menor a cargo, e todas as despesas, sozinha, inerentes à mesma.
9. É todo injusto e desproporcional, pois não foram atendidos outros bens, existentes, e cuja penhora terá um muito inferior impacto do que esta.
Por todo o exposto, e face à necessidade de assegurar o respeito pelo princípio básico da dignidade humana consagrado constitucionalmente, e atendendo ao superior interesse da criança envolvida, requer-se que seja dada sem efeito a penhora sobre o imóvel da executada, ou, caso V. Exa assim não o entenda, que permaneça registada a penhora, mas que seja a sua venda suspensa pelo prazo mínimo de um ano, prosseguindo as penhoras de vencimento em curso.
O Exequente opôs-se à pretensão como segue:
1. Antes de mais, vem o Exequente esclarecer que a penhora de imóvel só foi requerida, por circunstâncias imputáveis à Executada, uma vez que o contrato de mútuo subjacente à presente execução foi incumprido, deixando de ser pagas as prestações contratualmente devidas.
2. Por outro lado, as condições e circunstâncias apontadas no requerimento da Executada não são determinantes nem constituem base legal para a suspensão da venda/penhora requeridas.
3. Na verdade, a Executada não comprova diversos dos fatos por si alegados, desde logo o que deixa invocado nos artigos 5.º e 9.º do seu requerimento.
4. Desde logo, a Executado não deduziu oposição à penhora de imóvel, nos termos legalmente previstos nos artigos 784.º CPC.
5. Na verdade, a penhora de bem imóvel foi realizada nas circunstâncias legais previstas no artigo 751.º, n.º 3 e 4 CPC, por não se perspetivar que a penhora de outros bens, incluindo as penhoras de vencimento que decorrem nos autos, permitam a satisfação integral do crédito exequendo nos prazos previstos nessa disposição legal.
6. Aliás, tal desiderato está ainda mais longe de ser alcançado, porquanto como se sabe, tem sido determinada a redução da penhora de vencimento de vários Executados para 1/6 do respetivo valor.
7. Alega ainda a Executada que existem bens da herança que permitem liquidar de imediato o valor em dívida.
8. Contudo, não concretiza nem alega quais os bens que integram o acervo hereditário nem qual o valor que lhes atribui e em que estado se encontra a divisão/partilha do mesmo, nem consta que tenha indicado tais bens à penhora ou que tenha pedido o reforço ou substituição da penhora.
9. Tão-pouco comprova as demais circunstâncias pessoais por si alegadas, de que se trate da sua casa de morada de família, e de que ali resida com o seu filho menor.
10. Menos ainda se aceita que a Executada invoque a existência de um crédito hipotecário, e que tal impeça ou tenha por efeito privar o credor exequente de ver satisfeito o seu direito de crédito ou de prosseguir com a venda de imóvel penhorado.
11. Pelo que, a penhora de imóvel determinada nos presentes autos é legal, proporcional e justificada pelos fins da presente execução, devendo por conseguinte execução prosseguir os seus demais termos.
Nestes termos, vem o Exequente opor-se ao pedido de suspensão da venda/penhora de imóvel apresentado pela Executada S, porquanto, conforme supra fica exposto, a penhora em causa é justificada, legal e necessária à realização dos fins da execução.
Foi proferido o seguinte despacho, ora recorrido:
Através de requerimento dirigido aos autos em 03.01.2023, veio a executada S requerer seja dada sem efeito a penhora efetuada sobre o imóvel de que é proprietária ou, caso assim não se entenda, seja a sua venda suspensa pelo prazo mínimo de um ano. Para tanto alegou, em síntese, que os outros executados têm bens que não foram penhorados, que o imóvel penhorado constitui a sua habitação, sendo aí que reside com um filho menor, não tendo sítio onde viver, e que o mesmo se encontra onerado com uma hipoteca, relativa a um contrato de mútuo que está a ser cumprido, sendo por isso a penhora desproporcional pois que, previsivelmente, o exequente nada receberá com a venda.
Respondeu o exequente pronunciando-se pela improcedência do requerido.
Cumpre apreciar e decidir.
Requer a executada o levantamento da penhora.
Porém, não deduziu oposição a essa penhora quando para o efeito foi notificada.
Pelo cumprimento das obrigações respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondam pela dívida exequenda (art.ºs 601.º do Código Civil, e 735.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sendo certo que, no caso, a executada é obrigada principal por ter incumprido os contratos de mútuo que celebrou com o exequente, sendo responsável, a par dos demais executados, pelo pagamento da totalidade da dívida.
É por isso indiferente que os demais executados sejam proprietários de bens que não foram penhorados, pois que qualquer bem penhorável de qualquer um dos executados responde pelo pagamento integral da dívida.
De outra sorte, o facto da fração autónoma penhora constituir a sua habitação não obsta também à realização da penhora e subsequente venda, pois que, na linha do que já se decidiu em vários acórdãos do Tribunal Constitucional (cfr. Acórdãos n.º 633/95, de 08.11.1995, in DR II Série, de 24.04.1996; n.º 60/99, de 02.02.1999, in DR II Série, de 30.03.1999; n.º 465/01, de 24.10.2001, in DR II Série, de 26.12.2001) o direito à habitação pressupõe a concretização e a mediação do legislador ordinário decorrente de opções político-administrativas em que, em principio, não há molde constitucional para além das incumbências enunciadas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 65.º da Lei fundamental, não competindo aos tribunais substituir-se ao legislador nesta matéria, havendo apenas um conteúdo mínimo determinado constitucionalmente, não podendo aceitar-se como constitucionalmente exigível que a realização do direito à habitação esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas dos direitos de terceiros, porventura também constitucionalmente consagrados, como é o direito a uma tutela jurisdicional efetiva (art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa).
Não está também demonstrado que o exequente nada venha a receber com a venda do imóvel, como se alega.
Verifica-se, aliás, que na sequência da citação de credores o Banco …, S.A. “apenas” veio reclamar um crédito de €52.291,05, pelo que o que é previsível é que com a venda do imóvel o exequente veja ressarcida a totalidade ou, pelo menos, parte substancial do remanescente do seu crédito.
Finalmente, a suspensão da venda apenas é possível no caso previsto no art.º 733.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, que, na circunstância, não tem aplicação, pois que a requerente deduziu oposição à execução, mas a mesma foi considerada não escrita na parte que lhe diz respeito, por não ter procedido ao pagamento da taxa de justiça devida.
Termos em que, face ao exposto, indefiro os pedidos de levantamento da penhora e de suspensão da venda formulados pela executada S.
Notifique.
A Executada interpôs o presente recurso do mencionado despacho e, alegando, concluiu como segue as suas alegações:
A. A Executada, juntamente com o seu ex-companheiro, e demais fiadores, foi alvo de uma ação executiva a 17.05.2018, para cobrança do montante de €126.232,30, sendo o Exequente o Banco …, por falta de pagamento de um crédito hipotecário, e por referência ao imóvel sito na Rua …, ..., 3º andar esquerdo, na Amadora.
B. Com o desenrolar da ação executiva, foi vendido e adjudicado o imóvel a terceiros, tendo o
Exequente recebido a quantia de €79.150,52 em Setembro de 2020;
C. a Executada sempre foi tentando falar com o Exequente, sozinha, requerendo, até a reestruturação do crédito em causa, que já não será hipotecário, pois o imóvel já foi vendido, remanescendo pouco mais de €30.000 (trinta mil euros) em divida.
D. nunca conseguiu, pois ficou desempregada muito tempo, os demais executados em nada ajudaram (tendo ficado desavindos com a separação do casal), tendo tudo piorado em Outubro de 2021 quando o seu ex-companheiro teve de ser internado na ala psiquiátrica após ter tentado o suicídio.
 E. encontra a decorrer, e ainda sequer sem ter havido decisão, uma Oposição à Execução Mediante Embargos, onde se questionam os valores em divida do Exequente perante os Executados, mas sem que a ação tenha sido suspensa.
F. Ao mesmo tempo foram declarados como herdeiros do fiador falecido, o ex-companheiro da Recorrente e sua mãe (também fiadora e executada nos presentes autos).
G. Sem meios para pagar seja o que for, mas já a trabalhar (finalmente), vê a Executada o seu
ordenado penhorado, em Abril de 2022, bem como também o foram os demais executados, existindo, assim, atualmente três penhoras de vencimento em curso, para liquidação do montante de 31.520,68 Euros.
H. A Executada, que vive sozinha, com o seu filho a cargo (o pai apenas dá uma pensão de alimentos de pouco mais de € 100), viu-se obrigada a pedir a redução de tal penhora para 1/6, pois não tinha como pagar todas as suas despesas, o que veio a ser deferido.
I. a Sr.ª Agente de Execução, diversas pesquisas sobre os bens de todos executados, sendo a Exequente conhecedora das mesmas.
J. Neste âmbito, não pode desconhecer que existe uma NIF da herança deixado pelo fiador falecido, sendo que nunca foram feitas pesquisas sobre os bens que eventualmente teriam sido deixados pelo mesmo e se os mesmos seriam ou não passiveis de penhora e se teriam, ou não, algum ónus ou encargo, limitando-se a penhorar o único imóvel da Executada, que nada mais é que a sua casa de morada de família, onde reside com o seu filho menor.
K. Ao mesmo tempo encontram-se a decorrer três penhoras de vencimento e os Embargos em apenso ainda não foram a julgamento, jamais se poderia imaginar que avançassem com a tentativa de venda do seu imóvel, mas que apenas mantivesse registada a penhora, a título de garantia.
L. Mas não, para seu espanto foi a Executada notificada, bem como todos os outros, para se
pronunciar quanto à modalidade de venda, a 14.12.2022.
M. Sempre tentou resolver a divida com a Exequente, mas sem sucesso.
N. Perante todo o exposto, remeteu um requerimento ao Tribunal à quo a requerer que se suspendesse a venda do imóvel da mesma, pelo período de um ano, dado que existem mais bens deixados pela herança do falecido, e que poderão mais rapidamente, até satisfazer a divida em causa.
O. Mais alegou a executada que dado o crédito reclamado pelo atual credor hipotecário, poderia o Exequente nem sequer receber qualquer montante.
P. A Executada apela, apenas à suspensão da venda por um ano, que poderia ser o necessário para se realizar o julgamento dos Embargos que correm em apenso, bem como ir sendo a Exequente ressarcida dos valores provenientes das penhoras de vencimento.
Q. Mais, demonstrou que esta é a sua casa de morada de família, e cujo montante que ainda em divida será demasiado inferior para que se entenda ser possível despejar uma mãe e seu filho, sem que se apurem dos demais bens que possam responder pela divida.
R. Porém, não pode deixar de entender que a perda do seu único bem, a casa de morada de família, onde vive com o seu filho menor, colidindo com o direito ao ressarcimento do credito do Exequente é superior.
S. executada sabe, bem como a Exequente também tem conhecimento de que existem outros bens, possivelmente penhoráveis, que advêm da herança do fiador falecido.
T. Mas ignorou tal informação e, por mero facilitismo, decidiu a Sr.ª Agente de Execução proceder à penhora da casa de morada de família da Executada.
U. Mesmo esta não se tendo opondo à mesma, a verdade é que o Exequente tem vindo a ter o seu crédito ressarcido por via da penhora de três vencimentos, e nem mais se preocupou em obter informações sobre outros bens, que não constituam casa de morada de família.
V. Quando, por meio de requerimento, fez a Executada prova de que é mãe solteira, e tem unicamente como agregado familiar o seu filho menor, fez o Tribunal a quo tabua rasa de tal
informação, permitindo a venda da mesma.
W. A Executada apenas requer a suspensão da venda, tem conhecimento e consciência da sua divida, que está a pagar.
X. confrontando os direitos aqui em causa, e não podendo descurar o direito à habitação, o princípio básico da dignidade humana consagrado constitucionalmente, e atendendo ao superior interesse da criança envolvida, e havendo outros meios de fazer face a um credito, que já não poderá ser considerado hipotecário, mas meramente comum, entende-se que a decisão proferida pelo Tribunal é totalmente inqualificável, não acautelando e nem sequer se debruçando sobre estes princípios basilares da nossa sociedade.
Y. Não se poderá entender que prevaleça o direito do credor comum ao ressarcimento da sua divida, não muito superior a € 30.000, por via da venda da casa de morada de família de uma das executada, que ficará “na rua” com o seu filho, quando, não só se encontra a decorrer a penhora de três vencimentos, como existem outros bens que a Exequente ignorou, violando assim não só o art.º 751º e ss do CPC, bem como a nossa Constituição.
Z. Pelo que se requer que seja dada sem efeito a decisão proferida pelo despacho de que ora se recorre, possibilitando-se a suspensão da venda do imóvel já supra identificado, pelo menos no decurso de um ano.
Nestes termos e nos demais de direito que os Venerandos Desembargadores doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, assim se fazendo a verdadeira e costumada JUSTIÇA!
O Exequente apresentou contra-alegações defendendo o julgado.
O recurso foi admitido com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II) OBJECTO DO RECURSO

Tendo em atenção as conclusões da Recorrente - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, cumpre apreciar se deveria ter sido ordenada a suspensão da venda do imóvel penhorado nos autos e identificado em virtude de:
1. Estarem pendentes de decisão embargos à execução.
2. Existirem bens de uma herança que podem responder pela dívida em lugar da casa de morada de família.
3. Decorrerem penhoras de três vencimentos.
4. A venda ser inidónea à satisfação do crédito exequendo, atenta a reclamação de créditos apresentada por terceiro.
5. Dever prevalecer o direito à habitação sobre o direito de crédito.

III) FUNDAMENTAÇÃO

1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos pertinentes são os que constam do relatório supra e ainda os seguintes resultantes da tramitação da execução e dos seus apensos:
1. Em 13 de Setembro de 2019 foi proferido despacho nos autos de oposição à execução movidos, entre outros, pela Recorrente, declarando não escrita a oposição por ela apresentada, despacho que foi notificado à Recorrente por comunicação com certificação CITIUS da mesma data, não tendo dele sido interposto recurso.
2. Em 23 de Janeiro de 2023 foi proferida sentença nos autos de oposição à execução, quanto aos Executados relativamente aos quais prosseguiram, julgando a oposição improcedente e determinando o prosseguimento da execução.
3. A sentença referida em 2. foi notificada às partes por comunicações com certificação CITIUS de 24-01-2023, não tendo dela sido interposto recurso.
4. Encontra-se penhorado na execução 1/6 do salário de cada um dos Executados G (salário ilíquido mensal de € 741,06), L (salário ilíquido mensal de €757,01) e S, ora Recorrente (salário ilíquido mensal de € 955,95).
5. Nos autos de reclamação de créditos que são apenso C, foi reclamado um único crédito, a saber, pelo Banco …, S.A., o crédito de €52.291,05 relativo a um contrato de mútuo, sendo €49.559,90 relativos a capital e €2.731,15 a juros vencidos até 22.08.2022, garantido por hipoteca, registada na Conservatória do Registo Predial em 03.01.2003, até ao limite de €93.784,32, o qual foi graduado para ser pago antes do crédito exequendo.
6. O imóvel designado pela fracção HX, correspondente ao sexto andar esquerdo, destinado a habitação, tipologia T1, descrito na Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.º …, da freguesia de Falagueira - Venda Nova, inscrito na matriz sob o artigo …, sito na Praceta … n.º ..., Amadora, encontra-se penhorado nos autos, tendo o agente de execução indicado como preço-base da sua venda o de € 120.000,00.
7. O único bem encontrado pela agente de execução ao executado J, falecido na pendência da execução, foi um prédio urbano situado em …, Mértola, com a área total de 196,3 m2, a área coberta de 100 m2 e a área descoberta de 96,3 m2, constituído por edifício de rés-do-chão com cinco compartimentos e logradouro, como o valor patrimonial actualizado em 2023 de €31.333,05 em pesquisa de 2023 antecedida por pesquisas em 2018, 2019 e 2020.
2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. A Recorrente fundou o pedido de suspensão da venda judicial do imóvel penhorado em ser ele a casa de morada de família que habita com seu filho de menor de idade, estando pendentes de decisão embargos de executado.
Funda-se a pretensão no disposto no artigo 733.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, que dispõe que, se o bem penhorado for a casa de habitação efetiva do embargante, o juiz pode, a requerimento daquele, determinar que a venda aguarde a decisão proferida em 1.ª instância sobre os embargos, quando tal venda seja suscetível de causar prejuízo grave e dificilmente reparável.
Como resulta dos autos de embargos, não foi recebida a oposição deduzida pela Recorrente, por ter sido liminarmente rejeitada, sendo que foi já proferida sentença de improcedência total, relativa à oposição apresentada por outro executado, a qual não foi impugnada no prazo legal.
Carece de fundamento a suspensão com esse fundamento.
2. A Recorrente alegou também que não foi feita pesquisa dos bens integrantes da herança do executado J, entretanto falecido, e que estão em curso três penhoras nos salários dos executados, sendo o remanescente a pagar de pouco mais de €30.000,00. Apela ao disposto no artigo 751.º do Código de Processo Civil.
Dispõe o artigo 751.º, n.º 4, do Código de Processo Civil:
Caso o imóvel seja a habitação própria permanente do executado, só pode ser penhorado:
a) Em execução de valor igual ou inferior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 30 meses;
b) Em execução de valor superior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses.
Uma primeira nota para referir que a norma em causa se refere ao regime da penhora e não à suspensão da venda. Ou seja, o alegado pela Recorrente teria a sua sede própria de apreciação em eventual oposição à penhora, que não foi deduzida, não integrando na sua previsão a suspensão da venda.
Todavia, mesmo quando se considerasse que poderia fundar a suspensão da venda, ainda aí não estariam verificados os respectivos pressupostos, no caso os da alínea b) atento o valor da execução. Na verdade, os salários penhorados são em montante que não permite sejam adequados ao pagamento da dívida no prazo assinalado.
Por outro lado, como bem salienta o Exequente, nenhum indício existe nos autos, ou a eles trouxe a Recorrente notícia concreta da existência de bens integrando a referida herança, limitando-se a defender que deveriam ser feitas buscas nesse sentido por parte da agente de execução.
3. Por último, entende a Recorrente que é desproporcionado vender a casa de morada de família para satisfação de um crédito que a não obterá, em razão da graduação preferente de outro credor, e inconstitucional preferir a satisfação do direito de crédito à defesa do direito à habitação.
Não se vê em que funda a Recorrente a sua conclusão de que o Exequente não obterá a satisfação do seu crédito, uma vez que o imóvel penhorado será colocado em venda pelo valor base de €120.000,00, o crédito graduado em primeiro lugar é no montante de €52.291,05, até ao limite de €93.784,32, e o crédito exequendo é agora de cerca de €30.000,00.
4. Defendeu a Recorrente que cabia à agente de execução proceder à pesquisa dos bens deixados por óbito de J, executado falecido na pendência dos autos.
A pesquisa dos bens a penhorar cabe ao agente de execução nos termos do artigo 749.º, do Código de Processo Civil. Todavia, tendo sido feitas pesquisas quanto a bens do executado conforme consta em III).1.7, entendemos que foi cumprido o dever de pesquisa.
5. No que se refere à inconstitucionalidade por prevalência do direito à habitação, é o seguinte o teor do artigo 65.º, da CRP:
1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;
b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada;
d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.
3. O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4. O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística.
A norma transcrita consagra, antes de mais, o direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família[1].
Na verdade, este direito:
(…) assume, a exemplo do que se verifica com outros direitos sociais, uma dupla natureza ou dimensão, conforme tem vindo a ser reconhecido pelo Tribunal Constitucional na sua jurisprudência (cf., neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 101/92, 612/2019 e 393/2020).
Por um lado, tem uma dimensão negativa ou defensiva, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de atos que prejudiquem tal direito; por outro lado, tem uma dimensão positiva, que correspondente ao direito dos cidadãos a medidas e prestações estaduais, visando a sua promoção e proteção, isto é, a medidas e prestações estaduais tendentes a assegurar «uma habitação adequada e condigna à realização da condição humana, em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar»[2].
Na sua dimensão negativa, oponível aos particulares terceiros, o direito à habitação implica o direito a exigir de terceiros que não actuem de forma a prejudicar o exercício ou conteúdo do direito, não vedando a esses terceiros o exercício dos direitos de que sejam titulares. O mesmo é dizer que essa dimensão negativa de abstenção de terceiros de perturbar o direito à habitação, não se transmuta na paralisação dos direitos que a terceiros assistam[3] vedando-lhes o seu exercício.
Certo é que o direito à habitação, intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, pode impor, mesmo a particulares, restrições que se exprimam em limitações dos seus direitos, como o são as normas dos artigos 733.º e 751.º do Código de Processo Civil, antes analisadas, como o vem reconhecendo o Tribunal Constitucional[4]:
Ora, não obstante o reconhecimento, por este Tribunal, da função social da propriedade, sobretudo em sede de arrendamento, que poderá justificar a imposição de restrições aos direitos do proprietário privado (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 311/93, 263/2000, 309/2001 e 543/2001), daí não decorre que seja exigível impor aos particulares que se substituam ao Estado nas obrigações que sobre este impendem em matéria de proteção do direito à habitação (cf. os Acórdãos n.ºs 101/92, 130/92, 633/95 e 570/2001). Por isso, havendo a possibilidade de o executado, em consequência de uma execução, ser privado da sua casa de habitação, em última análise, será ao Estado, caso tal se mostre necessário, que caberá assegurar a proteção do direito constitucional à habitação (cf., a este respeito, em matéria de arrendamento, os Acórdãos n.ºs 151/92 e 465/2001), podendo a sua intervenção, no âmbito do processo de execução ser desencadeada através dos mecanismos acima referidos.
Isto sem prejuízo de se reconhecer que, principalmente a partir das alterações introduzidas pela Lei n.º 60/2012, a habitação própria permanente do executado adquiriu uma relevância acrescida face aos demais bens imóveis penhoráveis, porquanto a penhora daquela passou a ter de observar condições mais exigentes no tocante ao prazo em que a satisfação integral do credor presumivelmente não ocorrerá com recurso à penhora de outros bens.  
Assim, na relação existente, neste caso, entre a garantia constitucional do direito constitucional da propriedade privada, em que assenta o direito do credor à satisfação do seu crédito, e o direito fundamental à habitação, há que entender que, gozando o legislador ordinário de um largo espaço de conformação no que respeita à compatibilização destes direitos, não se afigura que mereça censura, à luz da tutela constitucional do direito à habitação, a solução normativa objeto do presente recurso. Recorde-se ainda que a norma em causa se integra num sistema, razão pela qual o seu confronto com o direito à habitação do executado não pode abstrair do equilíbrio do processo executivo globalmente considerado.
Por outro lado, sendo certo que, conforme tem entendido o Tribunal Constitucional, o princípio da proporcionalidade representa um limite à liberdade de conformação do legislador, não se afigura também que a norma objeto do presente recurso, pelas razões já referidas, comprima de forma desproporcionada o direito de propriedade do executado, em violação do artigo 62.º em articulação com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição. Na verdade, reconhecendo embora que neste tipo de situações a penhora pode não se limitar ao montante em dívida, o legislador faz depender a realização da mesma da verificação de determinados requisitos (que, dentro do espaço de conformação que lhe assiste, se tornaram mais exigentes) que acautelam suficientemente o direito de propriedade do executado (cf. o artigo 751.º, n.ºs 1 e 3, do CPC). Acresce que a penhora, enquanto ato de apreensão de bens, tendo em vista a futura venda executiva, não viola o direito de propriedade do executado pela circunstância de o valor penhorado ser bastante superior ao valor da quantia exequenda. Com efeito, uma vez realizada a venda executiva e efetuada a liquidação da responsabilidade do executado, ser-lhe-á entregue, como lhe é devido, o remanescente do valor que não seja necessário ao pagamento da quantia exequenda e legais acréscimos (cf. o artigo 847.º e 849.º, n.º 1, al. b), do CPC).
Conclui-se, por isso, que a interpretação normativa ora em apreciação não viola qualquer um dos parâmetros constitucionais referidos pelo recorrente.
Ou seja, as restrições ao direito de crédito por prevalência do direito à habitação constam do sistema jurídico pela positivação das normas que as preveem e decorrem da sua aplicação ao caso, não sendo admissível a oposição genérica do direito à habitação aos direitos dos credores nos termos em que a Recorrente invoca nestes autos.
 Nessa dimensão, o direito à habitação configura-se como um direito a prestações sociais no confronto com o Estado[5], totalmente alheio à questão suscitada nos autos.
Termos em que improcede o recurso.
IV) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente – artigo 527.º, n.º 2, do CPC.
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Lisboa, 11 de maio de 2023
Ana de Azeredo Coelho
Eduardo Petersen Silva
Nuno Lopes Ribeiro
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[1] Cf. Professor Jorge Miranda e Rui Medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 665.
[2] Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) 612/2019, de 22 de outubro de 2019.
[3] Assim, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Abril de 2021, proferido no processo 102/07.8JDLSB-AR.L1-7 (Carla Câmara).
[4] Acórdão 299/2020, de 16 de junho de 2020.
[5] Assim, o Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) 50/2022, de 18 de Janeiro de 2022.